quarta-feira, abril 30, 2008

Diário da amante feia (IV)



A minha vida tornou-se numa dança depois daquele dia na livraria em que ouvi a voz dele como se ela estivesse dentro de mim.

Todos os dias depois daquele voltei lá. Almoçava a correr e na meia hora sobrante ia dançar no meio dos livros como se fosse um bicho a rodear a presa, fazia círculos em torno dele, primeiro círculos largos e cada vez mais próximos para que o meu cabelo cor de fogo entrasse na rota dos olhos dele. Esperava pelo incêndio das almas.

Estamos juntos há dez anos, sem incêndio das almas. Sonho ainda por vezes com a livraria, as folhas dos livros soltam-se e voam no vento onde eu danço* , danço no meio do papel e mal me distingo dele porque sou branca e triste como um cisne.

~CC~

* "O espírito da dança não tem cor, forma ou tamanho, mas envolve o poder de unir, e também a força e a beleza que se encontra em nós. Cada alma que dança, jovem, velha ou de uma pessoa incapacitada, cria e transforma ideias em movimentos artísticos que podem mudar as nossas vidas", escreve a coreógrafa e bailarina sul-africana Gladys Faith Agulhas, premiada pelo trabalho que tem desenvolvido ligando a dança, a educação e a integração social.


terça-feira, abril 29, 2008

Teses e Vozes na Serra


Desta vez, apenas foi uma máquina. O gravador digital. Sem redes nem com fios nem sem fios.

Fui para a Neve em Abril e encontrei montanhas brancas de flores. É tão bonita a serra despida a latejar em água e sol. Uma mão quente na minha, pronta a desfazer as dúvidas que me acompanham.

Mais vozes guardadas na caixinha dos segredos, onde os mundos se abrem quando fitamos alguém nos olhos e lhe dizemos simplesmente: conte, conte a sua história.

Se eu pudesse não fazia por ora mais nada, ia assim pelo mundo transformada em guardadora de histórias.

Às vezes não parece possível que isto seja um trabalho académico, parece mais uma tecelagem, uma pintura, uma vida outra que ando a inventar. Às vezes apaixono-me e quando me apaixono duvido que seja verdade e que seja possível fazer disto uma tese. Depois os dias atafulham-se de coisas e mais coisas e elas urgem e são todas urgentes e as vozes que contam histórias diluem-se. Tudo parece ser apenas um sonho e as vozes um sussuro, como se fosse a memória do mar a invadir os dias secos.

~CC~

quinta-feira, abril 24, 2008

Abril em Luanda

Luanda, 2007. Tantos anos depois, a minha Escola Primária, pintada de fresco e cheia de balões.

Eu era do tamanho dos meus nove anos e o mundo era pouco maior que o meu quintal, pouco maior que o desenho das ruas até à escola, pouco maior que os passeios raros à praia. Abril era um mês em que as noites ficavam ligeiramente menos quentes, não obstante as estrelas continuarem enormes e as mangas saborosas.


Nesse Abril os adultos ficaram mais calados e havia uma tensão no ar, uma tristeza colada às coisas, quase medo. Mais tarde mesmo medo, denso e escuro. Faz-se agora a história dos que retornaram, devia também ser contada pelos olhos das crianças. Eu fui uma dessas crianças.


Muito mais tarde, só muito mais tarde entrei na festa e soube o que era um cravo vermelho. Nunca deixei de chorar por uma terra que ficou para trás e deixou de ser minha, mas nunca hesitei no brinde à independência daquele país, à liberdade. Somos às vezes ambíguos nos sentimentos, mas a razão, essa é luminosa.

~CC~

quarta-feira, abril 23, 2008

Livro(s)

Se pudesse, ia hoje a uma farmácia em Coimbra.
~CC~

Diário da amante feia (III)



Os lugares em que nos apaixonamos colam-se ao amor como uma roupa que o veste, que o molda. Às vezes não sabemos bem determinar o lugar, há um desenho de lugares que construiu o itinerário daquela paixão.


