domingo, maio 30, 2010

vinte e cinco

Esperou 25 anos para mergulhar no segredo dos olhos dela, e chamou a isso uma não vida. Ambos casaram, ela teve filhos. Que chamaremos a essa parte da sua vida. Um longo intervalo. Um vazio. Uma espera. Ou antes uma séria tentativa de se esquecerem, de outros mergulhos. Ela ficou nos olhos dele a despedir-se na estação de comboio, a despedir-se. Mas ele nunca se despediu dela, em vez disso, lembrou-a todos os dias. É sempre assim quando queremos esquecer.

Mataram a mulher dele, nesse mesmo dia em que ela trazia a camisa às flores, e lhe tinha feito um chá de limão, doces os seus olhos. E ele também não pode esquecer, também levou 25 anos a lembrá-la. São estes os dois homens, os dois mergulhados, imersos nos olhos das suas mulheres. E tudo isto se passa num dos países mais belos do mundo, mais tristes, essa Argentina que canta a sua dor e a dança ao mesmo tempo. É um canto que abafa.

E depois de 25 anos sabemos que quando a imagem da porta se fecha diante de nós, há mergulhos de olhos nos olhos que esperaram por ser uma vida. E lábios, pensamos nos lábios deles, toda uma vida a começar.

~CC~
(Belo, muito belo o filme " O segredo dos seus olhos").

Diário a cores (X)

BRANCO

(Primavera a caminho de T-O-M, há um ano atrás)
~CC~

sexta-feira, maio 28, 2010

Conto infantil

Pemba, Moçambique, 2007


Ia à procura da concha lilás, só a vira uma vez na praia, mas teimara em fugir debaixo dos pés, a onda tinha sido mais forte. Mesmo dentro de água tinha retido o brilho da sua cor. Não há conchas lilazes, repetiu para si uma e outra vez. A praia nunca existiu. Eu não estou à procura de uma concha. Eu nunca apanho conchas na praia.

E nas noites de insónia aparecia a concha, tinha deixado o mar e tinha-se tornado um passarinho, cantava com canto lilás. Espera por mim, vou voar contigo. Mas ele ria-se dela e das suas asas cortadas. Espera por mim, quero ir contigo. Mas ele não esperava, não tinha esperado. Vou agarrá-lo, dar-lhe migalhas, e quando ele as vier comer, vou prendê-lo a mim.

E então viu com clareza a estrela do mar laranja, absolutamente linda, nadando e ondulando a 10 cm dela em pleno azul, aquele azul transparente da praia de Pemba. Um simples movimento de mão e teria apanhado uma estrela do mar, uma linda estrela do mar laranja. E ficou a vê-la afastar-se, incapaz de lhe tirar a vida para a guardar depois seca e morta num apartamento do ocidente.

O seu destino não era ter. As conchas na areia, o pássaro no céu, a estrela no mar. Para ela ficava apenas o brilho, o brilho retido e apertado, um estremecer laranja-lilás bem misturado no seu sangue circulante.

~CC~

quinta-feira, maio 27, 2010

O que resta

Eis os teus olhos mortos de cansaço
o teu coração riscado e apodrecido
a tua voz sumida
as mãos trémulas.

Eis o teu corpo minado
as tuas palavras desconexas
o teu andar bambo
a tua memória lacunar

E quase nada para te dar
um carinho escavado no que resta
uma mão que mal se consegue encaixar na tua
um esforço para te agarrar

Eis o tempo a enegrecer a tua alegria
a doença a minar a tua autoridade
a pobreza a rondar-te a casa
a alucinação a esboroar-te o pensamento

E quase nada para te dar
uma sopa de supermercado
pão e queijo
talvez um bolo
o que resta do que poderia ter sido um abraço.

