domingo, fevereiro 28, 2010

Indignação



Leiam esta mulher. Leiam este homem. Indignem-se como deve ser.
E bebam água ou vinho.

quinta-feira, fevereiro 25, 2010

Dias felizes

Imagem enviada por mail pela Nenúfar Cor de Rosa.
Que bem fica aqui.Obrigado.


A memória dos meus dias felizes está cheia de coisas insignificantes. Foi neste Verão, ou talvez por alturas da Páscoa, já não sei bem. Tudo começou com as adolescentes que decobriram que ia ser a cor da moda mas não ligavam o nome a cor nenhuma. Então, passámos horas, dias, semanas... a discutir a cor malva. E descobrimos que a cor malva era diferente para muitas pessoas, mesmo na família reduzida havia pelos menos três cores diferentes para malva: verde, lilás e rosa claro. Eu era do verde malva.



Hoje comprei chá de malva flor, são umas florinhas roxas pequeninas. A água deve ficar linda cheia delas.



~CC~

quarta-feira, fevereiro 24, 2010

Ainda vem

O rapaz da caixa de supermercado deve ter feito há pouco os 18 anos. Trauteia pequenas canções, lança as coisas do tapete rolante ao ar antes de as pousar no saco, discute os resultados do futebol com os velhotes e pronuncia menina quando se me dirige com ar matreiro. Estive para lhe perguntar se não via que eu tenho a tristeza colada à pele, que estou sem paciência para brincadeiras, dizer-lhe para ficar calado, para não se rir assim à minha frente.

Depois pensei perguntar-lhe pelo que o fazia assim feliz numa manhã cinzenta, uma mais entre tantas outras nos últimos tempos, ainda que sem chuva. Mas ele também lê os pensamentos alheios porque me diz: está a ver, hoje pelo menos não chove, isto vai lá, o sol ainda vem.

Pois, o sol ainda vem.
~CC~

terça-feira, fevereiro 23, 2010

Florir

Demorei-me no bar da escola, demorei muito mais do que precisava para beber o café. É que em frente fica o pátio das amendoeiras, creio que elas são seis, uma mais pequenina que as outras veio há uns tempos substituir a que tinha morrido ali. Demorei-me muito mais do que devia, muito mais do que podia. Fiquei a ver as amendoeiras a florir, a florir devagarinho, a rasgar de riso branco estas tempestades que nos varrem. Podia demorar-se ainda mais, podia ficar muito mais tempo de olhar preso naquelas flores, nas pequenas flores brancas.
~CC~

segunda-feira, fevereiro 22, 2010

O colar das contas azuis

Fui buscar o colar de contas azuis e pretas e pequenas moedas douradas que me deste no meu aniversário de há quatro anos atrás. E tive muitas saudades tuas.


Foi há quatro anos naquele restaurante pequenino perto do Parlamento, e nem sabia que depois voltaria lá tantas vezes com o meu pequeno gravador para ouvir os deputados da nação falar de um assunto tão ortodoxo quanto o que estudo. Tenho de dizer-te que o colar de contas azuis perdeu algumas das moedas douradas mas é ainda muito bonito, perdeu moedas como eu ganhei algumas lágrimas mais e mais rugas fininhas, daquelas que o tempo traz para nos adornar os olhos. Vi-te tão pouco depois disso, e pelo telefone não chegam os apertões que me costumas dar quando me abraças, como se ao mesmo tempo que me apertas também me desses um abanão para eu sacudir todas as cinzas.


O teu colar de contas azuis sem metade das moedas douradas, perdi-as por aí em todas as idas e vindas destes quatro anos. Olhei-me ao espelho com ele posto e senti tantas saudades tuas.
~CC~

domingo, fevereiro 21, 2010

Single

No filme Single Man, há um homem a querer morrer porque o seu amor perdeu a vida. A sua tristeza devora-o como se fosse lume a pegar-se a um papel. E não há água capaz de apagar a imensa fogueira da tristeza. E, no entanto, há coisas pequenas que são ainda um resquício de luz, embora a sua vontade de morte seja mais forte.

Ele lembra as pequenas coisa luz: um rodopio de dança com a melhor amiga, um raio de sol apanhado na rocha, o azul dos olhos do rapaz que o procura.

Dantes quando estava triste pensava nos mais tristes que eu. Hoje pensaria na ilha dominada pela chuva e nos que lá morreram sem sentido, invadidos por esta tempestade maior do que nós. Mas seria um exercício inútil, a tristeza dos outros não apaga a nossa.

