quinta-feira, janeiro 31, 2008

Aprendizagem Matemática (III)


O governo, como a multiplicação, goza de propriedade associativa, qualquer que seja o ministro o resultado é sempre o mesmo, uma política Sócrates.

(para quê mudar então, para quê mudar, mudar, então?)
~CC~

Aprendizagem Matemática (II)

O peso da vida é inversamente proporcional ao número de amigos de coração de prata e riso verde.

~CC~

quarta-feira, janeiro 30, 2008

Aprendizagem Matemática (I)


As sombras fundem as fronteiras dos corpos.

~CC~

As terças e as tangerinas

Há coisas que não deviam ser e são. Uma delas é reconhecer a falta que alguma coisa nos faz sobretudo quando não a temos. Luto há muito contra esta inevitabilidade e com alguns êxitos, mas fracassos também.

Falo das tangerinas, falo do nosso almoço das Terças.

Todas as semanas há um dia em que te vou buscar à escola cedo, ainda com o dia pleno e a tarde toda por acontecer. Reservei esse tempo para te ver crescer entre os livros da escola, as séries televisivas, os pequenos intervalos de conversa, o único chá de que gostas. Às vezes trazes uma amiga ou vais com uma amiga e gosto de ver aparecer essa cumplicidade porque também a vivi intensamente e ela é ainda o abraço em que mergulho para o choro e para o riso.

Entre as reservas há o restaurante que serve um dos pratos que comes com gosto, esfomeada por uma manhã em que as actividades de prova física marcam o seu lugar. É um restaurante feio, incaracterístico e até um bocadinho piroso nas suas cortinas de cores, flores de plástico, pesadas toalhas vermelhas. Na verdade ele aconteceu-nos por um acaso que já não lembro. No entanto, é iluminado por uma senhora quase velha, de cara redonda e passos mansinhos que passeia entre as mesas para saber se está tudo bem e fazer uma festa em cada criança. Não nos sentimos clientes mas vizinhos ou primos, acolhidos como parte integrante da casa, tratados entre o carinho e o respeito.

E no final, já depois do café, ela aparece sempre para se despedir. Traz um ou dois sacos de papel cheios de tangerinas do quintal dela e uma mão cheia de rebuçados ou bolachinhas. As tangerinas são as mais minúsculas e do laranja mais claro que já vi e nunca as como, nem eu nem ninguém sensível à acidez. Nunca tive porém coragem de as recusar, seria como renegar a face para um beijo, fechar a mão quando uma outra se estende para ela.

E a falta, a falta que eu tenho sentido de ti, das terças, das tangerinas.
~CC~

segunda-feira, janeiro 28, 2008

Tempo, esmagador de sentidos.

Os dias não me chegam em horas, minutos e segundos e o tempo é um esmagador dos sentidos, embora não encontre por vezes claramente o sentido de tanta velocidade.


Mas entre um minuto mais e um menos veloz, há um beijo a nascer na ponta dos meus dedos e a voar directo aos vossos corações de sorrisos claros. E é desse minuto que o sol nasce assim deslumbrante como se fosse o alento, a força, o âmago do calor que há ainda no meu sangue.
~CC~

sábado, janeiro 26, 2008

No tempo das princesas sós (VII)

Estavam sentadas em frente à janela que deixava ver o céu branco e azul, anunciando o início do último Verão. Bebiam chá de menta quase frio e sabiam que este era o momento da despedida mas nenhuma delas imaginava que as suas vidas se iriam desabitar assim das outras. Pelo contrário, trocavam as moradas possíveis, as que pertenciam ao seu passado porque os endereços do futuro eram ainda ambíguos e incertos.


Tilía: É meu primo e tenho simpatia por ele, escreve-me cartas já há algum tempo, mas nunca lhe dei grande importância.
Perpétua: Tenho pena de ti, o mais certo é que um casamento se desenhe no teu horizonte.
Lucilima: Não queria esse destino para mim, mas não vejo nada de errado nele.
Perpétua: Ela queria ser mestra e não mulher casada.
Tília: Não sei, acho que estive aqui como em qualquer outro lugar, estive só a ver.
Rosa: Se casares, não poderás ficar apenas a ver como é.
Tília: Deixemos o meu destino, sabemos que ele será sempre traçado pela minha vontade de ficar a ver. Rosa, que farás do teu?
Rosa: Quero formar um coro de meninas, vou tentar fazê-lo na igreja da minha aldeia.
Perpétua: Uma aldeia Rosa, para ti deveria ser uma cidade europeia e só devias cantar à noite, porque a tua voz é da filha do incêndio.
Lucilima: Eu acho que devias cantar no teatro. O meu destino é o único claramente marcado e o único inteiramente traçado pela felicidade.
Tília: Sempre vais trabalhar com as crianças refugiadas? Em tendas no meio da lama? Em lugares o mais próximo possível das trincheiras? Que lhes podes ensinar em momentos tão violentos...só quererão salvar as suas vidas e comer todos os dias.
Lucilima: Quero ir e sei que vou, é tudo e é muito.
Rosa: E tu Perpétua, porque não nos dizes nada?
Perpétua: Mas eu só sei que vou ver o mar.


