segunda-feira, junho 30, 2008

Maternidade

O ano acabou e ela revelou-se esgotada, atrás do cansaço chegou uma maleita e mais outra. Mas os olhos nunca deixaram de brilhar e nem por um minuto a vontade de viver abrandou. Mesmo doente, vai dizendo sempre que está bem e ralhando os meus cuidados, dizendo-os excessivos. Ela está sempre boa, mesmo quando a febre passa dos 39.

É impossível não ter orgulho no A a Matemática e no A a Português das provas de aferição, nos cinco a cobrir todos os quadradinhos da pauta, nas tardes em que pediu para ficar em casa a estudar quando gosta tanto de rua quanto eu. Não houve prémio nem se falou em recompensas, muito embora venha a pedir desde há algum tempo para viajar, sobretudo este ano em que viu a mãe partir e chegar tantas vezes.

Mas o meu orgulho não teria sentido se visse crescer nela a arrogância pelos mais fracos, pelos menos inteligentes, pelos que olham a escola de um modo diferente do dela. Fez uma festa com uma das colegas quando soube que um dos alunos mais complicados da turma seguia com eles para o 7º ano. Fica igualmente feliz quando ganha nas corridas, quando a equipa da turma fica em primeiro num torneio, quando se enfeitam todos para dançar e cantar e ela faz bem e se sente bonita. Fica feliz quando vamos às compras e escolhe uma roupa que a torna elegante, quando o jantar é uma coisa que gosta, quando comentamos no seu blogue privado. O seu mundo é maior e muito mais completo do que o protótipo da menina boa aluna que faz dos estudos um objectivo de vida, chegámos à conclusão de que os 4 livros que lhe desapareceram este ano só podiam ser dela: dificilmente se queixaria do facto ou acusaria os colegas.

E há as contendas: a paixão pelos cavalos a pedir aulas de hipismo que eu recuso, a desarrumação a indiciar uma pré adolescência cada mais acentuada, o telemóvel a furar os bolsos das calças de ganga, a lua a levá-la por momentos para recantos aos quais não chego.

Queria agradecer-lhe isto de ser mãe dela. E queria que este prazer pudesse permanecer sempre como uma coisa imensa na minha vida.
~CC~

Senhora da Visitação

Quando o sol desce num dia de Verão abrasador numa pequena ermida no coração do Alentejo, enchendo o céu de uma luz dourada reflectida na cal das paredes, é impossível não acreditar que se a Nossa senhora existe, é claro que virá aqui para uma visita. Nossa Senhora da Visitação é assim o nome mais belo a dar à passagem de um qualquer anjo por dentro de nós. Abriu-se dentro de mim um futuro tão manso e tão intenso que parecia poder fazer desenhos sobre a realidade, tornando-a a própria matéria dos sonhos.

Depois a brisa passou nos meus olhos e pelos teus à hora do crepúsculo e deixou as marcas com que a memória tece para sempre os seus laços.

~CC~

quinta-feira, junho 26, 2008

De mãos dadas


Nunca poderei esquecer que o meu pai me dava a mão quando saíamos à rua, mesmo quando eu já não tinha idade para isso e não me ia perder dele, outras vezes passava-me um braço pelo ombro e trazia-me assim, como num ninho.

Nunca poderei esquecer como tu, ao contrário de tantas outras crianças, tinhas a iniciativa mal deixavámos a porta de casa, de nos dar a mão, de nos segurar com força, quase com medo de que te esquecessemos num lugar qualquer. Era a mão mais doce que já segurei, tão pequenina, tão minha.


Nunca poderei esquecer a mão permanentemente húmida de um rapaz que me fazia poemas e que queria ser meu namorado embora soubesse que eu já tinha um namorado, tinha uma doença que o fazia pingar das mãos e por isso usava sempre um lenço. Um dia, num passeio colectivo a Sintra, deu-me a mão e eu fiquei a pingar tanto como ele, mas não tive coragem de a tirar.