Eu tinha dois lugares onde o meu tempo parava. As estufas de flores e as livrarias. Na idealização do amor era junto das flores que encontraria alguém tão inebriado pela beleza quanto eu. As flores eram sempre belas, ninguém dizia: aquela flor é feia. Era esta capacidade de apreciar a natureza das flores nas suas diversas cambiantes que não existia quando os seres humanos se olhavam uns aos outros. Na natureza a capacidade de nascer e de vingar era suficiente. Parava em absoluto em todas os lugares onde se criavam e vendiam flores como outros paravam em cafés, restaurantes, lojas de culto. Quando a tristeza me sufocava ia até à estufa fria e à estufa quente em Lisboa, o único lugar em que era possível por momentos não ver ninguém, só natureza. Imaginava que era num lugar assim que encontraria quem me pudesse amar, alguém capaz de entender a relatividade contida em todas as coisas, a relatividade do que é o belo e do que é o feio.


As livrarias eram também os lugares mais perfeitos do mundo para encontrar o amor. Com um livro na mão sabemos quem somos e quem é o outro. Os dois com livros na mão sabemos que há entre nós uma ponte que já existe. Os dois com livros na mão somos seres sem corpo nem rosto, somos só uma luz, a mesma luz. Apaixonei-me numa livraria junto a um homem, os dois de livros na mão, em absoluto silêncio. Ou talvez não, talvez ele tenha dito qualquer coisa, não, talvez eu tenha ouvido qualquer coisa que vinha de dentro dele.

~CC~


Nota: Se, por um acaso, alguma coisa está menos clara, tudo se percebe por aqui.



terça-feira, abril 22, 2008

Diário da amante feia (II)

- O teu cabelo é cor de fogo.

Folheava um livro ao lado dele e ouvi-o dizer esta frase. Olhei-o como se todo o espanto do mundo morasse dentro de mim. Mas ele nem se voltou, os olhos poisados nas folhas dos livros, passando-as lentamente uma a uma.

- O senhor disse alguma coisa? Falou comigo?
- Não, não disse nada.

Não disse nada. Ele disse que nada tinha dito. Mas eu ouvi, ouvi claramente a alusão ao cabelo que tanta dor me tinha causado desde que reparei como ele era tão diferente do das outras meninas. A frase era uma exclamação de tom grave e admiração profunda que me tinha entrado pela alma até aos ossos. Teria eu atravessado 32 anos sem ouvir vozes para elas aparecerem agora dentro de mim?! Ou teria adquirido subitamente a capacidade de ler pensamentos alheios?! Experimentei colocar-me ao lado de outro homem, calada, a ver as capas dos livros. E de outro e mais outro. Mas não havia efeito nenhum, nem um olhar directo ou indirecto para mim, só silêncio, indiferença.

Corri pela livraria à procura do homem da frase mistério, mas nem a sua sombra pairava já nas paredes.

A frase dentro de mim estes dez anos: - O teu cabelo é cor de fogo.
~CC~

segunda-feira, abril 21, 2008

Diário da amante feia (I)


Ele abriu os olhos já o sol da manhã ia muito alto. Eu tinha ficado quieta ao seu lado, imóvel, com saudades do tempo em que fumava um cigarro na cama, mas ao mesmo tempo feliz por já não o fazer.


Quando ele abriu os olhos e me viu, eu vi-me também ao espelho e vi que ele me tinha visto nesse mesmo espelho. Lembrei-me das duas gotas grossas que me desceram pelo rosto no dia em que um miúdo me chamou feia no pátio da escola, tinha eu apenas seis anos. Se as pudesse deixava-as cair também agora, no momento em que via o modo como eu era feia aos seus olhos, mas há muito que no meu olhar não havia nada para deixar cair.

Procurei dentro de mim um modo de sorrir que sabia fazer-me mais bonita e insisti num pensamento reconfortante: há dez anos que este homem vive preso de mim, não obstante os olhares dos homens não me envolverem nunca, quase nunca.