~CC~

Papelinhos, letreiros e murais

Não me lembro se na altura chamávamos "Básico" ao 7º, 8º e 9º, mas foi aí que aprendi o que eram papelinhos, essa síntese do mundo inteiro numa frase ou numa palavra que se tornava tão imperiosa de dizer a alguém que valia a pena correr o risco de ir para a rua. Alguns eram para rir(já viste os brincos que a stora traz hoje?) outros perguntas banais (vais para casa depois das aulas?) e muitos eram revelações de amor (A D gosta do Z). O mundo dos papelinhos corria paralelo ao das aulas, e quando se encontravam era mau sinal.

Duas ou três palavras chegam para dizer quase tudo, que o digam os anarquistas que têm as frases mais belas e filosóficas nos murais das cidades, algumas já meio apagadas pelo tempo, mas ainda latejantes no seu fulgor. E veja-se o letreiro que a Julliete Binoche apresenta quando recebe o prémio, tem só um nome, e não precisa ter mais nada. Em Setúbal, uma frase numa parede da avenida princípal resume o essencial do bater do coração: Kero alguém que me ame!(descobri que meia cidade já a tinha parado a ler). E sabemos que a Comunicação Social deu ampla cobertura a um Pedro que em todo o lado tinha escrito que procurava uma Inês.

Gostava de ter essa concisão, esse poder de dizer tudo em duas ou três palavras, mas não consigo. Enrolo-me nas palavras como se elas pudessem ser o meu cobertor, aninho-me nelas. Mas gostava muito de deixar duas ou três frases escritas pelas paredes, em certas paredes, certas ruas, certas frases. Se um dia sair pela calada da noite, já sabem ao que vou.

~CC~

quarta-feira, maio 26, 2010

Ter voz


Ter voz é também saber usá-la nos momentos certos. Uma voz feita mancha a grito negro em fundo branco: liberdade!
~CC~

(mais informação sobre o assunto aqui: http://sem-se-ver.blogspot.com/

terça-feira, maio 25, 2010

É que hoje fiz um amigo...

Foram mais de 600 Km num dia só, ida e volta pelo meu sul. Ao meu lado um quase desconhecido. E, no entanto, mais próximo que tantos próximos. Ele falava dos sonhos dele, de uma outra vida que desejava para si, cortá-la ao meio para se inventar noutro lugar, levando pouca coisa além das (poucas) pessoas realmente amadas (a sua mulher, e as suas filhas pelo menos de visita). E eu mandava-o calar para repetir as mesmas palavras que ele. Às vezes havia ligeiras diferenças: ele falava de cavalos e eu de cabras, ele falava do grande lago e eu de rios, ele falava de pessoas muito velhas, e eu pensava em viajantes, pessoas perdidas.

Quando nos despedimos, ele disse: fica combinado. Pois fica. É verdade que não sabemos para quando, nem se seremos capazes. Mas o mais importante foi o que ficou, um certo calor no coração, e a canção do Sérgio Godinho a ecoar: é que hoje fiz um amigo...

E eu que pensava ter os sonhos gastos de tanto os sonhar, e uma capacidade cada vez menor de fazer novos amigos.
~CC~

segunda-feira, maio 24, 2010

Uma coisa quase nada

Tinha olhos azuis e por isso pode ser moldada de barro para ser uma princesa, deram-lhe outro nome, outra língua, outra nacionalidade e ensinaram-lhe os gestos certos. Esqueceram-se de apagar algumas das suas memórias, poucas é certo, entre elas o paladar da sopa de peixe que a avó lhe tinha ensinado a fazer. Uma memória de rio. São as pequenas memórias que não nos deixam perder a identidade, só um cheiro, um paladar, um olhar que ficou.

E indo pelos rios ela viu que o seu coração batia, não era um pedaço de cinza. Depois deixou que os dedos de luz a acordassem e nasceu outra vez mulher, quase a menina que antes tinha sido.

(É assim, é bonito o filme "Em nome do amor")
~CC~

domingo, maio 23, 2010

A sua pele

É assim a sua pele. Nas cicatrizes, nas rugas, nas dobras do tempo, na antecipação da morte há ainda um não, um sonho a infiltrar-se, são as pequenas ervas a gritar vida. Há quem ame, há quem a ame até ao momento derradeiro.

