quarta-feira, outubro 31, 2007

Costuras

Lembro-me de a ver curvada sobre a máquina de costura recuperando os panos com que ia fazer luzir os vestidos que eu ia vestir. Lembro-me de como a sua tristeza ao misturar-se nas flores de tecido brilhava e se transformava em luz. Tantos anos e tantos passaram e ela já não a usa mais. A máquina, tão antiga que poderia ser exemplar de feira de antiguidades, cruzou os mares e está hoje a dormir na dispensa dela.

Por sua causa e das mãos de dedos finos que tinha, nunca aprendi a fazer quase nada com as minhas. Das minhas mãos nunca saiu qualquer costura e tudo o que transformei em qualquer coisa para vestir (temporariamente) foi por arte de usar agrafos. Mais, se não fosse tão lunar, choraria sobre estas unhas roídas anos e anos a fio, pela sua falta de beleza e ainda mais pela incapacidade que com elas veio de abrir e fechar quase tudo.

Procurei assim por muito tempo alguém que acolhesse e transformasse a roupa de loja em qualquer coisa de meu. Às vezes coisa simples, como impedir que as calças, de tão compridas, se enrolassem nas pedras da rua.

Agora já não ia lá há algum tempo, mas sei que é sempre certo que além da roupa arranjada, é da sua simpatia que vou beber. Desta última vez, ela apareceu à porta toda salpicada de tinta branca. É meio metro de gente, mais pequena que os 11 anos da minha filha, e há muito que entrou naquela idade a que se vulgarizou chamar terceira. Nunca foi à escola e portanto não sabe ler nem escrever mas nunca se atrapalha nas contas e toma conta de um ou outro miúdo da vizinhança, a quem várias vezes vi incentivar ao estudo. E ontem, andava simplesmente a pintar a sua cozinha no cimo de um escadote, em actividade radicalmente livre. Quando ela, na porta da entrada, sem me ter conhecido de parte alguma e sem nunca me ter perguntado o que eu faço na vida, me sorriu salpicada de tinta branca, apeteceu-me deixar-lhe logo um beijo nas faces brancas-rosadas.
~CC~

terça-feira, outubro 30, 2007

Beleza em Benguela


Depois virá a noite e a luz da projecção irá concorrer com a da lua e a das estrelas, é cinema em África.
~CC~


risco nota: olhar disparado e fixado em Setembro 2007, no cinema Kalunga, em Benguela.

Os fantasmas e o futuro


Vi o filme no regresso de África, aqui no cinema (Charlot) do bairro que é simultaneamente o melhor cinema do mundo. Tinha muitas saudades de cinema, embora em Benguela tivesse visto um filme ao ar livre, num cinema, confesso, ainda mais bonito que o cinema do meu bairro. Contudo a sua beleza esfumava-se na fraca assistência, nos filmes sem estrelas e no uso frequente do palco para concursos de misses. Ora, o melhor cinema do mundo tem que se fazer de muitas coisas, entre elas um cartaz de qualidade acima da média.

Volto aos " Fantasmas de Goya" por causa dos fantasmas que o filme revolve no interior de Goya, na forma como eles atravessam toda a vida dele, regressando sempre para lhe mostrar o quanto um grande pintor é assim tão frágil como ser humano. E volto aos fantasmas por causa do Papa. E é Espanha no horizonte, país de sangue quente e controverso, de história pautada por conflitos vários, tão próximo de nós e ainda assim tão distante. O papa desligou-se do presente e do futuro e fugiu para o passado para beatificar aqueles que num momento terrível da guerra civil espanhola foram humilhados. Outros morreram também, tão injustamente como eles, e pelas mãos da igreja católica. Nos "Fantasmas de Goya" há uma rapariga que num restaurante recusa comer carne de porco por não a apreciar. Será acusada de ser judia, é humilhada e enlouquece gradualmente na prisão (para além de lá dentro ser repetidamente violada por um padre). Escusado dizer que a rapariga de judia nada tinha.