Passaram mais de vinte anos sobre esta conversa e nada sei sobre o destino de cada uma delas. Minto: sei apenas que nunca mais se viram e que nenhuma delas escreveu uma única palavras às outras. Talvez se procurem agora, talvez mesmo hoje ou amanhã.


Perguntam quem sou eu, eu que sei tanto sobre o tempo mais azul da solidão das princesas.
Não quero mistérios nesta história, eu digo-vos quem sou.

Eu sou apenas isso: o próprio ar que encheu os dias e se pendurou nas noites.
(fim)
~CC~

sexta-feira, janeiro 25, 2008

No tempo das princesas sós (VI)

(nota: imagens de estátuas e relógios são do meu arquivo de Praga, uma das cidades mais lindas do mundo. Era a Cidade que escolhia para o tempo das princesas sós)


O jogo dos possíveis é o que se inventa dentro de quem não sabe, quem não pode saber. Era esse jogo que vivia no interior das quatros jovens mulheres: Lucilima, Perpétua, Rosa, Tília. Cada uma delas acreditava mais numa das hipóteses do que noutras. Lucilima achava que os três tinham fugido em conjunto. Perpétua que Hipiricão tinha ido com Funcho, o Jardineiro. Rosa, propensa a sabores doces e intensos, acreditava na paixão de Artemísia e Hipiricão. Tília não pensava em nenhum dos jogos: esperava simplesmente que Hipiricão voltasse.


E nenhuma delas soube a verdade, o tempo de princesas sós terminou nesse Agosto, quando cada uma também partiu rumo a uma outra história. Nunca mais nenhuma voltou à escola das mestras nem foi ver quem dormia no internato que durante dois anos as tinha abrigado, nenhuma delas tornou em busca de pistas que pudessem iluminar o estranho desaparecimento de Hipiricão, Artemísia e Funcho.


A verdade não entrou no jogo dos possíveis, como acontece na maior parte das vezes.


Artemísia não voltou depois do dia em que disse alto o seu poema do mar, caiu na cama em febres altas cujo nome levou muito tempo a descobrir, os pais viajaram com ela pela Europa à procura de cura para tão estranho mal.


Funcho mudou-se para o jardim da escola das Artes e deste para a sala da pintura onde pousou anos como modelo ou, se quiserem, anjo louro.


Hipiricão foi o único que fugiu verdadeiramente. Fugiu das quatro jovens mulheres que amava exactamente por amar as quatro ou por pensar que as amava.
~CC~

(PS: está quase no fim...:))


quinta-feira, janeiro 24, 2008

Os outros ao envelhecer


Ele tem uma voz tão feliz que o próprio sol escorre para dentro do meu telemóvel, parece tão longe o tempo em que ela vinha envolta num tom sombrio, coberta de uma poeira cinza. Discordamos em quase tudo e no entanto isso já não nos afasta como quando jovens, nesse tempo em que as bandeiras eram mais importantes que o afecto que nos corria no sangue. Agora rimos dos pontos de vista às vezes opostos que temos sobre as coisas e já não nos magoamos, sabemos que há além de tudo um fio azul que nos une e que é ele também a nossa bandeira.


Ela tem uma voz doce mas carregada de luto, triste de tantas coisas más que a vida lhe deu. Dantes dava-lhe conselhos, mas agora escuto-a. Dantes diria o que deve fazer, cheia das certezas que habitavam o que era mais forte que tudo: a verticalidade de um olhar. Agora digo-lhe que estarei com ela no que ela escolher fazer em tempos tão negros que a habitam. Compreendo a sua dor como antes não sabia, não tinha eu própria a dimensão do que era errar. E sem a julgar, faço das minhas mãos carícias verdadeiras que deixo sobre a sua pele.


Ele tem aos meus olhos de mulher feminista um passado azedo e oblíquo que não me impeço de comentar e de entristecer com ele, mas tento todos os dias não o julgar por ele, antes confiar-lhe um futuro diferente.


Não é só cansaço que chega ao corpo quando envelhece, é também um outro modo de estar com os outros, um modo melhor de estar com os outros.

~CC~

quarta-feira, janeiro 23, 2008

Envelhecer

O meu corpo pede baixinho que lhe dê descanso e quando eu o quero ignorar, decide adormecer.
~CC~

No tempo das princesas sós (V)



No jogo dos possíveis Hipiricão fugiu com Artemísia porque nenhuma mulher o tinha feito ainda chorar e ela acompanhou-o por causa do aroma forte de serra que ele tinha, capaz de apaziguar todas as dores que o seu corpo continha.


No jogo dos possíveis Artemísia fugiu com Funcho por nunca ter visto um corpo de homem semelhante ao dos deuses que lia nos clássicos. Funcho levou-a consigo por ela ser a princesa dos contos de fadas com que a sua avó teimava em o adormecer, não obstante ser tanto o cansaço do dia de trabalho no campo que nenhuma história era necessária.


No jogo dos possíveis Hipiricão fugiu com Funcho porque há muito que gostava secretamente de rapazes e aquele era o mais belo e próximo da terra que ele alguma vez tinha visto. Funcho seguiu-o porque nunca ninguém lhe tinha dito poemas como aquele rapaz, ninguém excepto a sua avó alguma vez o tratara bem e lhe dera presentes de ouro.