Nunca poderei esquecer aquele homem mais velho que há muito não dava a mão a ninguém na rua e que segurando a minha me disse: fico um pouco envergonhado.


Nunca poderei esquecer o modo como uma mão de uma colega que à minha se agarrou quando me sentia a desfalecer num lugar em que não tinha ninguém, me fez ter esperança.


E nunca quererei esquecer as noites em que adormecemos de mãos dadas e assim permancemos longo tempo até que o sono as desfaz. Talvez seja por causa delas que acordas para me salvar dos pesadelos.


São as mãos nas mãos que nos aquecem o sangue.

~CC~

terça-feira, junho 24, 2008

Prisão

Há imagens que perduram nos dias como alguém a gritar dentro de um pesadelo, mesmo quando acordamos parece que a aflição permanece.

Ela era uma mulher grande de um loiro que não consigo adivinhar se natural. Jovem ainda, nunca para mais de trinta anos, toda ela uma torre de marfim, um cofre forte, um lugar longe.
Levava uma criança de três anos com ela, loirinha também, mas pequenina e com um rosto bonito, quase alegre. A mãe trazia-a presa por uma trela, em vez da tradicional mão. Quando a criança se afastava dela para ver uma montra, ela não a seguia, nem lhe dizia nada, dava um puxão na trela que entrentando se tinha soltado mais pela pressão da criança. E assim foram andando corredor de centro comercial fora, perante a admiração de quem passava. Havia um silêncio onde me parecia ler reprovação, mas muda. Eu segui-a com os olhos muito tempo, tanto que confirmei como o comportamento da criança era igual a de um bicho preso, farejando uma coisa interessante, parando junto de alguém, para logo ser puxada para seguir caminho.

Ainda pensei em dizer alguma coisa mas não consegui encontrar as palavras certas, as que pudessem interrogar sem ofender a mãe-dona. Ou talvez ela precisasse de ser ofendida, mas dificilmente eu o conseguiria fazer. A imagem, essa não a consigo esquecer.
~CC~

segunda-feira, junho 23, 2008

Prova


Quando o Verão começa, o mar ainda está frio, embalado que foi pelo Inverno. O melhor modo de o provar é bebendo pequenas gotas na pele da pessoa amada. Quem diz pele, diz lábios.

~CC~

sábado, junho 21, 2008

Juventude (I)


Dizem que a juventude não pensa. Dizem coisas que não são verdadeiras. Já era assim quando eu era jovem, esta espécie de julgamento universal sobre as gerações não ajuda a incentivar o que de melhor há nelas, por muito que algumas coisas possam ser especialmente perturbadoras (por exemplo, o uso intensivo da tecnologia para diálogos de vazio).

Mas os jovens também são pessoas como tu, por escolha a viver e a pensar do outro lado do mundo.
~CC~

quarta-feira, junho 18, 2008

Vermelho-amarelo-verde


Mana, estive lá, no lugar onde os olhos das pessoas são os mais tristes de que tenho memória, talvez porque nunca tenha entrado num campo de concentração, talvez porque mesmo os olhos mais pobres que vi em África não eram assim. Não consigo lá ir sem me lembrar. É sobretudo o cheiro, aquele cheiro do azedo químico, parecido com o de enxofre que se sente em algumas termas, mas diferente porque este parece emanar da pele das pessoas. Depois de algum tempo falaste abertamente desse cheiro. O que é espantoso é que não me recordo das lojas, dos cafés em volta, da loja das flores, nem do café ao ar livre dentro do próprio hospital, não vi tudo o que agora vejo. Habitava em nós um sonambulismo, um vazio, uma tristeza que procurávamos a todo o custo afastar. E conseguiste mana, e conseguimos.