Não está em causa a injustiça do sangue que nestes casos se derrama de forma insana num e no outro lado da barricada. Não está em causa que o olhar do Papa possa ser condicionado pela religião que o molda, talvez se pudesse exigir um pouco mais, mas ainda assim é compreensível que queira chorar os mortos que acha seus. Mas uma coisa é que os chore, outra é que gaste mais tempo nestas lágrimas do que nos conflitos que dilaceram o mundo.

Está em causa que o Papa, em vez de olhar para o futuro, se satisfaça neste olhar para o passado, nesta missão adulterada do sentido da sua existência, nesta participação inútil no revolver da memória de um povo. No respeito e curiosidade pelos que pautam a sua vida por uma qualquer fé, mais valia que este fosse o tempo de enterrar os fantasmas e olhar pelo futuro.

Imagem retirada do blogue:
http://axasteoque.blogspot.com/2007/10/os-fantasmas-de-goya-de-milos-forman.html
onde também se faz um comentário realmente cinéfilo ao filme.

segunda-feira, outubro 29, 2007

Outono



Este é o tempo da partida dos homens e mulheres que amam a poesia, mesmo que nunca a tenham escrito. Há sempre tanta gente a abraçar a morte no Outono. É do cair da folha, mesmo que ele se atrase, como este ano. É a mistura do amarelo e do laranja das folhas com a terra que deixou fugir o calor e se tornou fria e mais escura. É esse apelo da tristeza a cair sobre nós como uma sombra. É a noite a chegar tão depressa que o entardecer se esvai num minuto do olhar.


Quando essas mãos escuras anunciam Novembro e ainda por cima não há água para lavar as nossas mágoas, procuro um refúgio.


E é então que me lembro que este é também o tempo dos doces e das compotas. Peço à minha mãe que me faça doce de tomate, prometo que lhe trarei quilos deles. Penso que eu própria arriscarei uma geleia de marmelo ou mesmo marmelada. Penso no doce de goiaba que tu fizeste, do cheiro delas apanhadas do teu quintal e que enchia a minha casa no final do Verão. Penso no doce maravilhoso de figo que um amigo faz. Penso nos doces do Casal, onde moram os meus rapazes do campo e nas saudades que tenho dos seus abraços.


E há ainda a magia das castanhas, do fumo delas a encher as ruas das cidades, do modo como as esfriamos nas nossas mãos para as saborear ainda quentes por dentro das nossas bocas.


E há a terra onde se pode preparar a sementeira, logo que feitas todas as queimadas.


Afinal o Outono pode ser tempo de nascer, sobretudo se a minha mãe fizer o doce de tomate e se os rapazes, apesar da distância, mantiverem quentes os seus abraços.


~CC~

sábado, outubro 27, 2007

A escrita

Lembro-me que as primeiras palavras quiseram logo nascer como se pudessem rasgar horizontes até à poesia. Enchia caderninhos pelos cafés, imitações mais ou menos próximas dos poetas que admirava. Recebia incentivos vários, sabia-os roubados mais ao carinho do que à qualidade das letras que alinhava. Depois a escrita tornou-se o peso de todos dizerem que o meu caminho deveria ser aquele. E claro que não foi. Fui para o campo aprender os nomes científicos das folhas das árvores e o modo como os animais deviam ser cuidados. Algumas pessoas manifestaram a sua desilusão perante caminho tão arredio. De dia ia para o campo, à noite ia para o teatro e a escrita a afastar-se cada vez mais de mim como destino profissional.

Mais tarde ela voltou e com ela um primeiro livro. Nada de poesia, nada de prosa poética, nada de intimidade. Era a investigação e a ciência que tomavam os meus dias e a escrita vertia-se em hipóteses, em números lidos em questionários, em entrevistas ligeiras ou prolongadas, em observação mais ou menos participante. Teve um tempo essa minha escrita, cansei-me dela e do mundo que ela me trazia, nem sequer tenho grande orgulho do nome que por aí fui deixando nos escritos mais ou menos científicos. Mas gosto muito do conhecimento, isso não está em causa. E volto regularmente à academia para o confronto com os pares e para perceber como são hoje os contornos e os desenhos do saber.