Por isso só é possível vir à tona através dos meus próprios resquícios de luz. Espero um abraço meigo daquele menino que há dois anos se salvou da morte, o pedido matinal da minha filha adolescente para a escolha da roupa do dia, a visão da rua com o mar ao fundo, e eu a deitar-me molhada de água e sal na areia quente de Agosto.

Resquícios de luz, trata-se de os apanhar sofregamente.
~CC~

sábado, fevereiro 20, 2010

Concordância

Absolutamente de acordo. Ainda há quem resista, apesar de nos estarmos a tornar obsoletos. E já vi e vi usar, apesar de não o ter.

~CC~

Enrolar-me (II)

Uma vez um miúdo num jogo que eu fazia em torno dos nossos objectos mais belos, aqueles que amamos por uma razão especial, fugiu ao trivial das respostas que indicavam a consola, os ténis de marca e a bola assinada pelo jogador x, e apesar de ser rapaz, disse que o objecto que mais amava era o sofá lá de casa porque era onde se sentavam todos juntos. Foi a única resposta dirigida a um objecto colectivo, onde o amor era o encosto dos corpos uns nos outros, esse calor cúmplice.

Talvez por nunca me ter esquecido desta frase ao longo dos anos, comprei um sofá grande para a minha sala pequenina. E ontem tive mais uma vez a certeza de que tinha feito bem. Debaixo da manta azul, muito encostadinhas uma na outra, partilhámos um zapping pelos muitos canais que agora há. Fiquei espantada por haver programas sobre restaurantes e concursos de decoração de quartos, mas na verdade nada daquilo que víamos tinha muita importância. Importante era o calor cúmplice dos nossos corpos encostados, a intimidade que só é possível com alguém que conhecemos muito bem, aquela certeza de que o amor é também feito destes momentos de nada fazer, de estar apenas ali sem palavras que tenhamos que dizer, nem obrigações a respeitar. Há também uma zona de amor assim entre os amantes, quando o calor que acendem um no outro não é apenas o do sexo, é tambem o corpo do outro encaixado na zona quente da nossa pele. E há quem saiba, e há quem não saiba.

Mas a miúda sabe, apesar de eu não ter tentado ensinar-lhe.
~CC~

sexta-feira, fevereiro 19, 2010

Enrolar-me

Agora que se acabam as manhãs de Sexta que corriam para as noites cheias de esperança de estrelas cadentes, terei que enrolar-me na tristeza como num manto e esperar que ele se desfaça na minha pele, que se torne pó misturado no meu sangue. Já do tempo que a tristeza demorará a se tornar pó, pouco sei dizer. Sei apenas que usarei as palavras apenas enquanto elas forem brasas que me permitem ter algum calor, enrolar-me.
~CC~

quarta-feira, fevereiro 17, 2010

Esconderijo




Sempre gostei de esconder-me, lembro-me que uma vez quando era miúda jogava às escondidas e fiquei num canto do quintal, e o tempo passou, passou muito tempo, e eu sentia-me bem ali quieta, longe de tudo. Na verdade, ninguém veio à minha procura, quando saí, já o jogo tinha há muito acabado. E agora ainda gosto, vou para um lugar onde nunca estive e se gostar dele, acho que posso ficar muito tempo. Não sinto a falta de nada se trouxer comigo os que amo, só eles são afinal a minha terra. O resto em mim é tudo mar.
~CC~

PS. Obrigado João pelo cantinho onde me escondo.


sexta-feira, fevereiro 12, 2010

Inventar dias


Posso corrigir?!
Substituir posto da guarda por mar. Colocar sol, varrer o frio. Completar com dias. Estarei vários dias ao sol, junto ao mar, sem frio. Inventarei isto se este cinzento teimar em persistir.
Até breve
~CC~

quinta-feira, fevereiro 11, 2010

Admirar na praça pública

Vi muita gente presa de admiração por algumas figuras públicas, por vezes há mesmo algumas que se coadunam com o pó de um determinado tempo e ficam ali a brilhar como estrelas em plena ascensão. Tive amigas fascinadas pelo Miguel Sousa Tavares, pelo Miguel Esteves Cardoso ou mesmo pelo Miguel Portas. Mas não só os Migueis prendiam as atenções, também havia quem admirasse profundamente os académicos que tinham cruzado as suas vidas e assumido uma função de quase mestres. Tenho pena, nunca admirei ninguém assim, e muito menos tive mestres. Às vezes acho que é arrogância minha, se fosse mais humilde nutria essa espécie de devoção por alguém. Teria aceite vários convites para assumir essa relação de devoção-protecção que muitas pessoas levam pela vida fora e que as amortece de muitos embates, mas rejeitei sempre, e apanhei ventos agrestes sozinha.