Queria usar a palavra amor, gritar por ele usando esta palavra, mas ela não saía na minha voz. Ele perguntou: porque estás tão calada?

~CC~

Bairro Amarelo (III)

Final do dia no bairro amarelo, saber as últimas notícias. Desenhar ainda esperanças sobre a mesa, ainda e sempre.
~CC~

quinta-feira, abril 17, 2008

Tratado dos amores perfeitos (I)

Este é o tratado das coisas inexistentes que teimam em existir, persistem em nós como a medida pessoal do sonho, são coisas tão pequenas como o grão de areia no olho ou a pedra no sapato, tão pequenas que nos impedem de ver e de caminhar.

Nos dias tristes...

Os amores perfeitos limpam as nossas lágrimas com a ponta dos dedos ou chegam mesmo a tocar a face com os seus lábios como se fossem beber todo o sal que deixámos naquela água.

Os amores perfeitos procuram entre os livros de poesia da estante o poeta que sabe inventar paraísos dentro de casas escuras e trazem aquelas palavras na boca como agasalho para o frio que nos tolhe a pele.
~CC~

Cansaço(s)


Cada luta esconde outra luta e lá dentro ainda vem outra. Cada semana já vem sem tempo e lá dentro traz dias sem tempo. E ao mesmo tempo que amo este tanto que fazer, odeio também o que me esgota, o que me limpa de afectos e de lugar de pensar e de viver.

Imagino-me velha para poder finalmente descansar. Imagino os livros sempre poisados no meu regaço e a escrita a poder ganhar outros formatos. Imagino o meu colo cheio de netos, que estou no campo e tenho gatos de vários cores. Imagino o meu amor a acender a lareira e a perguntar se estou bem e qual é o chá que quero entre os mil potes que temos e que ele etiquetou com toda a sua paciência. Imagino os dias a enrolar-se nas horas e elas a passarem lentas, agarradas a mim como um manto quente.

Mas não sei, também penso que não faltaria à hidroginástica, não deixaria de parte qualquer passeio, nem a hipótese de um trabalhinho comunitário. Não sei se o tempo nos muda assim tanto por dentro, nem se o que hoje vemos como um retrato numa moldura feliz é que veremos ainda quando lá estivermos dentro.

Mas sei pequenas coisas, sei que agora queria encostar o rosto na areia de um lugar perto do mar e poder ficar sem culpa a ouvir cada onda que vai e vem.
~CC~

terça-feira, abril 15, 2008

Amores Primeiros (II)



Regresso para dentro de mim. Dois anos foi o tempo do regresso de um fulgor, quente coração em voo.

Saio para fora de mim. Será mais breve, espero, o tempo do regresso do sorriso ao teu rosto de menina.

~CC~

segunda-feira, abril 14, 2008

Meio do Alentejo

Ainda trazia os lábios cheios de conchas ou talvez fossem beijos da praia. Ainda trazia o coração leve, adornado pelas estevas e pelas cegonhas cruzadas com Alentejo Primavera.

Desci a uma outra terra no meio desta conversa:
A- Ele hoje vai chegar mais tarde por causa do campeonato de sueca.
B- Então sempre se inscreveu?!
A- Sim, e a mulher-homem também, está lá inscrita no campeonato!
C- Parece mesmo um homem...
A- Mas não é, e anda misturada no meio deles.
B- Mas é como um homem, o cabelo muito curto, o jeito...
A- Mas dizem que anda com o velho...o velho emigrante que já tem 70 anos, anda no carro, um belo carro...e ainda lhe vai ficar com o dinheiro todo.
B- Uma mulher daquelas desgraça uma casa!
A- Se desgraça, quando dás por ti, já andam enrolados.
B- É o que acontece também com as Brasileiras...há cada história!