Jurei que voltaria lá como voluntária, ciente de que o meu saber poderia talvez ajudar alguma coisa. Temos estas crenças de devolver o bem a quem nos faz bem. Mas não voltei e hoje penso mesmo que nem seria muito necessária, aquele hospital está cheio de voluntários. Mas desde o primeiro ano do curso que uma aluna dizia que queria lá fazer o seu estágio de animadora sociocultural. Se podemos, devemos estimular que possam ir atrás dos sonhos. E assim foi, ela e outra estão desde Janeiro na Pediatria do IPO-Lisboa.


Estive lá na festa das crianças, num auditório que nunca tinha visto. As animadoras organizaram actividades em todos os lugares em que havia crianças e jovens, fiquei a conhecer todos. A projecção dos medos e dos sentimentos era a matéria prima do trabalho que procurámos fazer através do jogo e da brincadeira. Um jovem de 14 anos nunca quis fazer nenhuma das coisas propostas, mas um dia aceitou a pequena tela e o pincel que elas ofereceram. E pintou um fundo negro com um bonequinho amarelo no meio como se fosse um semáforo e escreveu tristeza igualmente com letras amarelas. Vi a tela dele na exposição e a sua fotografia. Então pensei que talvez o bonequinho se pudesse tornar verde e libertar-se do fundo negro que o oprimia. Mana, pensei que podia fazer como tu fizeste.
~CC~

terça-feira, junho 17, 2008

Saber(es)


Durante largos anos acreditei que as conferências eram a sério, que estavámos ali para de facto trocar saberes uns com os outros, partilhar o resultado da investigação, conversar como bons amigos sobre o que nos fazia estudar. Ficava quase emocionada por chegar perto dos autores de livros que me tinham ajudado a construir o pensamento. Depois chegou o desencanto das conferências e de quase todos os conferencistas, ficaram alguns como amostra do coração e do pensar. Numa das faculdades em que dei aulas, os professores eram obrigados a publicar pelo menos três artigos por ano e a efectuar comunicações, numa espécie de lei de mercado aplicada ao saber.

Por isso, na vertigem da rejeição, via tudo como uma imensa feira de vaidades. Deixei quase completamente de frequentar estes lugares e tenho voltado lentamente, desconfiada ainda. Na verdade faço-o por duas razões: porque não posso por enquanto ignorar o valor de um currículo e provavelmente nunca poderei e porque permanece em mim uma réstia de esperança. Hoje lá fui, parte de mim arrastada pelo tema da Cidadania Global e pela vontade de mostrar o que ando a fazer, parte de mim já em tédio e descontentamento.

Hoje tudo foi mau, o arrastar das comunicações, a tecnologia que não funcionava, a a qualidade das coisas que se apresentavam (28 slides para 15m de apresentação, será possível?!), o modo como os oradores aceitavam comunicar de costas para os ouvintes e de olhos postos no power point que liam quase na íntegra, um moderador que não moderava e que era também comunicador. Gosto mais de falar de pé e lá pedi ao moderador que encolheu os ombros a pensar quem seria esta rapariga da pronvíncia. Na sala não havia mais de dez pessoas, pois decidiram colocar cerca de 8 salas em simultâneo.

Quando terminei, puxei então uma cadeira e sentei-me de frente para eles, sentei-me como se estivesse no café ou como faço tantas vezes nas aulas, como se estivesse quase em casa, sem dar conta do que fazia, parte daquele meu alheamento do lugar era mesmo cansaço. Mas foram os melhores quinze minutos do dia, todos se puseram a falar, mesmo quem não tinha vindo de casa para apresentar nada, anulando as fronteiras entre os que dizem e os que ouvem. Não falaram só sobre o meu trabalho, todos falaram de si e do que pensavam, mesmo os que agora não andam a investigar nada. De repente senti-me bem. Mas foram só quinze minutos, talvez os quinze da esperança. Mas não tenho dúvidas de que estes modelos de seminários e conferências estão gastos, é preciso inventar outros modos para trazer o saber às nossas vidas.

Quando penso em aprender penso sempre em duas ou mais pessoas percorrendo as pequenas alamedas de um jardim.