Abro contudo a excepção para Nelson Mandela, hoje recordado na praça pública por fazer 20 anos que saiu da prisão. Partilho com e na praça pública o fascínio por um homem que é capaz de perdoar aos seus carrascos, de se erguer e de erguer um povo. Nunca vi olhar doce mais repleto de força.
~CC~

quarta-feira, fevereiro 10, 2010

Equílibrio

Ensino-a a ter medo, porém não demasiado medo. Na infância fez-me falta saber o que era o medo, não me lembro de me falarem dele. Mais tarde aprendi da pior maneira, e ganhei medo a mais. É dificil ganhar o equilíbrio necessário para avançar na corda e chegar de um lado a outro.
~CC~

segunda-feira, fevereiro 08, 2010

Amor e outra história



(...o melhor amor de cada um de nós ainda está por descobrir)

E.


Celeste olhou uma a uma as portas fechadas da sua casa grande, tinha-as fechado para a tornar mais pequena e assim diminuir a sua solidão. Abriu a janela da sala, era a única divisão que tinha sobrado da sua vida familiar antiga, fechando os olhos podia ouvir as vozes dos miúdos quando chegavam da escola e sentir o coração a bater com força. Mas em vez da lágrima habitual que lhe aparecia nessas ocasiões de profunda saudade, viu nascer na sua boca um sorriso. E da janela da sala dirigiu o sorriso até ao lugar da Nogueira. A verdade é que ainda há pouco tempo a mandara cortar porque a entristecia ver a ruína em que ela se tornara, e muitas vezes sentira-se tão velha quanto ela.


Mas estava para chegar o seu velho com a nogueira nova, e o buraco que pedira para abrir cheirava a água e a terra, estava pronto para alimentar a seiva de uma nova vida. Chamava-lhe intimamente e só para si própria o seu velho, mas achava-o ainda um homem muito bonito, e tinha pensado muitas vezes encher os seus dedos com aqueles cabelos brancos tão abundantes.

Ele tinha vindo ver a casa quando ela a pusera à venda, cansada das memórias que lhe estavam agarradas, e tinha ficado preso à cor purpura única das paredes e ao cheiro dos jasmins que trepavam por elas. Tinha dado tudo o que tinha aos filhos numa espécie de despedida antecipada, os bens já não lhe interessavam, mas procurava ainda um lugar para poder demorar-se nos crepúsculos. Combinaram ver-se uma e outra vez com a casa pelo meio, mas já presos um ao outro pelo resto do brilho que os seus olhos tinham. E ele tinha-lhe pedido para ficar naquela casa, porque há lugares que não se podem abandonar sob pena do sangue se transformar rapidamente em pó. E ela sabia que apesar de ter fechado as portas, deixá-la era também secar por dentro. E ela tinha-o convidado a vir, a trazer as suas coisas. E ele tinha dito: primeiro trago a nogueira nova para plantar. E viram que na geografia da pele havia roteiros de lume ainda por descobrir. E nunca falaram de amor, nunca.

(a frase de E. está cheia de esperança, se no momento em que perdemos um amor que ainda amamos, nos fosse possivel beber dela, a sombra não nos tomaria)

(é beber desta esperança, não só porque "o melhor amor de cada um de nós ainda está por descobrir" mas também porque podemos descobrir melhor o amor que temos).

~CC~

Nota breve


E isso é o que importa.
~CC~

sexta-feira, fevereiro 05, 2010

Amor e uma historia (II) aos olhos de E.