~CC~

quinta-feira, maio 20, 2010

A desconhecida

Ela apareceu ontem, no fim da tarde quente, ligeirinha... infiltrando-se e instalando-se suavemente em mim. Apetece-me um cigarro, disse (eu nunca fumei). Um cigarro? Não há nem vestigío de coisa semelhante nesta casa, só se for folhas de loureiro enroladas.

Então um gin tónico (eu raramente bebo). Um gin tónico? A única coisa que há ali de semelhante é Grogue de Cabo Verde. Torceu o nariz, e falou-me no maravilhoso poncho gelado que lhe tinha sido oferecido numa casa em S. Nicolau. Mas esse poncho fui eu que bebi, respondi-lhe indignada.

Ficou mais calma com um sumo fresco de ananás coco, e a bonita vista do castelo.
~CC~

quarta-feira, maio 19, 2010

Fronteira

Será talvez por causa da consciência clara e gritante da sua velhice, como se ela de repente tombasse tragicamente nas nossas vidas. Como se ela nao tivesse acontecido devagar, a passar por nós a cada ano, os comprimidos sempre a aumentar nas caixas metálicas, e elas a diminuirem, sem poderem já comportar as novas doses. É verdade que estava a acontecer, mas também outras coisas nos aconteciam, coisas belas e coisas tristes que nos deixavam sempre um espaço menor, cada vez menor para os nossos velhos, os nossos pais velhos. Ainda assim, comecei a gostar cada vez mais de os ouvir, de demorar os almoços de fim de semana, de me deixar estar ali na facilidade do silêncio, não me custa ouvir.

E agora, a todo o momento recupero as imagens da menina que eu fui, e deles mais novos, mais sorridentes, ambos muito belos, ela muito loira e clara, ele muito moreno. E de todos os outros meninos da minha infância.

As meninas pretas com os seus cabelos muito arranjados em trancinhas variadas e as batas muito brancas, os olhos cheios de luz, as mangas sumarentas que comíamos depois da escola. Iguais eu e elas, e no entanto quando o meu pai chegava elas desapareciam todas como por magia, não podiam estar na casa da menina branca. Era a solidão.

Depois outro continente, os meninos das ruas pobres de Olhão, meio descalços, despenteados, cheios de piolhos, falando a mesma língua que eu e eu sem os perceber. E mesmo quando se riam das asneiras que diziam, mesmo quando se ofendiam, eu não os podia entender. Era a solidão.

Como custou romper essa fronteira entre mim e todos os meninos da minha infância, pertencer a alguma coisa, a alguém.
~CC~

terça-feira, maio 18, 2010

Talvez seja...

O sol voltou demasiado intenso, não obstante o quanto gosto dele, a sua luz entra-me olhos dentro, esgotando-os. Ou talvez seja antes o vento transportando tanta poeira ou quem sabe sementes que aqui teimam em encontrar um lugar para fazer florir estrelízias. Talvez sejam apenas lágrimas por chorar, é a falta de sal para os lavar. Ou é antes a maré negra que do outro lado do mundo sufoca a vida e alastra no meu sangue. Talvez seja a esperança a não querer nascer, ou um último delírio da ave do amor. Talvez sejam vestígios impertinentes de sonhos por cumprir.

E, no entanto, os farmacêuticos irão dar-me o colírio do costume.
~CC~

domingo, maio 16, 2010

Bolas de sabão

Poderia escrever dois ou três volumes com a sua vida. Se eu escrevesse livros. Se ele não fosse o meu pai. Oiço-o agora que a morte o espreita, e é como se olhasse ao espelho os nove anos da minha infância que passei com ele. Não são nove anos, é um tempo de terra vermelha para sempre na pele, é não poder esquecer. Todas as coisas que nunca esqueci mas estavam cobertas pelas lágrimas secas e pela poeira parecem estar ali, tão vivas, tão inteiras, tão dolorosas, tão luminosas.