(três mulheres jovens continuaram este diálogo de medo e preconceito)

A vida aqui não se forja só pura e limpa no branco cal das casas e nas flores de laranjeira, ela arde em gritos como as papoilas espalhadas pelos campos.
~CC~

sábado, abril 12, 2008

Amores primeiros (I)


Toda a minha infância foi dedicada a um único amor que acabou mal, ele desapareceu um dia sem que percebesse a razão da mudança de residência e sem um adeus que me permitisse guardar-lhe o rosto. Na memória, o nome a a certeza de que tinha caracóis.


Entre os onze e os treze apaixonei-me duas vezes, uma delas por um rapaz chinês que morava nos prédios do bairro e de vez em quando desaparecia para Macau. Trocámos olhares intensos e insultos vários e muito mais tarde soube que além de muito rico, fazia parte de um curioso trilho do Jet Set nacional, jamais poderia dizer nessa altura que a vida dele seria a que veio a ser. O outro caso foi mais sério porque foi com ele que conheci os Genesis e foi o primeiro que me pediu para tirar os elásticos do cabelo e os soltar. Os dois momentos mais intensos que vivemos foram uma dança num baile de anos na sala de convívio do prédio e um passeio num dia de sol até um descampado cheio de trevos onde nos deitámos lado a lado de barriga para o ar. Nada mais. Como ele não andava na mesma escola que eu, esperava ansiosamente por ele quase todos os dias, que descesse até ao pátio, que fosse à janela, que aparecesse na porta da escola, era assim num tempo sem msn e sem telemóvel. Um dia ele conheceu uma das minhas amigas da escola, uma rapariga de olhos muito azuis e ar de princesa, percebi logo que havia no ar qualquer coisa, mas ainda demorou cerca de um ano ou mais até que aquele namoro ganhasse asas. Eu também já tinha me cansado das esperas, os trevos na minha memória tinham perdido a sua magia e os olhos dele tinham deixado de ser vagalumes negros.


Na verdade, o namoro dele com a minha amiga incomodou-me mas não muito, porque já me tinha tomado de amores pelo rapaz mais loiro e mais louco da escola, um adorador dos Beatles, com quem vim a experimentar o primeiro beijo aos catorze. Um beijo horrível, devidamente compensado pela forma dengosa e apaixonada como na canção "Michele" usava o meu meu nome para substituir o da personagem. Atormentou a minha adolescência porque julguei que ia morrer quando tudo terminou uns dois meses depois. Escrevi-lhe milhares de poemas e cartas de amor cheias de pétalas de rosa secas e manchadas de lágrimas. Por causa dele escrevi o meu primeiro romance que tinha o título horrivel de Mãe Lucia, a história trágica de uma mãe solteira. Tornar a amar alguém era impossível na minha cabeça de então, o amor para mim tinha simplesmente acabado, aos catorze, apenas aos catorze anos.

~CC~

quinta-feira, abril 10, 2008

Tibete: dúvidas e certezas.

Eu não sei se a chama está cheia de gelo ou se o gelo está a arder. Eu não sei se o silêncio fala ou se são estas vozes que nos tocam pelo seu silêncio. Eu não sei o que eles querem exactamente mas sei que querem uma coisa que não têm.

Eu não sei se eles estão mais perto que os meus vizinhos ou se estão tão longe que não consigo saber exactamente quem são. A justiça de uma luta é hoje difícil de avaliar na sua inteireza, porque há lutas que nunca chegam a ver a luz dos media e permanecem enterradas e outras que ganham a ribalta de um momento para o outro.

É muito difícil não gostar de quem se veste com um pano a dançar no branco da neve e enfrenta a luta sem quase nada. É dificil não gostar de quem não tem armas que se vejam e parece andar armado apenas das asas dos anjos (mesmo sabendo que eles não têm anjos).