~CC~

segunda-feira, junho 16, 2008

Envelheço (I)

O meu rosto está lentamente a cobrir-se de rugas. Primeiro foram só uns fiozinhos à volta dos olhos, mas agora desataram a aparecer por todo o lado. Mas não é por isso que estou a envelhecer, há qualquer coisa outra. É o modo como os sentimentos andam sempre muito próximo de aparecer, como o mundo se torna pesado de repente ou tão leve que acho que vou voar com ele para outro sistema solar. Dantes achava que era isto ser mulher mas agora que conheço melhor as mulheres acho que é por estar a envelhecer. Também achei que era por eu ser Almar, esta espécie de pertença a uma tribo andarilha, mas há muito que me perdi deles. É por eu já ser velha, velha como as palmas das minhas mãos que parecem de 90 anos com tantas linhas cruzadas e desalinhadas.

Tenho, como os velhos, uma visão distorcida do real. As pequenas coisas parecem-me enormes e as grandes parecem-me tão pequenas. É o modo como me entusiasma uma coisa bem feita pelos meus alunos nos múltiplos contextos em que os vou ver, acompanhar, observar. É o modo como me enterneço com a minha filha a entrar na sala da formação com os cabelos molhados da piscina e os olhos líquidos de sol, desligada do mundo e feliz. É ter vontade de chorar quando sinto genuíno um abraço dado por alguém que não via há dez anos e conheci ainda uma miúda a tentar afirmar-se no trabalho e hoje me aparece assim tão crescida, tão sabedora. É ter vontade de chorar porque hoje, de carro imobilizado junto a uma passadeira, a mãe que a atravessava com o filho pequeno parou a meio para dar um beijo na criança que levava pela mão e esta se encolheu e riu arrepiada. É ter saudades de gente que mal conheço só porque um dia me disseram ou escreveram qualquer coisa que me tocou especialmente.

É o modo como uma coisa grande como esta última crise despoletada pelos caminonistas me parece tão pequena. É o modo como a recusa do tratado no referendo irlandês me dá vontade de rir, não devia. É o modo como no trabalho só me interessa a minha própria actividade de docência e os projectos a que me ligo e de que efectivamente gosto, ficando tudo o resto a importar-me tão pouco, não devia. É o modo como gosto de olhar para o mundo com a calma de quem olha para uma noite escura mas pontuada de mil estrelas, é ficar a pensar nela muito tempo. É o modo como preciso de compreender tudo e me custa tanto opiniar, como se o tempo das certezas se tivesse ido de vez, de vez para não voltar mais.


Envelheço, os olhos no meu rosto já não brilham da mesma maneira.
~CC~

domingo, junho 15, 2008

Este Domingo


Porque hoje é Domingo e a tua voz só ecoa no telefone em vez de acariciar a minha pele, não é afinal um Domingo verdadeiro, sabe a estufa como a fruta que nos chega fora do tempo. Esse é o desconforto inicial da tua ausência. Sinto este domingo sem ti muito grande, como se eu fosse ainda adolescente, como se as férias de Verão fossem ainda os três meses que eram naquele tempo, ou então como se fosse já velha e o tempo me sobrasse porque todas as tarefas essenciais estão feitas e só sobra o acessório.


Sei porque não estamos juntos e sei como devo ocupar este tempo. A tua ausência é feita para que eu ocupe todo o tempo que me tomas com as tarefas a que me costumas roubar: a limpeza da casa, a troca das roupas Verão-Inverno, a sopa para a semana, os mais de 50 trabalhos escolares à espera das notas a verde, a comunicação para o colóquio, a escrita da tese que se atrasa todos os dias mais e mais, os dois relatórios de projectos cuja data de entrega já passou. Em vez disso, ocupo o tempo a pensar na tua ausência e na solidão que me toma hoje e no gosto a que ela me sabe e consigo passar do desconforto inicial de me saber sem ti a um conforto vagoroso e lento. Sinto-me um gato deitado ao sol, uma papoila a saborear o vento no alentejo, uma andorinha a debicar por horas e horas a água de um leito do rio. Não devia ser nada disto, mas é.