No jogo dos possíveis há muito os três partilhavam o plano de fuga e tinham selado com uma pequenina gota de sangue o seu segredo. A sua aliança baseava-se na atracção profunda que sentiam pelas suas diferenças e na forma como isso os fazia desejar partilhar os seus dias.


No jogo dos possíveis cada um dos três partiu sozinho, impossibilitado de aguentar o calor seco de Junho, morto de tédio da vida que levava. Sedento de ruptura cada se foi sem deixar rastro de si, sequioso de se encontrar num outro lugar.

(cont)

~CC~

terça-feira, janeiro 22, 2008

O sorriso de sua excelência



Senhor excelentíssimo, aqui no bairro onde eu moro, muitos foram deitar o voto por si. As mulheres gostavam do seu sorriso de homem bonito e seguro. Mesmo depois dos boatos que inventaram por aí a dizer que os gostos do senhor eram duvidosos, nós não acreditámos, podia lá ser. Muitas vezes dissemos entre nós: é bom homem e sabe o que quer para o País. Mas agora o sorriso do senhor tem sido um pouco estranho, parece ficar contente quando andamos tristes e preocupados. Veja o senhor o caso de hoje, as bolsas lá para o lado do Japão e da China a cair a pique e a causar o pânico e ainda os maiores de todos, esses lá dos Estados Unidos, esses também aflitos. E o senhor a dizer tudo bem e que vamos crescer 2% e uma voz tão firme e um sorriso tão inchado. O senhor não vê, o senhor não está a ver que não estamos bem, não senhor.


Olhe a minha casa sua excelência, olhe que a prestação subiu mais de cem euros num ano, é muito senhor. Onde vou buscar esse dinheiro a mais para pagar os juros se nada nos nossos ordenados aumentou e continuaram iguais. Pensei vender as flores do meu jardim que são as mais bonitas da rua e todos gabam os muitos tons das minhas rosas, mas agora senhor é tudo muito complicado e já não se pode vender assim qualquer coisa na praça ou nas bancas de rua. Um baldinho com água e umas rosas vendidas na rua, era assim que a minha mãe nos comprava roupa nova nos saldos de cada estação.


O senhor tem um sorriso bonito, mas veja bem que não se pode rir assim por tudo e por nada e que entristecer de vez em quando faz bem, veja o nosso caso, veja o nosso entristecer. O senhor, sua excelência, veja.

~CC~

A visita da lua

Era ainda de noite quando a tua voz me acordou. Não sabia porque tinha feito aquele pedido absurdo de amanhecer com a tua voz quente, doce e redonda, mesmo vinda de longe. Há dias em que não suporto o toque metálico do telemóvel a acordar-me, agora que já acabaram os relógios de cuco e que não há galos na vizinhança. Percebi depois assim que desligaste que a razão para este acordar estava na janela e no modo como a lua se tinha colocado no meio dela. A lua cheia do amanhecer é a visão do mundo onde viajo com minhas asas transparentes. A meia hora da infinita quietude entre a noite e o dia abraçou-se a mim aquecida pelas tuas carícias de homem meigo. Depois disso o dia entrou em queda livre e enrolei-me na sua vertigem.

Espero mais visitas da lua ao amanhecer. Espero enrolar os dias na minha vertigem.
~CC

segunda-feira, janeiro 21, 2008

No tempo das princesas sós (IV)

Imagem captada em http://dias-com-arvores.blogspot.com/2006/09/funcho-martimo.html

Artemísia era uma das raparigas mais tímidas do grupo de aprendizes de mestras, a sua voz nunca se ouvia e os seus olhos baixavam amiúde sobre o seu colo redondo. Escrevia, no entanto, como nenhuma outra. Um dia, o homem velho que lhes ensinava literatura com paixão, suplicou-lhe que lesse um dos seus poemas em voz alta. O silêncio era tanto que a respiração de cada um deles se podia ouvir a envolver a voz dela. Era um poema sobre o mar. Quando acabou de ler, dois factos tornaram aquele momento inesquecível: o professor aplaudiu e as suas palmas ecoaram por toda a sala como uma tempestade; as lágrimas corriam pelo rosto de Hipiricão.


No dia a seguir Artemísia não veio à escola e Hipiricão desapareceu. Curiosamente também Funcho, o jardineiro alto e musculado que cuidava das rosas não veio mais trabalhar.


Depois do silêncio que elas guardaram durante uma semana inteira, Perpétua falou.


Mostrou-lhes o búzio grande que Hipiricão lhe tinha dado e a frase enrolada que ele tinha lá dentro e que ela levou muito tempo a conseguir tirar. Perpétua leu alto aquela frase para si durante todos os dias daquela semana: um dia vou levar-te a ver o mar.


Rosa desdobrou então o seu lenço bordado de cerejas e mostrou o que Hipiricão tinha escrito a tinta da china dentro de uma delas: os teus lábios são assim.


Devagar Lucilima tirou do bolso um anel tosco feito de madeira enrolado em folhas de plátano e entre as folhas verdes uma era branca e de papel, não obstante o recorte idêntico. Na folha branca bailavam as letras que diziam: casaremos no bosque ao crepúsculo.


Tília procurou até encontrar dentro da sua mala de mil coisas. Tirou então de lá a caixa de música de onde saltava a bailarina de sapatilhas douradas que girava sem cansaço até o silêncio chegar. Por baixo da caixa estava gravado: como ela, sou teu.