As certezas alimentam-se todas da palavra liberdade na força que tem sempre soletrá-la.
~CC~

Abraço


Ela é nova, é linda, é inteligente. Ela deixa que a sua alma parta para lugares escuros onde mergulha muito fundo e desaparece por uns tempos. No regresso, basta que a olhe para que as lágrimas se soltem. Quis manifestar-lhe o meu espanto pela sua ausência:

-É linda, é inteligente, não há razão para andar assim, porquê, porque é que isso se passa consigo?
- É uma coisa cá dentro, é só uma coisa cá dentro.
( e a água a cair do verde dos seus olhos)

As palavras dela de tão certas, de tão belas, mostraram o inteiro absurdo da minha pergunta. Se queria fazer alguma coisa devia ser ter sido apenas dar-lhe um abraço.
~CC~

quarta-feira, abril 09, 2008

Dias de chuva

Nos dias em que chove dentro de mim e a angústia resolve habitar cada gota, só penso na hora em que ele me escutará. A sua música começa por me fazer fechar os olhos, o resto é fácil e vem por acréscimo. Piazzola diz-me: Dançamos? E os meus passos ganham o dom de voar que nunca tiveram e as roupas ajustam-se ao meu corpo como nunca se ajustaram. Quando ele quase se deita sobre mim no final do tango e os nossos olhos se colam, acredito finalmente que me ama e que me amará sempre. Acredito que aquele amor é o universo inteiro, mesmo sendo na noite quente de Buenos Aires que dançamos.
~CC~

terça-feira, abril 08, 2008

Insignificâncias

No final desta tarde ele podia chegar. A chave rodaria na fechadura, ele entraria com o cabelo molhado da chuva e o seu sorriso de menino. No final desta, de uma outra tarde, de todas as tardes. Ele viria a passos largos pelo corredor na direcção do meu abraço, viria beber dos meus lábios a minha infinita tristeza. Depois a absorver toda, diria: o teu sorriso, dá-me o teu sorriso. E no meu sorriso eu faria passar os raios de sol entre a chuva.
~CC~

segunda-feira, abril 07, 2008

Estranho mundo (I)

Ilha do Ibo, Novembro 2007


Os homens vão ao mar em barcos que pouco diferem de um tronco de árvore. Há apenas dentro deles um buraco escavado. O mar, apesar de doce, é imenso.
~CC~

sexta-feira, abril 04, 2008

Estranho mundo

Quirimbas, Novembro 2007


Em Moçambique andei quase 100 km por estrada batida até chegar ao lugar onde se apanhavam os barcos para a Ilha do Ibo. Havia as avionetes claro, com partida do Resort mais luxuoso de Pemba, mas uma ida e volta custava cerca de 300 Euros. Ora nós moravámos numa pensão digna mas sem luxos em frente à praia onde o povo vai ao Domingo, não estava ao alcance do nosso bolso cruzar os ares em 30 minutos até qualquer paraíso. Pela minha parte nem quereria. Queria ir à Ilha como o povo vai. E descontando o facto dos barcos dos pescadores terem uma tabela a 3 preços: residentes das ilhas, moçambicanos e estrangeiros, foi assim que fui. Era noite quando saímos e manhã cedo quando chegámos ao pedaço de terra sem nada que tinha julgado um cais de embarque. Pelo meio, o nascer do sol mais belo que vi até hoje.


A ilha do Ibo é um lugar tão fantástico e bonito como estranho, de onde as memórias me vão saindo aos poucos. Ja no regresso da ilha, a luta por apanhar uma maré que permita chegar a terra faz o barco pequeno transbordar de gente e duvidamos que os dois motores consigam ter força para o arrasto até ao outro lado. Uns vão de pé e outros sentados, mas tão encostados uns aos outros que qualquer movimento nos faz tocar. Tenho medo, não fora olhar para o metro de altura da água e pensar que se nos afundarmos não será afogados que morreremos. Mas há muitos outros impoderáveis e tento apagar imagens de piranhas e crocodilos, que esses bichos não gostam de sal. Quanto muito uns tubarões, mas talvez sejam pequeninos, tubarões bébes.