Chamei-lhe "A edificação do amor"

(Por E., do SUL)

"Pegue-se então na história da Maria e do Sebastião, chamemos-lhe assim, que durou uma Primavera apenas, mas podia ter durado muito mais e ter acabado por vários motivos:Imagine-se que a Maria tinha tido uma doença grave e morria no Verão seguinte, ou que o Sebastião, numa tentativa de prosseguir os seus estudos superiores, passava a estudar de noite e, no regresso das aulas tinha um acidente de viação. Ou ainda que, a meio do curso de Sebastião, este se apaixonava por uma das suas colegas, vinte anos mais nova que Maria.E o contrário também era possível: ambos partiam para a grande cidade, onde viviam o seu amor no meio do anonimato, ou mudavam apenas para uma terra mais próxima, onde viviam em segredo o seu amor, dentro de quatro paredes, sem o apresentar ao mundo. Ou ainda, anos volvidos, passariam a encontrar-se no dia do aniversário dela, numa pensão à beira-rio, até que ela deixasse de poder fazer a viagem e ele passaria a visitá-la no lar da terceira idade onde a velhice de Maria decorria e, posteriormente ainda, na sua sepultura no cemitério novo da aldeia.E até aqui só fizemos o que gostamos sempre de fazer, no cinema e na literatura, que é analisar as personagens em estado (muito) puro, sem as contingências de um mundo à sua volta. Mas pode dar-se o caso de a mãe de Sebastião lhes fazer a vida negra e o seu amor não resistir a isso. Ou de o ritmo de vida que se desenrola no casal os tornar incompatíveis. Às vezes umas meias rotas, uma ruga nova, que não a primeira, nem a segunda, mas a quarta ou a quinta, ou até meia garrafa de vinho a mais por noite são suficientes para a avalanche que precipita um fim. Noutras vezes, nada consegue partir uma relação. O marido condenado a uma prisão durante vinte anos, aquele que emigra para o outro lado do mundo e visita a sua família uma vez por ano…

Não está em causa a medida do amor, mas a forma como foi (ou não) edificado. Amor e uma cabana, ou a fantasia da ilha deserta, são uma realidade não estruturada do amor. Esta surge ou desaparece (por falta de condições externas ou interiores das pessoas que viveram aquela relação) com a envolvência social, com o peso da sociedade, da família, das forças contrárias àquela relação. Não está em causa a qualidade da pessoa ou das pessoas, mas apenas uma capacidade de naquele caso concreto, conseguirem em conjunto superar uma dificuldade que, ainda que sendo apenas de um, se torna de ambos.

Voltemos então à Maria e ao Sebastião: nenhum deles viveu “infeliz para sempre” por causa do amor, mas tão somente porque não conseguiram estruturar uma relação que se antevia como boa para ambos, ou porque um tempo que foi bom terminou e nenhum deles estava verdadeiramente preparado para isso. Repara que podem ter antevisto ainda as dificuldades porque iriam passar e nenhum quis enfrentá-las. Anos mais tarde, podem, um ou ambos, achar que tudo podia ter sido diferente e, sopesando o passado, não conseguirem ultrapassar o peso de uma decisão tomada lá para trás. Estamos no campo da liberdade individual de cada um (e nem sempre, numa relação a dois existe escolha para ambos), na livre escolha, que naturalmente gera consequências. Nem sempre as pessoas estão preparadas para viver com essas consequências. Eis o que se pode lamentar, mas nunca o amor, pois não?"

(Obrigado E, por tão interessante resposta, por tão interessante pergunta).
~CC~

quinta-feira, fevereiro 04, 2010

Amor e uma história (I)

(Para E, em jeito de resposta (1) ao seu comentário no post anterior)

A derrota

Maria tinha tido um acidente grave de carro que a deixara com um braço para sempre paralisado e por isso reformara-se cedo, não tinha ainda completado cinquenta anos. Com as filhas crescidas, deixara a cidade e voltara à vila onde nascera e à qual durante anos só tinha ido esporadicamente. Como mulher que toda a vida amara os livros e se dedicara a fazê-los amar, tinha levado com ela a vasta biblioteca que organizara meticulosamente numa das assoalhadas da sua casa na vila. E os miúdos da escola iam amiúde procurá-la, tornara-se numa espécie de tia culta que ajudava a ler e a interpretar as obras obrigatórias, fazia-o de graça e com gosto e aquilo dera um novo sentido à sua vida. Ganhara também o respeito da comunidade.

E isso durou até ao dia em que um rapaz mais velho, já trabalhador, a procurou para o ajudar a fazer o exame de 12º ano e poder ingressar na faculdade. Também ele tivera azar com a vida, a doença do pai tinha-o obrigado a deixar os estudos, e só agora podia voltar. Era assim diferente de todos os que tinham procurado Maria, tinha mesmo vontade de aprender e de superar-se a si próprio. Liam muita poesia, sobretudo Fernando Pessoa e Camões, poetas que eram muito focados nos exames de 12º ano. E o rapaz sentiu uma e outra vez os olhos molhados quando ela lia com a sua voz rouca, o braço sem vida, a alma fora dali. E era verdade, ela esquecia-se da presença dele, lia para si própria em viagem interior. E é assim que o amor nasce: uma coisa tão pequena que nos toca no outro, que nos toca como mais ninguém tocou.