Nenhuma quis chorar diante das outras o modo como o amor se tinha tornado escuro e frio. Perpétua avançou com a ideia: não diremos mais o nome dele, não deitaremos lágrimas. Rosa seguiu o rumo: escavemos um buraco e deitemos lá para dentro todas estas coisas.


E dentro da terra morreram para sempre frases que nunca quiseram, não puderam compreender.
(cont)

~CC~

Estou convosco!

Fiquei aqui enquanto ia contigo nessa viagem às ilhas mais negras do Atlântico. Estou agora aí nesses passos pequenos para uma felicidade grande, para um encontro de onde sairás pai e ela filha. Está ganha a primeira batalha do processo de adopção internacional da menina de R. Cada vitória individual é também uma vitória colectiva, cada batalha ganha é também um mundo melhor a acontecer.


Não vejo a hora de ver esse sorriso tão bonito que por ora me chega em fotografias. Usa as trancinhas tradicionais, as que terás que aprender a fazer bem, a colocar essas continhas de cor no final de cada uma. Não vejo a hora do primeiro abraço, o primeiro dos muitos que terei que dar para que se torne minha sobrinha.


~AF~ separou cuidadosamente os brinquedos e os livros para levar, um modo que também temos de preparar os nossos corações, de os abrir para este encontro. E de quando em quando, sobretudo nestes invernos frios, espero conseguir tirar de mim os ventos quentes de África para que ela possa sentir o quanto dentro de nós podemos combinar diferentes casas.
~CC~

domingo, janeiro 20, 2008

No tempo das princesas sós (III)

Foi em Junho que Hipiricão desapareceu. Nesse ano já estava muito calor em Junho e as quatro princesas tinham colocado os seus vestidos mais frescos e comprado leques novos de cores doces. As aulas de pintura tinham trazido às suas vidas a paleta de tons necessários para expressar o modo como o sangue lhes corria quente. A maior parte do tempo as suas conversas eram sobre ter asas e voar para longe, para destinos exóticos onde o sol durava até à meia noite. Hipiricão andava mais calado e pintava devagar como se o pincel nos seus dedos estivesse separado da cabeça de que ele era dono.


Por isso as jovens mulheres não conseguiram acreditar no desparecimento de Hipiricão naquele dia de calor sufocante de Junho. Durante dias os seus risos ficaram mudos e as faces perderam o tom rosado, na verdade nunca nenhuma delas tinha dito a uma outra que ele era importante, antes pelo contrário. Nenhuma percebeu inteiramente a razão para que tanta consternação as tivesse tomado assim, para o sabor triste que os dias tinham adquirido, para o vazio que enchia cada noite. E não falavam, não conseguiam dizer uma palavra sobre o assunto.


Nunca em nenhum mês de Junho o azul se tinha mostrado assim gélido, ao mesmo tempo que nenhuma água, por mais fresca que estivesse, conseguia realmente matar a sede.


E em surdina, em todas as bocas, havia um nome que se dizia baixo, uma explicação absurda para a ausência do príncipe louro: fugiu com Artemísia.


Elas viravam o rosto ou fechavam os olhos sempre que esse murmúrio as tocava.
(cont)
~CC~

quinta-feira, janeiro 17, 2008

No tempo das princesas sós (II)


O Hipiricão deve colher-se no pino do Verão.


Assim são também os princípes flor, tão louros e com olhos tão azuis que parecem saídos dos contos de fadas. Este era o homem jovem que vivia entre as princesas, o rapaz que ao contrário dos outros não tinha escolhido engenharia mas sim educação. Preferia ser chamado só princípe, não fora Hipiricão ser o seu primeiro nome. O seu maior dom era a forma como o violino lhe respondia quando falava com ele.


Aos risos doces e loucos de Perpétua (roxa) e de Tília juntavam-se os de Lucilima e de Rosa(brava). Lucilima era tão loura e tão branca que seria uma fada não fora ser também redonda como uma lua cheia. Rosa era tão pálida e com um cabelo tão preto que parecia a Cinderela, não fora ser magra e ossuda e dona de uma voz fininha de gata brava. O desejo de viver das quatro era tão grande que nunca poderiam ser princesas mas o cruzamento desse desejo com a inocência e a crença no seu poder de mulheres jovens, fazia delas seres com asas e olhos mágicos, em tudo personagens de contos fantásticos. O rapaz seguia-as com se a luz delas o pudesse iluminar também.

Os cinco teciam cumplicidades, trazendo confidências para o crepúsculo, enquanto a água para o chá fervia. Quando não falavam sobre o passado, não desenhavam o presente, imaginavam formas de no futuro nunca mais se separarem. As princesas e o princípe só queriam, por ora, o toque leve da brisa no rosto a anunciar a Primavera.

Isto foi antes da chegada do segundo Verão, porque o primeiro suportaram-no bem, molhando nas fontes da cidade os seus lenços bordados de cerejas para com eles humedecerem os lábios secos.
(cont)
~CC~

quarta-feira, janeiro 16, 2008

No tempo das princesas sós(I)


Era uma casa escola grande e quase em ruínas e nela estudavam as princesas, quase todas princesas sós. No limiar de deixar a sua adolescência as jovens mulheres sentiam na nudez da sua pele o quanto a solidão lhes pesava. Algumas tinham deixado para trás os seus primeiros amores, mortos na entrada desta outra idade, morto o seu encanto de rapazinhos, era de homens que falavam agora.