No barco apinhado há um telemóvel que toca e recordo que na viagem para lá, bastante menos congestionada, tinha sido o meu. Olhamos todos uns para os outros, ainda que o ruído dos motores amorteça o toque. A Ilha do Ibo é invulgarmente pobre se pensarmos que é um destino turístico. As mulheres que viajam connosco vestem um traje muito comum em Moçambique, uma capulana enrolada nas pernas e uma t-shirt no tronco. É por isso com esforço que a mulher, cerca de 60 anos, enfia a mão por dentro da t-shirt e tira do soutien o telemóvel e o atende com desenvoltura. Demora pouco tempo, depois volta a colocá-lo entre os seus seios. Na ilha do Ibo não havia o que comer, passámos um dia a comer mangas porque foi a única coisa que conseguimos comprar. Fico a pensar naquele telemóvel a tocar entre os seios da mulher.

O mundo é hoje um lugar estranho.
~CC~

quinta-feira, abril 03, 2008

Próximo

Raramente as minhas mãos pensam mais rapidamente que eu, mas foi assim com a compra deste livro. Nenhum arrependimento, são mãos sábias, muito mais que eu, já antes disto suspeitava.

O melhor dela, o modo da sua escuta, a tradução da sua escuta em palavras intensas mas claras. O melhor, as pessoas inteiras lá dentro, inteiras nas suas falhas e contradições. O melhor, o modo como a luz e o escuro andam juntos como se fossem irmãos e Deus está algures no meio.

O melhor dela, a clara evidência que nesta guerra não pode haver vencidos nem vencedores. O melhor, o modo como ela mostra como há sempre um a querer vencer o outro. Interminável Oriente numa linha de terra tão pequena, próxima no que tem de mais distante. E Deus está longe, longe de estar próximo.

Escutá-la amanhã. Escutar os pequenos deuses que são os homens e as mulheres na escuta dos outros, fundar sobre a escuta qualquer religião, estar próximo.
~CC~

Por este rio...

Tejo, Dezembro 2007


Quando o desejo se aproxima de azul, é preciso ir. Toda a voragem interior que é composta da vontade de viagem se acalma ao mergulhar os olhos no transporte da água doce até ao mar, é como se já fosse com ele, é como se já fosse ele.

~CC~

quarta-feira, abril 02, 2008

Ausência


Mesmo quando as mensagens chegam no mesmo minuto do envio e a voz se quer aproximar de uma carícia, há todo um corpo em falta. E nestes dias, em que o ar se parece encher de flores, a ausência é quase dor.

~CC~

terça-feira, abril 01, 2008

Os outros (II)

Preparei-me para um combate invisível já que a missão era escutar-te. Dizem as regras que não interpelamos os nossos interlocutores para desfazer os seus argumentos, dizem que os recolhemos como maçãs para um cesto. É isso que faço em fitas digitais, registo vozes que não sei se algum dia ouvirei.

Imaginei o meu estomâgo às voltas com as barbaridades que dirias, com os teus olhos soberbamente pintados e as pulseiras a abanar nos pulsos, dificultando a minha concentração. Imaginei a tua pronúncia de tia e o modo como dirias: sabe...como se o mundo girasse à tua volta, a cruzada a incendiar-se no teu corpo magro e lábios muito finos.

Depois tu. Olhos azuis num rosto sem uma mancha de pintura, sapatos rasos e roupa larga, um sorriso doce numa mulher de sessenta anos e um discurso tão claro que quase me converteu. E a medalha, apenas a medalha de ouro em que a virgem brilhava, a virgem a baloiçar ligeiramente quando te mexias, apenas ela me mostrava que aquele lugar era outro, não era o meu.
~CC~

Os outros (I)

Ele caminhava como se fosse um navio, embora os óculos escuros enormes e ligeiramente descaídos o aproximassem do rapaz do bar. Se as idades se adivinham mas não se sabem, os passos vigorosos dizem-nos abaixo dos 30. Numa das mãos o essencial: um saco transparente com dois nabos dentro, ainda sujos de terra, como saídos da horta do Campo Pequeno. Dois nabos acompanhando o ritmo dos seus passos em plena Lisboa de sol.
~CC~