quarta-feira, setembro 28, 2011

Pesadelo

Estou velha.


Uso palavras tais como ritual de dominação e poder para falar das praxes.


Dominação?

Poder?


Eles não sabem o que é, quanto mais conjugar tais palavras medonhas com o divertimento das praxes.


As raparigas tratam-se pior umas às outras do que os rapazes as tratam, o uso da palavra gaja tornou-se corrente, quando era adolescente chorei quando ia a passar e um homem das obras me chamou assim, achei uma ofensa.

Amanhã estarão na minha sala e tenho que desfocar o olhar para não os ver cobertos de farinha, iogurte e outras matérias pegajosas com que andaram sujos e felizes.

Preocupo-me ainda, o que deve querer dizer que não estou velha o suficiente para olhar para o mundo com a indiferença que ele parece merecer. Não, tudo ainda me faz sofrer.

~CC~

quarta-feira, setembro 21, 2011

Fusos horários



Benguela, 2009.



Estas estranhezas do ser.

Amanhã vou nascer em Luanda, estão avisados, já que não tenho FB para anunciar ao mundo que nascem meninas louras e muito branquinhas do outro lado do mundo.

Hoje tocou o telefone, era um convite para ir para lá, de vez (ou quase). Conversas em torno da dupla nacionalidade, deixar tudo.

Não é desta, o coração não bate com aquela certeza. E o dinheiro não é coisa que me chame.

Tempos curtos talvez, será que já é possível tomar banho na praia em Benguela?

Uma cuca na esplanada, mas não tão só como da última vez.

~CC~

segunda-feira, setembro 19, 2011

Pequenas notas

A vertigem de Setembro.

A persistência da crise, menos gente a entrar na escola a cada ano.

Entre o desejo de mar que nunca me larga e os lugares da vindima que me chegam agora no rosto da tua gente.

Os cadernos a acumularem notas, esquemas, ideias para novos rumos, mesmo em tempos já velhos.

Muitos rabiscos de reuniões nos cadernos de capa roxa que comprei para este ano.

E as histórias à espera, tanto tempo penduradas, brancas como os brancos que espreitam mais e mais a cada Outono.

~CC~

terça-feira, setembro 13, 2011

As marcas da areia preta (III)



Quanto tempo temos que esperar para nos surpreendermos a nós próprios? Quando a vida se desalinha, o que fazemos?


Tudo estava arrumado e quieto na minha vida, um destino tão meticulosamente traçado desde a adolescência. Até que enterrei as mãos na areia e levantei os olhos muito devagar, e quando eles se cruzaram com o sol na linha do horizonte, o teu rosto estava ali. Ou talvez eu soubesse há muito o quanto dentro de mim tudo estava desarrumado. Não foste tu, fui mesmo eu. Tu foste apenas a borboleta que passou com as suas maravilhosas asas de mil cores.


~CC~








sexta-feira, setembro 09, 2011

As marcas da areia preta (II)

Alguns seres humanos são atraídos pela semelhança que sentem em relação a outros, uma sintonia que os faz virar o olhar na mesma direcção. Outros seres humanos são fatalmente atraídos pelo que é diferente deles, fascinados pelo olhar lançado em direcções opostas. Haverá cambiantes, matizes, mas são modos antagónicos de sentir o mundo.


Penso nisto na Praia de Porto Pim? Sim. É uma praia pequenina, encaixada entre um bocado de cidade e um morro alto, uma praia com duas entradas e uma enseada sem barcos. E a areia é preta, cola-se aos nossos pés e parece que os deixa sujos. A princípio não fui capaz de me deitar nela.


Mas eu sou atraída pela diferença, e esta praia não fazia parte do meu léxico de mar e sol. Prolonguei assim o curso de formação para uma licença sem vencimento e depois para um emprego temporário. Vim por 15 dias, estou aqui há um ano.