Teciam cumplicidades em noites inteiras de palavras trocadas, entre mil bordados entrelaçados de luzes ofuscantes e aproximações de negrume, entre panelas de comida fumegante mal cozinhada pelas suas mãos principiantes e copos primeiros de vinto tinto tirados da adega de um pai ou avô mais distraído ou permissivo. As princesas estavam momentaneamente sós, a duração daquela solidão oprimia a tempestade que os seus lábios guardavam, mas ao mesmo tempo gozavam daquele tempo entre mulheres, um tempo só delas.


Na casa grande das princesas sós elas alinhavam letras em livros gigantes e treinavam para as mestras de meninos escola que um dia iriam ser. Os seus olhos eram grandes poças de água onde os arbustos selvagens cresciam e o seu riso era tão tonto e tão forte que parava os homens na rua. Elas riam deles, insinuando o desprezo que na verdade não tinham.


Tília era a princesa mais recatada entre todos elas, mas o tom moreno da sua pele escondia um lume por atear. Nunca saberemos se isso aconteceu. Perpétua era a princesa que há muito deixara a casa dos seus pais e vagueava entre pontos num mapa, diziam dela que muito sabia e assim parecia, mas no fundo guardava mil recatos na sua pele branca e entre muitos medos, o de amar também lá estava. Nunca saberemos se chegou a amar.


Se um tempo triste pode ser feliz era assim o tempo delas.

~CC~

terça-feira, janeiro 15, 2008

Nariz(es)

Ela falou baixinho sobre aquele menino hiperactivo, baixinho do mesmo modo que lhe estende a mão todos os dias. Numa outra sala seria o terror, ali é apenas um rapaz com excesso de energia. Não se lhe dá comprimidos para o adormecer, procuram-se corredores para que essa energia se possa canalizar como lugar de luz em vez de noite escura. Escreveria sobre todos os outros, não fora ainda saber deles tão pouco, não fora eu ser uma visita.


Os meninos e meninas, nos seus 6 anos acabados de acontecer, escrevem nos papéis que colam nas paredes para que serve o nariz, essa obra que parece inacabada no meio do nosso rosto.
Com o nariz posso:
...sentir o cheiro da terra molhada
...cheirar o bolo a cozer no forno
...sentir o cheiro da camisola lavada
...sentir o cheiro do pão quente


E o nariz, entre os meus dois olhos, torna-se de repente obra acabada de valor pleno e esplendoroso.
~CC~

segunda-feira, janeiro 14, 2008

Vou contigo


Ela tinha apenas seis anos e dava-me a mão quando eu escrevia no quadro e ficava assim de mão dada comigo, calada e quieta à espera que eu terminasse a tarefa para lhe dar atenção. Um dia a mãe dela disse-me: ela gosta tanto de si, leve-a consigo, leve-a para sua casa. E a menina dizia-me o mesmo. Sabemos como a miséria pode vestir roupas diferentes e aquela era assim aquela dádiva dolorosa. Nos meus vinte e poucos anos não tinha sequer casa para onde trazer aquela menina, mas sempre pensei um dia trazer uma, uma dessas meninas que espera por nós num canto, com os olhos abertos, à espera que na mão que lhe damos acabe a tortura em que se tornou a sua vida.


Anos, estes anos depois vi mães potenciais no desespero das suas barrigas vazias não lhes trazerem meninas nem meninos, desesperadas pela ausência desse fruto, de olhos tão tristes como os das meninas sem mães. Quantas vezes não pensei como se podia dar esse encontro na ausência de tudo o que o formaliza porque o que formaliza significa na maior parte das vezes tempo, muito tempo para quem procura e para quem espera.


R nunca foi um rapaz de muitas esperas, há muito que decidiu inscrever o seu desejo de ser pai na procura de uma criança só, na procura por todo o mundo e por meios legais, naquilo que se designa como um processo de adopção internacional. Para as estrelas de cinema parece fácil, mas para os outros não é assim tanto. Esta procura tem dois, quase três anos e algumas desilusões no caminho, chamadas que resultavam em coisa nenhuma.


R construiu a sua casa peça a peça pelas suas próprias mãos como uma obra prima e sonhou que naquele quintal grande poderia juntar-se o riso de uma criança ao canto das aves, ao miar dos gatos e ao balido das cabras. Quer adoptar sozinho e é homem e esta diferença face ao comum, é quase fatal. Eu própria quis muitas vezes segredar-lhe por um ouvido a impossibilidade desse desejo, ao mesmo que pelo outro lhe queria soprar esperança.


Ontem partiu pelo oceano, levado por um sinal. Diz que voltará com uma menina de três anos, uma dessas meninas de olhos parados nos vidros, à espera que na sua infância cresçam finalmente flores. O julgamento está marcado lá e só o nome arrepia porque é desprovido de sentido para um caso como este, devia ser outro o nome a dar a esta cerimónia de aprovação de uma relação para a vida toda. Tremo por ele porque já fui testemunha num processo de adopção e não esqueço as perguntas que me fizeram: o casal tem condições? o casal não tem conflitos? o casal não tem discussões? a mãe é estável psicologicamente?