Saltam de repente as duzentas galinhas que viveram um tempo no quintal e a banheira cheia dos seus ovos, vem o homem do carro branco para me levar de novo e me aprisionar, e até a doçura das bolas de sabão sopradas nos pequenos troncos de mamoeiro me parece estar ali, ao dobrar da esquina. Ele conta histórias, ele conta muitas histórias, são assim as pessoas que se tornam velhas e estão doentes, as pessoas que sabem que vão viver pouco tempo. E apetece mergulhar nelas, saber se tive mesmo infância, se aconteceu. Não sei se é apenas uma maneira de me encontrar ou apenas mais uma para me perder.
~CC~

sexta-feira, maio 14, 2010

Diário a cores (IX)

AMARELO(s)
de Ouro
(Sevilha, 2010)


quinta-feira, maio 13, 2010

Semi-breves (IX)

Em outdoor a moça gordinha olha-se no espelho de corpo inteiro que lhe devolve uma imagem esbelta, praticamente metade do que ela é em massa corporal. Algures há um produto maravilhoso que produz tal efeito, mas curiosamente nao sei qual é. Fixei-me no espelho, e dei por mim a pensar onde é que se venderiam espelhos como aquele, capazes de produzir alterações de forma e outros milagres afins. Portanto, deve ser boa esta publicidade.
~CC~

quarta-feira, maio 12, 2010

Só existir (II)

As grandes religiões monoteístas têm as mãos muito marcadas pela cinza, pela terra que queimaram para poderem crescer. São religiões de poder, mesmo nos Estados ditos laicos como o nosso. Essa aliança com o poder é que as torna potencialmente perigosas, e no entanto elas não lhe viraram o rosto para se tornarem simplesmente rosto comum, rosto do povo, bem pelo contrário. São grandes sistemas de dominação sobre o indivíduo, sobre a sua liberdade. Não se pode ser de uma coisa que é isto, que é também isto, não lhes posso pertencer.

Os Ateus acham que são capazes de dizer e quase provar que Deus não existe, a maior parte das vezes usando a Ciência como legitimação, a sua arrogância é quase tão grande como a daqueles que afirmam a existência de Deus. Não se percebem como gota de água num universo atrozmente desconhecido, e ignorando a profunda pequenez da existência humana, não se pode perceber a fragilidade do nosso existir. Desprezar os crentes não me parece posssível, e por isso também não lhes posso pertencer.

Aos Agnósticos talvez pudesse pertencer, não fora pensar que eles não são isso nem outra coisa, que são um meio caminho, um talvez, afinal um quase nada. E eu gosto de ser, então como ser uma coisa que não é?

O que eu gosto de ser é daquela mesma natureza que as pessoas que hoje orientaram em silêncio comovido o cego pelo labirinto dos corredores na estação do comboio, daquela solicitude contida e atenta. Ser alguma coisa de profundamente humano, e por isso triste. Ser alguma coisa de esperança, e por isso profundamente alegre.

~CC~

terça-feira, maio 11, 2010

Só existir

Setúbal, Maio 2010. caminhadas matinais. Foto da amiga C.

Só existir, sem Deus de nenhuma religião, sem clube de futebol, sem partido político. Vejo-lhes a festa nos rostos, nas vestes, no olhar, sinto-lhes a alegria a uma distância de anos luz. Tenho pena às vezes de não poder entrar na multidão, diluir-me num mar de rostos e de vozes, a minha identidade tão misturada na deles, como se um parto nos tivesse feito nascer ali. Deve ser boa a alegria, deve ser bom perder por um momento a razão.