Gosto que a minha vida seja assim não obstante desejar que ela seja tantas vezes uma outra coisa. Gosto de sentir este dia sem vozes, preciso dele para cortar os dias e dias em que elas transbordam perto de mim. Deixo-me ficar bem neste silêncio que mais logo, mais adiante, será já saudade.


~CC~

sábado, junho 14, 2008

Os anos do meu amigo

Ele traz dentro dos olhos todos os montes de pedra e erva do lugar em que nasceu, misturados com notas de canção francesa das outras rotas do mundo por onde os pais o levaram. Ele tem sempre um elogio, uma brincadeira, as moedas certas na mão para nos pagar o café da manhã.

Nos lugares de trabalho os amigos demoram a chegar e ainda mais a ficar, parecem ser fogos fátuos que tanto nos alumiam como quando damos conta já não estão, deixando um friozinho na nossa alma. Com ele não é assim, ele continua lá, mesmo quando os tempos que temos são tão poucos que quase só nos cruzamos uma vez por semana. Mas sabemos que ao alcance de uma palavra, um mail, um tefonema, não nos deixará jamais sozinhos do outro lado da linha, ele responderá. Gosto muito desse seu dom, dessa sua bondade, dessa reciprocidade que constrói com os outros.

Não posso dizer se o seu mundo é triste ou alegre, mas posso dizer que sabe rir, sabe ser sério, sabe calar-se quando ficamos tristes. Gostaria de aumentar o seu grau de felicidade sim, mas não depende nada de mim. Vejo-lhe por vezes os olhos em viagem para esses lugares, uma aspiração a uma outra vida, um sonho que se lhe atravessa na quietude dos dias e penso para onde irá, que caminhos seguirá no encalce dessas chamas. Imagino-me a visitá-lo daqui a uns anos num outro lugar, mas a música, essa será a mesma, os acordes quentes de umas mãos estendidas quando precisamos delas. Foi com ele que aprendi que mesmo que ninguém lesse era importante escrever. Mais tarde ensinou-me a fazer ardósias azuis e é por isso que aqui estou.

Atrasada, incorporada numa seita que me leva a mil afazeres e me afasta de tudo, venho dar-te mesmo assim os meus parabéns e um abraço grande e doce.
~CC~

quinta-feira, junho 12, 2008

Ser


Ser apenas do mundo uma parte pequenina. Mexer-me nessa parte pequenina como se fosse muito grande, espalhar-me, agarrar-me mais além no coração de alguém que eu toquei.

~CC~

quarta-feira, junho 11, 2008

Silêncio



Confesso que ando aturdida entre o volume de trabalho, o ruído da crise no mundo e o fascínio pelo cinema na minha cidade (que filmes tão belos tenho visto nos independentes americanos e no cinema polaco, coisas que esbarram na indústria do cinema). E preciso de silêncio para pensar, porque as palavras, essas só chegam cheias e pesadas de sentido quando compreendo. Não é ainda o caso, só tenho perguntas a ecoar em mim. A primeira, tão forte que me entontece é: qual é o exacto sentido de tudo isto? E isto não é Portugal, é pelo menos metade do mundo. E por favor não me digam as coisas simples que enchem os noticiários, digam-me mais, digam-me outras coisas para que possa pensar, compreender.


~CC~

terça-feira, junho 10, 2008

A bola

Faço também parte do pequeno grupo dos quase indiferentes a esta loucura que toma conta do país e parece anular todas as crises que nos atormentam. Não deixo de achar o futebol um jogo bonito e interessante, exige uma combinação sábia artes várias, talvez mesmo poesia. Está, contudo, há muito contaminado por tudo o que temos de pior: ambição desmedida, corrupção, inflação milinonária de talentos, violência, xenofobia. É um desporto rei, mas um rei obeso, opulento, pesado e sem capacidade de governo. E os meios de comunicação social fazem triste figura ao seguir passo a passo o cortejo europeu deste rei.