Espero que saibas dizer-lhes o que é o amor. Espero que aumentes a minha família com mais uma menina. Já lhe chamamos Rita, porque todas as meninas da nossa família são Ritas embora nenhuma se chame assim, mas isso é já uma outra história. E tu também não és da minha família mas sabes que és, que és mais que muitos outros, que praticamos entre nós um conceito de família baseado na força das redes.

Espero ansiosamente que voltes para que possa conhecer a Rita.

~CC~

domingo, janeiro 13, 2008

Guarda-rios e estuários (VII)




Menina Almar que eu fui até as roupas estalarem junto ao meu peito mulher, sonhei sempre.
Sonhei com um espantalho de espantar a tristeza dos olhos da minha mãe.
Hoje olho o meu rosto no espelho: é igual ao da minha mãe.
Sonho na mesma com esse espantalho.
~CC~

sexta-feira, janeiro 11, 2008

Azul claro oceano


Podemos começar a pensar no azul claro oceano, lugar ideal para os corpos abandonarem o cinzento dos dias e se tornarem transparentes e voadores. Apenas porque Professorinha nunca me tinham chamado, muito menos acrescentando-lhos outros nomes igualmente doces e aromáticos.

~CC~

quinta-feira, janeiro 10, 2008

O tempo

Anos, passaram anos, não os contei. Há um manto de tristeza que o cobre. É um pó tão fino que quase não se dá por ele. E no seu sorriso há uns olhos que não brilham. Uma vida normal a dele, a lenta anscensão na carreira, o estender da família como a rede onde se enfia o corpo, a ausência de rupturas afectivas. E a tristeza, de onde vem ela? No tempo da nossa amizade era sempre Verão, eu sei. E eram vinte os nossos anos, havia um rio, um cerejal, uma serra. Ele era o melhor a construir tendas e cabanas e a tecer com redes os edifícios de cena onde brincavámos com os míudos a fazer teatro. Agora encontro-o envolvido nas luzes baças de um centro comercial e sei que onde trabalha a luz é ainda mais escura.


Acho então que é por ser Inverno que está triste, é a chuva que o alaga e o ensopa, já não é o pó mas é o frio do seu casaco molhado. Mas depois reparo que está seco, que nenhuma pinga lhe escorre da pele. Os olhos não choram, os olhos não riem. Reconheço, contudo, no modo como fala baixinho e no tom de voz doce o mesmo rapaz que tinha sonhos grandes, ainda maiores que os meus. Preciso de saber o que o traz triste. E ao mesmo tempo acho que é melhor não saber, é melhor deixá-lo arrumado no tempo das cerejas, no tempo em que o seu riso brilhava.

~CC~

A saúde da Ota em Alcochete

Meus senhores excelentes, excelentissímos...é preciso que analisem com cuidado a vossa audição, vulgar capacidade de escuta. O povo anda nas ruas a bramir cartazes e a transpirar desespero para as rádio-televisões-blogues é porque lhes estão a fechar os lugares da saúde de todos os dias, aquela que se faz de saber que crianças e os velhos vão melhorar ao fim de três-quatro dias se tomados os cuidados necessários e feita a medicação simples. O povo não anda nas ruas de canto a canto do país por causa da novela Ota-Alcochete, arrastada até à exaustão por interesses vários, esgrimidos como se a ciência fosse acima de qualquer suspeita e até superior a Deus.

Concentrem-se na escuta, é preciso escutar não apenas as vozes dos empresários e dos burocratas, mas as vozes que se ouvem na rua, nos autocarros, nas praças. Essas vozes, senhores excelentíssimos, o que interrogam é porque é que as crianças passaram a nascer a mais de 100 Km de distância. É que senhores, os estádios de futebol ficaram tão perto, assim plantados pelo país todo, como se fossem efectivamente necessários... e assim torna-se difícil compreender.


Senhores, o povo não está a entender porque é que eles fazem perguntas sobre o emprego e sobre a saúde, problemas que são simples, quotidianos e de todos e suas excelências mostram maior preocupação com o BCP e com o novo areoporto. Se é que preocupação é a palavra que se pode usar para tanto ruído, muitas vezes imperceptível.


Senhores, escutar é um exercício simples, trata-se de sair à rua e colocar o coração perto dos ouvidos.
~CC~

quarta-feira, janeiro 09, 2008

Jogo Infantil



Ela fez da sua pele uma armadura de metal onde escondeu o seu coração. Ele julgou ser o engenheiro perfeito que sabia desapertar todos os parafusos. Ela via o modo como ele se aproximava do seu coração, deixando para trás cada um dos parafusos, vitorioso. Ele perguntava se estava quente ou frio no lugar em que se encontrava e ela dizia sempre quente mas ele nunca achava o coração, primeiro porque ela o mudava de lugar e depois porque o dissolveu no seu sangue para que ele o procurasse para sempre.