Comigo não se passa nada, não há entusiasmo pelo Benfica nem por nenhum outro, não sou nem contra a vinda do Papa, nem a favor dela, não rejúbilo nem me revolto. Comigo não se passa nada, não tenho como me ligar aos outros. Minto talvez, algumas lutas pelos direitos das pessoas entusiasmam-me, ainda me maravilho com a utopia em forma de letra na Declaração dos Direitos Humanos. E é tudo, é quase tudo


Falta ainda a luz desta manhã, quando me deparei com vastas áreas cobertas de papoilas, talvez esse deslumbramento me possa unir a alguém.

~CC~

segunda-feira, maio 10, 2010

600

Um número redondo-a mensagem 600-que dedico às palavras dos outros, à companhia que por vezes elas são, ao(s) mundos que me trazem para dentro de casa, só isso é verdadeiramente importante na blogosfera: os horizontes.


Com o Café margoso viajo até Cabo Verde, um país que me fascina, onde gostava de viver uns tempos ou talvez para sempre. O seu autor é além de tudo o mais, uma pessoa do Teatro. E espero conseguir ir ao festival do Mindelo o mais breve possível, porque o teatro africano é outro respirar.

Com o Obviário, oiço a voz íntima de uma mulher a olhar-se ao espelho, mesmo quando é a realidade que ela olha. Simples ou complexa, mas sempre sem pretensões, igual a si própria.

Com o repórter à solta, o mundo é de facto uma viagem, quer se trate de uma cidade ou de uma pessoa, as suas palavras despem as coisas com uma profundidade tão intensa mas tão simples. É jornalismo de primeira.

Com o Teatro Anatómico as reportagens do quotidiano são os nossos olhos também, as coisas que vemos mas que nem sempre somos capazes de as dizer como ele as diz, e além disso há ainda as notas sobre livros e escritores, a alimentar qualquer um que tenha fome de saber.

Com a Merenda de Saturno mergulhamos em imagens muito belas e originais às quais se ligam relatos curtos de uma grande intensidade poética, talvez um lanche planetário de fumo doce amargo, triste e luminoso.

E com o Papel de Fantasia, há um jogo de imagens, personagens, palavras, num trilho que é tão lúdico quando lúcido.

Já não chega colocá-los nos favoritos, é preciso que a barra lateral se encha com a sua referência. E não tiro de lá ninguém, nem mesmo o Elefante Branco ou o Canto do Sul que fecharam os seus blogues, tenho esperança que ainda voltem para os meus horizontes (espero mais um tempo, ou deixo-os ficar porque assim são mais memória viva).
~CC~

domingo, maio 09, 2010

Diário a cores (VIII)


LILÁS
(Praga, 2007)

sábado, maio 08, 2010

Poesia dita


"Venha ler em voz alta na Casa Fernando Pessoa"
Ler Mário Benedetti, um ano depois da sua morte.

(Gostava muito! O que faço à timidez? Está totalmente domada noutras situações de exposição pública, mas...)


Papel mojado

Con ríos
con sangre
con iluvia
o rocío
con semen
con vino
con nieve
con llanto
los poemas
suelen
ser
papel mojado.

Mario Benedetti

sexta-feira, maio 07, 2010

Coisas sem nome

Primeiro ergueram as colunas, que pareciam frágeis. Depois colocaram à volta delas uma espécie de armaduras, intrigantes porque não lhes detectavámos a função. Ele disse que eram andaimes para trepadeiras. Eu achei que eram um apoio essencial para lhes manter a estrutura débil. Hoje tiraram-nas, não passaram afinal de uma estrutura passageira para ajudar a consolidar o cimento.

Somos assim, imaginamos sempre o que vai ser, não aguentamos não saber, não ter nome para as coisas. Se elas não têm nome, é melhor que morram para não nos acordarem angústias. Há poucos dias, C na mesa do café, povoada por casados e solteiros, todos de estatuto definido, perguntava-me, e tu o que és? E secou-me estranhamente a boca. Devia ter-lhe dito o quanto destesto jantares de casais, ou saídas de mulheres sós, o quanto detesto compartimentos estanques, casinhas. Dizer-lhe o quanto foi difícil ao longo da vida viver fora das categorias, às vezes só sobreviver fora delas. E é verdade que as experimentei, já tive uma aliança no dedo e um papel passado a designar outro estado civil. E, no entanto, a felicidade dentro delas não passa muitas vezes de um simulacro.