No entanto, desde há uns anos que procuro fazer com que a diferença que vai de mim ao outro não seja um abismo, mesmo que o outro seja um adepto apaixonado do circo montado nos quadrados de relva destas novas catedrais, novos lugares de culto. Não sinto nada quando vejo as bandeiras portuguesas estendidas na janelas dos prédios das cidades, mas arrepia-me o silêncio dessas cidades quando há jogo. Arrepia-me a forma como a festa do golo ecoa pelas paredes e ruas desertas, mostrando que afinal ninguém dorme nem se foram embora, estão ali, vibram, estão tremendamente vivos. Talvez isto seja difícil de explicar, mas não são os jogos que me emocionam mas o modo como as pessoas se emocionam com eles. Mas é também claro que o fascínio por essa emoção não anula o repúdio, esse está alojado mais fundo na reflexão construída sobre o lugar que o futebol ocupa aqui e agora. Um triste lugar.
~CC~

sexta-feira, junho 06, 2008

quinta-feira, junho 05, 2008

Diários de Resiliência (III)

Um centro para jovens de iniciativa autárquica, duas salas pequenas mas arejadas e bem mobiladas numa zona em trânsito do rural para o dormitório, mistura de um velho bairro hoje degradado com um novo, de construção barata mas muito digna, quase bonita. Fim de uma tarde que felizmente já aquece.

Há dois anos que conheço este local e sei que os jovens o procuram mesmo, não é daqueles lugares vazios, onde eles não param. Aqui podem usar livremente os computadores, só o acesso a pornografia é interdito, usam-nos predominantemente para estar no msn. Aqui podem usar a consola e ver filmes. E é basicamente isto e isto é um sucesso. É também um sucesso porque os monitores têm pouco mais que a idade deles, compreendem-nos, falam a mesma linguagem, mas sente-se que há respeito, eles não abusam. Não sabia como sair deste beco, nem como fazer o animador sair dele. De um lado a satisfação dos utentes como é moderno dizer-se, do outro a minha profunda insatisfação, inquietação. Qualquer coisa parecida com sessões de leitura, debate de filmes, escrita criativa, dinâmica de grupos, qualquer coisa dessas me parecia votada ao fracasso.

Hoje saíram para a rua com as máquinas digitais nas mãos a fotografar o bairro e a eles próprios, eles outros nos jardins, nos bancos, encostados às paredes. Encantaram-se com flores vulgares, carreiros de formigas, cães à solta, bandeiras ao vento. O grupo tinha miúdos dos 8 aos 18 ou mais e isso não constituiu nenhum problema. Por ali andaram tranquilamente e aos pinotes, sem nenhum tédio, olhando o que já tinham olhado vezes sem conta.

Amanhã as fotografias encherão os ecrans dos computadores para que aprendam a tratar a imagem, dar-lhes luz, tirar sombras, recortar, emoldurar...o msn ficará por uns momentos parado, parcialmente derrotado pelos rostos do bairro. Pensaremos em mais derrotas parciais.
~CC~

quarta-feira, junho 04, 2008

A construção do amor e outros edifícios(II)



Jacinta amou uma vez só e a dor do abandono foi tão forte que ainda hoje a sente como uma lamina a cortar a carne. Percebeu que não sabia medir-se na entrega, percebeu que quereria sempre demais. Escolheu o deserto em que mora como quem decide entre a paz e a guerra. Tem um jardim lindo de amores perfeitos e é tudo o que quer da vida, que a deixem dar-lhes água e alimentar as suas cores. O corpo pode pedir por vezes outras coisas, mas ela sabe torná-lo manso. Os dias de Natal é que são um pouco mais difíceis cheios de tanto silêncio.