~CC~


terça-feira, janeiro 08, 2008

Guarda-rios e estuários (VI)


Um homem Almar. Depois deles terem morrido pouco a pouco de uma doença sem nome, procurei sempre encontrar um. Não, não é verdade. Às vezes esqueci-me eu própria da tribo a que pertenci e amei outros homens que em nada se assemelhavam ao que procurava. Ao que procurei sempre mesmo quando deixei de procurar. Os homens Almar estavam longe da perfeição dos princípes mas eram alegremente como as árvores. Davam sombra, alojavam pássaros, viajavam sem sair do mesmo lugar, morriam sem água, tinham braços compridos bons para o amor. Amar em Almar era procurar o melhor leito do rio para ver com o outro a limpidez da água. Havia também o crepúsculo, o modo de se esperar por ele, a melhor altura do dia para fazer amor e de quando em quando fazer nascer dele crianças. Eu vi o amor em Almar mas cresci já na sua perca, por dentro do seu fim. Mas tudo o que inscrevemos na nossa memória tece dentro de nós a teia da qual não poderemos sair.

~CC~

segunda-feira, janeiro 07, 2008

A ardósia da escola primária

São apenas duas salinhas num bairro de periferia, outrora ficava no campo.


Chegou o tempo de entrar devagarinho nas salas de aula para me inebriar com as ardósias e os riscos pequeninos que os meninos fazem nelas. Nem sempre este papel é fácil, por mais que não queiramos sabemos que as mãos e as vozes lhes vão tremer ligeiramente, conheço-lhes o olhar na estagiária que um dia também fui.


Dois dos meninos abraçaram-se a mim no final: uma menina muito magra e pequena com olhos redondos e pretos e um menino cigano, grande e desengonçado. Dois abraços que não esperava assim na primeira vez. Só as crianças nos conseguem dar abraços destes sem nos conhecerem.

Amo presenciar a aprendizagem a acontecer enrolada no riso da infância, mesmo quando ela traz também dor, quando é difícil. E aqui, a aprendizagem acontece no meio dos pedidos insistentes de leite no balanço do final do dia. Há lugares assim, em que o leite da escola é ainda o consolo maior do fim de tarde.


Ficam-me os abraços de meninos assim ao primeiro olhar.
~CC~

domingo, janeiro 06, 2008

As estrelas da dor



Imagem captada em: http://lauroantonioapresenta.blogspot.com/2007/12/cinema-promessas-perigosas.html


Como se fosse um vírus com o qual se nasce, como se fosse um mau olhado vindo no toque de uma bruxa, como se fosse um mal ao qual não se pode fugir. Os rapazes que nascem no seio daquelas famílias sabem que terão que dar provas para que um dia lhes tatuem as estrelas nos joelhos, nascem com elas mas permanecem invisíveis até que um dia virá o exame final e com elas o sinal. Os homens das estrelas nos joelhos não se ajoelham, é esse o sinal tatuado para sempre.


Ganharam as estrelas provando que sabem escravizar e maltratar mulheres, sabem assustar negociantes para lhes comprar os produtos por um preço ínfimo, sabem espalhar todos os pós e todos os líquidos proíbidos e malignos, sabem cruzar e a fazer cruzar carne humana pelas fronteiras como se elas fossem apenas linhas.

Há um pequeno sol a alumiar tanta escuridão, há um grito de revolta a bater contra a porta fechada. Mas é pouco, sentimos que é muito pouco o que se faz perante o poder que têm as estrelas nos joelhos. Mas é preciso acalentar aquele pouco que nasce inocente na barriga da mulher jovem e mãe em pleno sofrimento, Há ainda assim um ser pequeno e vivo que respira e que no seu respirar nos cobre de esperança.

~CC~

Nota: Talvez não pareça uma crítica de cinema... mas é. Não deixem de ver o filme "Promessas Perigosas" de David Cronenberg. Para mim sempre no Charlot que é o meu cinema Paraíso.

sexta-feira, janeiro 04, 2008

Em Lisboa...


Todos temos os nossos pequenos excessos, uma espécie de sal gema no sangue.

Um dos meus era pensar que quando eles partiam levavam com eles todos os corações livres e selvagens. Era pensar que estava dentro dos seus mapas, que bebia água em pequenas gotas nas paragens pelo deserto, que via com os seus olhos o céu desenhar-se inteiro em estrelas, que cruzava os rios banhando os jipes e com eles a alma.


A poesia das coisas é um pó frágil, sopramos e ele levanta-se e espalha-se pelo ar e tudo se torna cru e real. Os meus heróis estão parados em Lisboa e nunca chegarão a Dakar. Os meus heróis não são aves capazes de qualquer voo, são seres humanos assustados num terreno que já não era apenas aventura mas também negócio. Os meus heróis estão presos da ameaça e a ameaça parece ser séria para os parar. Os meus amigos voadores, pequenos seres frágeis com olhos de aventura, um dia chegarão a Dakar. Por ora, há que olhar para os motores parados e perceber, perceber que fora dos nossos casulos há gente nesses e noutros territórios presa da mesma ameaça que eles. Ou de outras, tão assustadoras ou mais que ela.


O céu visto no deserto, já sonhei com ele.
~CC~

quinta-feira, janeiro 03, 2008

Que pensar...do que se passa no Quénia

Às vezes não sei qual é o lado onde me devo colocar. Já foi mais fácil. Às vezes não sei o que pensar.