A escrita é agora um risco, uma ardósia incerta. O ano passado experimentei escrever manifestos, escrevi um em equipa para o CIDAC e gostei muito, a nossa bandeira era(é) a Educação para a Cidadania Global, conceito semi-inventado por nós e semi existente. E agora crónicas mensais para um sindicato de professores, o que julgava impensável em mim, tão avessa a filiações, anarquista não fosse o anarquismo ser também uma filiação. Fundamental para a escrita foi não me terem colocado nenhum limite.


Não sei já muito bem o que chamar à escrita que uso. Vou-me desafiando, é apenas isso.

A primeira das crónicas em http://www.escolainfo.net/
~CC~

sexta-feira, outubro 26, 2007

Guarda-rios e estuários (II)


Eu fiz parte dos Almar. Era uma tribo simples cuja função era cuidar de que os rios chegassem sempre ao mar. Era necessário saber que nenhum obstáculo impedia de forma definitiva esse caminho. Admitiam-se os açudes e desconfiava-se das barragens, pelo receio que o desvio do curso da água e a sua retenção impedisse a união necessária das espécies e a fusão do doce com o salgado.


Viviam todos nas proximidades dos estuários, em grandes tendas de lona azul. Os olhos, de cor indistinta, eram líquidos e os cabelos eram quase vermelhos por causa das cores de tingir os panos. As mulheres ocupavam muito do seu tempo neste ofício de tirar o branco dos tecidos e depois vendiam-nos como tapetes de flores nas feiras mais próximas. Eu fui uma criança Almar mas já não cheguei a ser uma mulher Almar. No entanto, continuo a procurar em segredo o curso das linhas azuis nos mapas do futuro. Tenho também ainda o triângulo desenhado com a seiva das árvores.

~CC~

quinta-feira, outubro 25, 2007

Construção

Não preciso de tijolos.

Quero que tragas à construção da casa a luz dos teus olhos de menino do campo, a rebeldia da tua juventude junto dos rios, a paz que te chegou ao envelhecer. Se puderes sê consistente como a àrvore que muda a cada estação e em cada uma permanece igual. Assim poderei abraçar-me ao tronco mas apreciar a mudança da folhagem e o nascimento das flores.

Traz a viola para a homenagem ao povo pequenino que torna brancos e eternos certos lugares no mapa.

~CC~

quarta-feira, outubro 24, 2007

Ofício da partilha

Este é o terceiro ano que estou com eles, mas tem sido muito devagar que os vou trazendo até mim e vou chegando até eles. Com os adultos é assim, os abraços são mais demorados e os corações defendem-se. É legítimo.


No chão do ginásio espalhámos os nossos medos. O medo da morte ganhou ao medo da solidão, ao medo de desiludir quem se ama, ao medo de morrer primeiro que os filhos, ao pavor dos insectos, falamos sobre todos esses medos, um de cada vez, em ofício de escuta que sei raro entre eles. A turma está polarizada em grupos e grupinhos que se ignoram e destestam. Hoje foi diferente. Mais tarde na profissão que escolheram terão que saber acolher pessoas que têm trajectos e histórias, é bom que saibam partilhar as suas. Não sei se sou professora ou psicóloga ou actriz mas estas fronteiras não têm agora muita importância, embora isto seja muito díficil de trazer para a academia das ciências.


Os medos, os nossos medos, em que espaço podemos falar deles. Estive quase a terminar quando as lágrimas chegaram a alguns olhares, mas senti que queriam prosseguir por este percurso colectivo ao centro de cada um e pouco a pouco os olhos secaram.