Fico portanto do lado das coisas sem nome, as coisas que são só coisas, ou para as quais invento eu os nomes.
~CC~

quinta-feira, maio 06, 2010

Rendilhado

Os bilros, esse matreaquar de madeira donde sai a renda. Essa mulher sozinha em convívio com a alvura dos fios. Há entre o seu tecer e o meu tecer a analogia das horas gastas sem dar conta.

E de quando em quando estas interrupções intensas na solidão dos dias deixam um lastro de exaustão emocional sem precedentes. Uma quinzena densamente povoada de gente, como há muito não acontecia.

Estes encontros, nenhum deles marcado pela tristeza, pela revolta, pela amargura, traços que tantas vezes marcaram o meus encontros de labor, mostraram-me duas faces, duas que são só uma e é a minha face. Ainda é possível fazer com que das minhas mãos nasçam estrelas, elas têm com elas a memória de uma alegria que não se perdeu inteiramente, basta confiar para que se ilumine o que em mim é ainda luz. Mas quando nos habituamos a ser pessoas sós, viradas para dentro em exilío de vozes, não mais deixamos de precisar desse silêncio. É como se ele nos viciasse. É a renda à nossa espera.

Regresso pois a mim, ao rendilhado interior dos dias.
~CC~

quarta-feira, maio 05, 2010

Pequenas asas

Estava sempre a repetir perante a insistência da professora face à demonstração da sua preguiça: não quero ser um escravo. Não era frase para um miúdo de 14 anos, que a atirava ao mundo como um tratado de filosofia para pobres de alma ou como uma terapia para dependentes da economia de mercado. Anos depois lá estava a arrumar carros, e quando a professora estacionou diante dos seus olhos, foi a correr abrir-lhe a porta com orgulho: está a ver, não me tornei num escravo! E o que és então? Perguntou-lhe a professora curiosa. Eu, respondeu espantado com a questão dela, eu sou um ser humano. Mas na verdade pequenas asas cresciam-lhe no lugar dos braços.
~CC~

Diário a cores (VII)

CASTANHO(s)
(Cáceres, 2010)
~CC~

segunda-feira, maio 03, 2010

Way (II)

Cáceres, Maio 2010

Procurei sempre nas ruas estreitas os vestígios de sol. Sei da sua sombra na pedra e na pele. Não é, nunca foi o cansaço dos caminhos a latejar nas pernas alguma vez um obstáculo. O maior obstáculo é o cinzento entrar dentro do vermelho sangue e deixar-se ficar como se ali fosse a sua morada. Há em cada tempo mais difícil um traço próprio, o desenho da dor nunca é exactamente igual, nem as lágrimas sabem ao mesmo, e isso quando existem.

Este é o tempo dos mais velhos nos pedirem um abraço que possa afugentar a sua doença, a sua terrivel solidão, é este tempo de os ver entrar no hospital com os seus olhos cinzentos. É tempo de lhes perdoarmos tudo o que não nos foram, de buscar no fundo do tempo as noites em branco que um dia nos deram.

E enquanto eles lutam pela sua vida, os mais novos esgotam-nos em mil pedidos cheios de alegria, frenéticos de Primavera, tontos da luz que a adolescência lhes traz aos olhos. Por uns momentos na cidade de pedra silenciosa num primeiro de Maio sem bandeiras nem gritos, deixei-me ficar para trás, apeteceu-me esquecer-me de quem eu prória era, renascer feita branco paz, limpa de feridas e de histórias, inteiramente pronta para dias novos.
~CC~

Way

Baixar as armas, abrir possibilidades de encontro, permitir alguma cumplicidade.
~CC~