quarta-feira, junho 29, 2011

Um pingo de água

No abandono da ardósia está inscrito este eu em navegação interior pelo deserto de si.

Mais logo, um dia, aquela flor.

Mais além o abraço da palavra.

Mais além do além um banho de mar.

Esperança.

Mesmo no deserto deste mundo em que as estátuas gregas têm lágrimas só visiveis aos amantes da filosofia, esse berço onde nasceu o pensamento. Como se pinta de negro a imagem de um povo, eles hoje, amanhã outros. Gastadores, corruptos, ingeríveis. Será?

Eles, eu, vocês.

Não crescem flores no sangue, é verdade.

Mas basta um pingo de água.

~CC~

quinta-feira, junho 16, 2011

ALMAR (XII)

Somos capazes de esquecer durante muito tempo. O esforço diário de branquear a nossa vida anterior um dia deixa de ser um esforço. Depois queremos lembrar e já não conseguimos, fomos nós que abrimos esse buraco, esse vazio no interior das nossas células. Mudei o meu nome e o meu passado, fiz-me nascer com catorze anos. E do que antes era eu sobrou apenas um brilho avermelhado no cabelo. A transfiguração do eu exige que nos tornemos duplamente o que os outros são. É fácil sobreviver quando queremos muito pouco, apenas ver um dia a nascer atrás de outro dia.


Contornava os lugares onde os rios passavam, não olhava nunca para o mar, não me aproximava de todos os lugares onde se pudessem vender tapetes. E não sei contar-vos nada da minha vida até ao dia em que me encontrei numa cama de hospital, há seis meses atrás. Dizem que dormi cerca de quinze dias, e que não sabia dizer nada de mim, que estava num estado de profunda amnésia. Estava grávida, e tinha 26 anos.


Depois, as primeiras memórias foram as da infância. A velha guardiã das sementes Almar esteve muitas vezes sentada ao meu lado no hospital, silenciosa e sorridente.



Dos doze anos da minha vida fora de Almar não me lembrava de quase nada; apenas de alguns cheiros dos lugares por onde tinha passado.


~CC~

sexta-feira, junho 10, 2011

Vida

A Árvore da Vida, eis o cinema sublime. Afinal ainda não vimos tudo, ainda há coisas por inventar, absolutamente originais.

Seres humanos perdidos neste universo infinito. É verdade que inventamos Deus, como podia ser de outra forma perante tamanha solidão e incerteza? Como podia ser de outra maneira se morrem os que amamos tanto?

Não sendo crente, já o chamei com a mesma voz entre o doce e o desesperado que à vez o chamam os membros desta família.

Repararam que não há nomes próprios no filme?

Apenas

mãe
pai
filho
irmão

carne da nossa carne, parte da nossa parte
maior amor, maior dor.


Deus, eis quem os descrentes como eu chamam nos dias mais escuros, com o peso da traição e a irracionalidade mais pura que habita as nossas células.

Batem fortes as ondas do mar.
Nada sabemos.

Apenas que amamos.
É isso é o melhor de nós.

~CC~

segunda-feira, junho 06, 2011

ALMAR XI

O meu pai foi o primeiro a partir. E ele era alto e forte, mas sobretudo via muito longe. Ele e todos os homens Almar tinham sido treinados a olhar os rios, a olhar pelos rios. A mais pequena alteração na corrente, na coloração da água, nas curvas desenhadas na terra, a mais pequena alteração era anotada na íris. Depois era só mostrar os olhos bem abertos a todos os que ameaçavam os rios, era um olhar de meter medo, um olhar capaz de trazer tempestade a todos os que lhes faziam frente.


Os homens corajosos não deviam fugir, nem adoecer, e muito menos morrer. Era isso que eu pensava e, por isso, não podia compreender como é que todas essas coisas nos tinham acontecido, como é que os homens Almar tinham sido dizimados em vida pelo oídio da própria civilização. Não conseguia perceber como é que as mulheres Almar tinham deixado de ser altivas e de ter os cabelos da cor da tinta dos tapetes, e tinham ficado mortiças, tisnadas do trabalho dos campos ou brancas, da cor das casas dos senhores. Não percebia como é que depois dos primeiros tempos de resistência elas foram fazer o impensável, trabalhar na apanha da azeitona, estender a roupa nas casas alheias, pastar as ovelhas pelas manhãs de orvalho. Eu era uma adolescente e tinha começado a odiar o meu povo com o mesmo fervor que o tinha amado na minha infância.

A minha pirâmide era um mar de sombra e tumulto, e o meu coração batia descompassado. É verdade que ainda havia acampamento quando eu parti, mas não era mais um céu azul de lonas a brilhar nas noites de lua cheia, era apenas um monte de farrapos, incapaz de resistir ao vento.