É destes pedaços de nada que vou tecendo as teias que me sustentam.
~CC~

Guarda-rios e Estuários (I)

















Guardei-te no instante em que te vi.
~CC~

terça-feira, outubro 23, 2007

Desencontro(s)

As minhas bandeiras são panos enormes postos no céu. Deixo-lhes o meu coração com tal intensidade que nunca descanso. Isso às vezes faz-me chorar. Tenho a dimensão da minha radicalidade e exigência no confronto com o mundo e a medida da dor que ela me traz.


As tuas bandeiras são tiras de pano coladas ao chãos que constróis e reconstróis como se fossem tapetes escolhidos para combinar com a mobília. Tu não choras, não podes. Tu recuas sempre à medida do que é inteligente fazer para amortecer o choque e a queda e com isso moderas sempre o impacto da dor.


É difícil dizer quem está certo. Provavelmente nenhum de nós.

O único problema é que às vezes precisava de alguém que levasse os meus olhos a passear quando eles se cansam.
~CC~

Lugar Almar



Esta é uma história para ti que nasceste dentro de um grande amor. Hoje esse amor não é mais do que uma brisa suave mas que ainda faz parte de mim e me trouxe o que de mais precioso tenho: o teu coração.


Não amealhei grande coisa até agora e sei que não o farei, na ausência de outras coisas que felizmente sei que também não esperas, vou deixar(ndo) para ti esta primeira história. Não sei se escreverei outras, mas esta é importante porque é sobre um povo do qual eu fiz parte e tu também fazes. É sobre o modo como passamos pela vida construindo em idas e vindas uma identidade. É sobre o modo como nos transformamos em rosto, em palavra, em corpo.


Perguntarás mais tarde se eu vivi realmente num lugar Almar. Serás tu a dar essa resposta.
~CC~

Nota: "Guarda Rios e estuários" é a história do povo Almar, na sua origem ela começou a ser escrita no blogue "ninguém lê", mas agora vou trazê-la para aqui pouco a pouco, para aqui conhecer o seu fim, pois gosto de histórias com princípio, meio e fim. Aos amigos que foram lendo e sobretudo aos que tanto encorajaram a sua escrita, um abraço Almar.

segunda-feira, outubro 22, 2007

Ser



Imagino ter esta seiva para poder com ela encher as minhas folhas e fazê-las dançar no vento.

~CC~

domingo, outubro 21, 2007

Esperança

É Outono Outubro deste lado do Equador. Pergunto pela esperança. E depois ando pela praia para cá e para lá. Está tanto calor que é possível tirar a roupa e entrar no mar. A água quente e as ondas quase nulas desmentem o tempo do calendário, é bom deixar o corpo seguir a água. Das muitas conchas na areia escolho uma para trazer, escolho-a pelos seus muitos veios rosa. Gosto sempre de trazer uma concha para casa.~CC~

Luta pelo sol na pele

Esta dor a irradiar o nosso corpo é a mais dura das provas. De todos os lados chega o seu eco como uma sombra que teima em tornar os dias escuros. É preciso escavar fundo para trazer o sol até um lugar em que ele possa trazer alento à pele. O cansanço é às vezes muito para o fazer. Os dias tornaram-se agora palcos de uma grande batalha e as noites ainda mais. Resta pensar que todas estas experiências aumentam o capital da experiência humana e que a nossa dor nos torna mais próximos da dor dos outros e a nossa fragilidade nos torna mais capazes de acolher a fragilidade dos outros. Coragem é palavra murmurada até à exaustão, passa da dor de uns para a dor de outros. E com ela segue o o sol que ainda é possível trazer à pele, ainda é.
~CC~

quinta-feira, outubro 18, 2007

Nascer

Ela diz que quando morrer, virá buscar os instantes que não viveu junto do mar. Eu, que vejo no vento o azul dos seus olhos, penso que agora que ela já se foi, é aqui que a sinto nascer. E que é também aqui que eu venho nascer uma e outra vez, lavada neste sal líquido. Nascer, é este o verbo.
~CC~