Em África tem sido muito difícil que as eleições não terminem em sangue derramado, vidas inutilmente perdidas. Exportámos do ocidente convictamente o modelo, como se a Democracia se pudesse instalar em qualquer parte do mundo, como se nenhuma dúvida pudesse existir. Eu hoje tenho tantas dúvidas. Será que aquilo que é um princípio para o governo da humanidade: o povo poder eleger os seus governantes-pode assumir formas diferentes de se concretizar para além dos papelinhos nas urnas com a indicação de voto? Penso noutras formas de concertação das diferenças, das tendências, dos interesses. Penso que se poderiam encontrar outros modelos mantendo o mesmo princípio, que nos conformamos demais com o que já existe, como se esta nossa Democracia fosse o modelo acabado da perfeição. Antigamente os povos e sobretudo as etnias tinham outras formas de concertação dos seus interesses e nem sempre era a Guerra a solução, às vezes vivia-se em Paz. Mas tenho dúvidas, tenho também dúvidas sobre os modelos alternativos que passam, por exemplo, por concílios de chefes (antigos sobas, reis ou chefes tribais).


Sei também que a informação que nos é dada nunca é suficiente para compreender nada, é assim com o Quénia, como antes foi com o Paquistão. Vemos o sangue, mas pouco sabemos do que o faz correr.


Queria saber mais, compreender melhor e sobretudo que cada coisa não nos fosse oferecida como inevitável, como se fosse o único caminho, a única solução. Queria pensar para além da tristeza que sinto com estas imagens. É que o meu coração bate a sul.
~CC~

quarta-feira, janeiro 02, 2008

Ainda as prendas e os desejos


Desenho de Gémeo Luís
Retirados de: http://www.casjm.com/conteudo/expanteriores/c_gluis.html


Ainda trago comigo os restos da festa. Pensamentos em torno das prendas e das passas.

Não gosto de classificar o que é melhor, ou dizer sequer " o melhor" (uma moda que já chegou aos blogues, presos de todo o tipo de concursos). Mas de dizer "gosto muito", repetir e repetir "gosto muito".

Gostei muito de receber a primeira edição do João sem medo, viu ela primeiro o mundo que eu, uma vez que saiu fresquinha em tinta em 1963. O poeta é o meu primeiro poeta, o primeiro livro de poesia que tive foi o dele, uma edição antiga de capa azul que perdi na mudanças de casa. Não há herói mais anarquista, mais tonto, mais humano que o João sem medo, sobretudo porque ele tem medo. E depois porque a sua luta é tão grande que ele apesar de não capitular, mostra fraqueza e descansa de quando em quando. A cena final em que exausto de tanto batalhar para que o seu povo não chore tanto e faça mais pela vida, ele pede à mãe que lhe faça um jantarinho e ela a chorar lhe faz bacalhau demolhado e lhe diz para se conformar, representa esse riso amargo com que se coze o bom humor. Não há utopia sem mácula, não há herói que não chore ou, neste caso, que não se renda a um bom bacalhau cozido (eu rendo-me todos os Natais, não obstante as notícias sempre preocupantes que nos chegam do mar do Norte). E gostei da atenção que se depositou como um abraço quente nesta procura da primeira edição da obra, é que as prendas não são só papel e laços, elas também nos embrulham.

Já custa mais abraçar as passas em desejos numa altura que há tanta gente para abraçar. Mas conheço quem tenha, nos seus onze anos, resolvido isso com tranquilidade. Primeiro: como não gosta de passas, só comeu uma. Claro, uma pode valer doze. Depois mesmo só para uma, não desejou nada, esqueceu-se. Que magia podem guardar as passas além de nós, das nossas mãos de criar e fazer desejos?

Gostei muito.

~CC~

terça-feira, janeiro 01, 2008

Mais novo, mais velho

Os dois rapazes, os meus dois rapazes. Tinha que os convocar aqui para o primeiro dia do ano, de lhes prestar homenagem, fazer-lhes uma vénia neste palácio azul, estender-lhes o tapete mil cores.


O primeiro é o mais velho e estreitei muitas vezes os seus caracóis loiros junto ao meu peito, contei-lhe muitas histórias para crescer, levei-o aos castelos para aprender desde cedo a sonhar e levei-o comigo para tantos lugares quanto pude, até que ele me disse já saber escolher por si próprio os seus destinos e me mostrou o quanto precisava agora de uma outra proximidade, essa que se faz de sabermos que o nosso lugar é já um outro e que os abraços se demasiado apertados só incomodam em vez de nos juntar. É agora um adulto a dar os seus primeiros passos e escolheu fazê-lo no Japão, é aí que tem o seu primeiro emprego pós faculdade. O nome que escolheu para o seu blogue é um indicador de quanto o desafio, a criatividade e o humor são os valores pelos quais pauta a sua vida.


O segundo é o mais novo e não sei que idade lhe dar uma vez que nasceu com cinco meses e três semanas, no dia 9 de Outubro de 2007. A noite da passagem de ano foi a primeira que passou em casa, fora das caixas de vidro onde cresceu, foi alimentado, abriu os olhos e nos deu qualquer coisa que parecia um sorriso. Sobre a mãe já escrevi muito, que ela decida agora trazer o seu filho para um lugar virtual para contar pelas suas próprias palavras como é que a luz que trazemos dentro pode ajudar a salvar vidas, essa decisão é uma decisão dela. A frase que escolheu para abrir o blogue do Ruca é sinónimo de que mesmo no tempo mais negro a teimosia de riscar azul é imensa. E precisamos riscar azul, a batalha não está terminada.


A nossa vida só ganha sentido no cruzamento com as outras.
~CC~