E nenhum deles quis ou pode evitar que da doçura das vozes se caminhasse para a doçura dos corpos, nenhum deles teve medo do amor. É verdade que primeiro se escondiam no escuro do quarto, mas assim que a Primavera chegou, quiseram ir com ela pelos campos e deixaram de se enconder.

E a vila inteira soube, falou e condenou. Era um amor imoral. Condenada a diferença de idades, de estatutos, de ambições. Ela passou a receber cartas intimidatórias, deixaram de a cumprimentar nos lugares públicos e um dia uns miúdos na rua chamaram-lhe puta e depois desataram a fugir em ruidosas gargalhadas. Condenado o amor, tão só essa explosão, em si mesmo anárquica e não convencional. E sim, terminaram em mútuo acordo essa sua Primavera.

Ela fechou a porta da sua casa na Vila e colocou uma tabuleta: para venda. E nunca mais voltou. Ele fez tudo o que era suposto fazer: casou e teve filhos. E continuou sempre a procurá-la, não activamente é verdade, mas passivamente. Julgou vê-la no Cinema, numa livraria, num jardim...era uma miragem interior, uma sombra dentro dos seus olhos. E foram assim os dois infelizes para sempre. E o amor perdeu.
~CC~

quarta-feira, fevereiro 03, 2010

Toques de seda e perfume

Desde o primeiro filme da Jane Campion que a sigo como uma abelha em busca do perfume de uma determinada flor, um aroma certo para a produção do mel interior. Às vezes o perfume é tão intenso que provoca tonturas e outras tão suave que nos amacia.

Nesta sua cintililação pelo amor, o desejo é um toque macio entre campos de mil flores e flocos de neve. Os beijos são passarinhos contidos, presos no seu voo, mas claramente marcados pela vontade de pele.

E o amor vence, apesar da morte. É ele que vence claramente a luta, a dura contenda entre as convenções e a liberdade. E é também a luta entre a musa virtual do poeta e a musa real de olhos doces. É a segunda que vence e é ela que enche os poemas do que lhes faltava.

Também eu acreditava nesta força do amor até o ver claramente derrotado pelas convenções, e comecei a perceber que ele perdia, que perdia muitas vezes. Ou então não era amor.
~CC~

segunda-feira, fevereiro 01, 2010

Marcas na areia


A praia quando chega o sol de inverno mostra as marcas das marés intensas e dos ventos fortes. É ainda uma praia quase vazia que se abre diante de nós na manhã de sábado. É preciso caminhar junto à areia molhada porque a areia seca é um conjunto de montes e vales penteados pelo Inverno. Vemos as marcas dos nossos pés rapidamente lavadas pela espuma. E andamos mais e mais, impelidos pelo desejo de ver mais adiante aquele lugar em que a ria e o mar se encontram num abraço de sal. Há muitos anos que não caminhava até à barrinha, o lugar onde os barcos andam para trás.



As ondas trouxeram com elas muitas conchas e muito lixo, uma mistura bela e desordenada das coisas mais bonitas e mais feias. No cimo de uma duna uma televisão abandonada emite a partir de uma antena de cana que alguém fez, numa instalação improvisada bem humorada. No regresso há uma baía calma onde os meninos poderiam aprender a tomar banho em paz de tal modo as ondas são mansas. Não há quase gaivotas, mas há uns pássaros mais pequenos de bico pontiagudo que brincam juntos. E vi claramente na areia as marcas das patas de uma cegonha, vi o seu andar vagaroso e majestoso.


Lembrei-me do Fernão Capelo Gaivota e de como ele marcou estupidamente a minha adolescência, como me fez aprisionar nessa hipótese de fazer a diferença face aos outros, fez-me falta ser como os outros, só querer comer e lambuzar-me nesse prazer como o imenso bando na praia. Mas não, sempre me senti só, era essa gaivota teimosa presa a qualquer filosofia capaz de vencer a força da gravidade. E isso marcou-me de tal modo que não sei se sei descolar essa teimosia das minhas células. Depois a tua mão acordou-me de mim e destes pensamentos e senti-me feliz por te ter ali.


~CC~


(e no dia seguinte e no outro, as pernas acusaram a longa caminhada até à Barrinha)