Josefa mergulhava intensamente em cada amor como se ele fosse o único e o maior de todos, nessa infinita capacidade de se entregar como se fosse vento ou água. Não durava muito o tempo de cada amor, fins colocados por ele ou por ela, quase sempre despedidas negras. Era uma mulher em viagem recolhendo pequenas dores que nunca a derrubavam, saía de todas igual a si própria, como se limpasse a roupa depois de uma queda na areia, importante era seguir em frente. Não queria perder tempo a falar das suas mágoas nem a chorar, melhor era pensar no riso que ainda havia a conquistar. Pouco saberemos sempre de outras das suas paisagens interiores, a paisagem exterior era o seu domínio de brilho.


Joaquina ainda não era velha mas há muito tinham passado os anos da sua juventude. Sabia a história das suas rugas como sabia dizer da arquitectura de cada amor e da forma como a ruína os tinha afectado como se fossem casas. Não tinha tido muitos amores, mas cada um deles era um mapa mundo que tocava com os olhos fechados, como se a todos tivesse guardado um lugar único, parecia ainda amá-los, o que de certo modo era estranho. Disse-me um dia que tinha decidido não amar mais, que aquele amor que tinha agora seria o seu último. Questionei o modo como podia tomar tal decisão e se isso se devia à sua idade. Respondeu que não, que dominava agora melhor a arquitectura do amor, não era preciso procurar mais, bastava construir.


Estas mulheres talvez possam ser homens. Estas mulheres são na realidade uma mulher só. Talvez seja eu todas estas mulheres ou talvez ela seja uma mulher que conheço.

~CC~

terça-feira, junho 03, 2008

Diários de Resiliência (II)

Elas passam a manhã na escola, a tarde inteira no ATL. As primeira hora e meia a seguir ao almoço é dedicada aos trabalhos de casa, depois o lanche e quando há tempo brincam. Brincam aí uma meia hora, talvez uma, até a carrinha os vir buscar. A brincadeira depois do lanche é controlada, podem fazer desenhos, ler uma história, fazer um jogo de mesa. O corpo não mexe quase nada, nem a voz. Dos corações nada sabemos, de preferência que batam devagar.

A sala é pequena, muito pequena. As animadoras ensaiam à sexta a menina do mar com estas crianças, foi o único dia que lhes deram. Têm 45m de ensaio uma vez por semana. Era preciso fazer muitas coisas com estas crianças antes de poderem representar a menina do mar.

Era preciso levá-las até ao mar, deixá-las rebolar na areia, dizer: gritem ao vento. Depois falar com elas sobre o sabor e textura que tem cada coisa: o sal do mar, a consistência da areia, as cores do céu, assim só para começar.
~CC~

segunda-feira, junho 02, 2008

A construção do amor e outros edifícios(I)


Elas dizem agora que são quase irmãs. Antes, eram só intrusas na vida uma da outra, o acaso tinha-as juntado sem que o tivessem pedido. Perguntas o que foi que fizémos por esta construção que agora nos parece quase perfeita e não conseguimos dizer ao certo. Falámos muito é certo, muitas vezes. Acredito no imenso poder que reside no coração posto nas sílabas. Estão ali uma com a outra sem perguntar por televisão, jogos electrónicos, computadores. É uma com a outra que gastam o tempo, na construção da cumplicidade que alimenta os segredos no raiar da adolescência.


As palavras sim, o resto foi só o vento que começou a soprar mais quente dentro delas, outra compreensão a nascer do que é uma e outra, a certeza de que o amor que lhes temos chega para cada uma ter o seu lugar, sem roubos nem competições. Haverá talvez ainda um choro, um amuo, uma zanga, mas os laços são agora fortes, capazes de enfrentar a tempestade.

A amizade pode ser a lenta descoberta dos pedaços de sol e de sombra que moram em nós, em vez do fogo voraz onde o outro se incendeia e se consome.

~CC~