(continua)


~CC~



quarta-feira, setembro 07, 2011

As marcas da areia preta (I)

Os meus 38 anos pesavam de tal modo na minha pele que eu sentia que tinha 80. E foi assim até Porto Pim, não por causa da água tépida que no Verão é uma carícia e no Inverno uma Brisa. Leonor é nome de mulher triste, isso eu sempre soube. Mas a capacidade de inverter o destino tinha-me sempre parecido impossível. Quando começo a contar esta minha história de enamoramento, toda a gente pensa que me apaixonei por um homem em Porto Pim. E há logo quem acrescente ao estás mudada, o encontro com um marinheiro no Bar do Peter. Mas meus amigos não houve marinheiros, em gin tónico, nem passeios ao largo.

É verdade que houve alguém que me abanou o meu mundo, mas foi um rapaz. Não, não passem rapidamente para a fantasia "Morte em Veneza". Não falei em paixão, nem em amor, apenas do enamoramento que ronda as almas perdidas, os destinos estranhamente cruzados. Procuramos a substância capaz de nos salvar sem sabermos exactamente qual é, o sal ou ou açucar que estranhamente nos faltam, ou o potassio, o magnésio, aquela coisa em falta no nosso sangue que o faz adormecer como se para ele não houvesse esperança.


Eu explico-vos mais um pouco: sou técnica de análises clínicas, daí este vício de retratar a composição interna dos nossos fluídos humanos.

(continua)


~CC~

terça-feira, setembro 06, 2011

Segredo

Meu amor, tenho uma coisa importante a dizer-te.
Creio que te lembrarás da roseira anémica do vaso da minha varanda, aquela que sobreviveu com dificuldade a este Inverno e não teve grandes melhoras na Primavera. Reparei hoje que tem um botão, um botão pequenino que faz adivinhar uma rosa vermelha que virá com a lua cheia.
É assim o mundo que nos une.

~CC~

segunda-feira, setembro 05, 2011

Mais Setembro



Não me pesa verdadeiramente a tua ausência, mas lembro-te frequentemente. Este é também o mês em que farias anos, e no dia do teu aniversário pensei em todos os aniversários que não estive contigo. Esforcei-me sem êxito por recordar a última vez em que te vi nesse dia, mas nada, nenhuma memória. Nos últimos anos nem eu te ligava, nem tu me ligavas a mim. E no entanto recordo esta mágoa sem sentir dor, é como se os últimos seis meses da tua vida tivessem trazido anos de ausência, e fixo-me neles, e na paz que o sofrimento te trouxe. A tua mão abandonada na minha, já tão fraca, e esse último sorriso.


~CC~

sábado, setembro 03, 2011

É Setembro


Como pude eu nascer num mês em que o Verão se despede?

Nasci no hemisfério sul, logo estou perdoada, está tudo explicado. Em Setembro, por lá não há despedida do mar. Um banho de mar é um milagre.

Mas aqui e agora é a nostalgia da retoma dos dias, e esta sombra que teimam em impor-nos.

Nas ruas não há protestos, mas dentro de nós há uma agonia teimosa a inflitrar-se entre o aumento do IVA, o desconto dito solidário no 13º mês e o fim das deduções na área da Saúde e da Educação no IRS. Ainda fico a pensar no que terá o governo contra os solteiros...a bem da familia, pois. As reportagens da crise, todos os dias, a toda a hora. E essa pergunta teimosa a martelar-nos, o que vamos exactamente fazer, para onde estamos a ir? E ninguém a responder, nada de convicente.

O ano começa bem, reunião de emergência para análise dos cortes na área da Educação que afectarão o orçamento da escola. A minha empregada que se foi embora no final do Verão ao final de apenas um ano de estadia, depois de anos a fazer tudo sozinha. A miúda com aulas de tarde no 10º ano, a adivinhar uma curiosa luta pelas manhãs.

Não, nem pensem que vou despedir-me do Verão. Ou se for, é muito lentamente.

E ainda esta palavra de combinação com Outono : resiliência.

E esta outra: grito. Grito, mesmo baixinho. Depois respira-se melhor.

~CC~