segunda-feira, março 31, 2008

Restos do dia

Tem esta mania de colocar o coração em cima da mesa e o repartir em fatias como um bolo de chocolate. E de deitar lágrimas quando vê como eles dão uma lambidela no creme e deitam fora a massa toda. Uma sobremesa oferecida assim inteira não podia ser objecto de tanto desperdício.
~CC~

domingo, março 30, 2008

Guarda-rios e estuários (XII)



A mulher mais velha que guardava as sementes do povo Almar: o tesouro do meu povo. Nas palavras que tinha dito em voz baixa ela anunciava a ruptura que chegaria mais tarde, no final da minha adolescência. No modo como ela tinha dito que cada um dos meus sonhos colado a cada uma das sementes Almar era apenas o meu sonho, tinha o valor infímo de uma coisa, apenas uma entre as infinitas possíveis.


Soube nesse dia que não era eu a arquitecta do destino Almar porque esse estaria nas mãos de quem soubesse ler e não de quem soubesse construir, não de quem, como eu, desenhava na areia com tanta inquietude. E eu não lia bem nesse tempo, tinha essa dolorosa consciência de que me era mais importante escutar-me do que escutar os outros, mas não a generosidade suficiente para mudar. Mais, nesse tempo soube que a ruptura entre mim e o meu povo residia nesse modo de olhar o colectivo, na recusa em deixar moldar a forma do meu corpo pela do sangue quente que lhe tinha dado origem. No modo como ela, a mulher velha, diminuiu os meus sonhos e me reduziu a um ponto no universo dos pontos, começou aí a minha viagem. Mas não quereria, nunca quis que as sementes Almar se perdessem e muito menos que o meu povo se desligasse e se tornasse mais fugitivo e mais transparente que o próprio vento.


Apenas me revoltava porque tinha sonhos para as sementes enquanto muitas outras ficavam caladas quando se lhes perguntava ou diziam:não sei. Algumas das minhas companheiras usavam uma variante mais sábia: ainda não sei. E quando eu gritava: eu tenho sonhos, cinco ideias para as sementes, era frequente que o riso nascesse entre as mulheres mais jovens. Mais realistas que eu, afirmavam que sonhar as sementes era apenas um modo da mulher velha nos por à prova, porque o que era cada semente e o que dela nasceria, isso já se sabia há muito.


Onde estão as sementes, as sementes do meu povo Almar, é essa agora a minha angústia. E maior ainda é pensar que sei onde estão mas que me posso ter esquecido, que apaguei isso da minha memória como certas zonas de maior violência ou tristeza. Pior ainda é pensar que as tomei com o resto de algum rio, com a última água de alguma das nossas fontes, que as engoli todas numa noite escura e que agora vivem dentro de mim sem que eu saiba verdadeiramente o que são.
~CC~

quinta-feira, março 27, 2008

Teatro no adolescer

Há por vezes uma linha ténue entre o que podemos ser e não ser. A minha linha chamou-se teatro. Teatro no adolescer.

Os momentos deitada no chão da sala escura a verter todas as lágrimas que o dia não podia ver.

O grito a sacudir-me, pedindo que deixasse sair as palavras porque elas podem ganhar asas e nos levar com elas, cada uma é um astro de mil facetas que se pode desfazer na boca.

A ordem imperiosa para soltar o corpo no espaço em vez de o deixar amarrado, aprender que se transformava em caravela e podia ir além mar.

As noites a dormir no chão da biblioteca em intimidade com os livros da dramaturgia, em estreita catarse de alegria e de tristeza, desenhando o futuro como se ele se pudesse abrir em mil medusas de cor.

As mãos agarradas uns nos outros numa ânsia de nós para sempre.

A intensa admiração por aqueles homens e mulheres do teatro, essa magia a entrar sangue dentro em pleno adolescer...

Não fora o teatro e eu podia já não ser.


Teatro todos os dias.
~CC~


Nota: Esta é também uma homenagem ao homem (João Mota) que, em oficinas de drama, tirava adolescentes do nada para lhes mostrar o quanto o mundo dentro deles podia ser imenso.

quarta-feira, março 26, 2008

Guarda-rios e estuários (XI)


Eu, como todas as crianças Almar queria guardar um dia as sementes. Perguntei à mulher velha sobre os meus sonhos para as cinco sementes, queria saber se ela os tinha aprovado, se eles eram bons sonhos, se eles eram uma boa pele para o nosso povo. Ela respondeu que sim, que eu tinha chegado perto do que podia ser o tudo de que precisamos para viver, mas que não sabia se seria eu a guardá-las um dia. Perguntei porquê, triste por ela não ver que era eu, que tinha que ser eu.


Ela explicou então que quem guardava as sementes era quem melhor traduzia sonhos e não quem os tinha mais ou melhores. A mulher Almar que guarda as sementes é uma tradutora de sonhos. Eu não sabia o que queria dizer a palavra tradução, não entendia inteiramente o sentido dela. Traduzir, como as línguas, descobrir sentidos. Queria que me explicasse mais, mas ela recusou. Não me podia explicar tudo porque se não nada sobraria para eu aprender sozinha. E pediu para eu ir, estava cansada.


Esta conversa ocorreu cerca de três anos antes dos Homens Almar terem começado a adoecer por terem perdido o seu emprego de guarda rios, três anos antes do início da grande dispersão, de nos perdermos uns dos outros, ainda que a resistência à dissolução da nossa identidade tenha sido grande e durado pelo menos dois Outonos.

~CC~

terça-feira, março 25, 2008

Frio

Vesti o casaco apesar de ter chegado a casa. Calcei as meias de lã. Liguei os aquecedores todos no máximo. Cobri as pernas com uma manta. Tive saudades imensas de África. E o frio não me largava. Foi em dias como este que descobri que só o calor de outro corpo me aquece.

~CC~

segunda-feira, março 24, 2008

O espanto



É verdade que o desprezo pela igreja católica se alimenta do pior que deles sabemos. Mas não seria possível fazê-lo se multiplicassem padres como Frei Bento Domingues. Dizia ele hoje pela manhã no Rádio Clube Português: a Páscoa é a recusa da resignação, é pensar que nada está nunca terminado e que mesmo aquilo que parece ser o fim, pode não o ser, desde que lutemos.


Disse mais: Os apóstolos não estavam de alma inteira com Jesus, apostavam no seu futuro político e por isso acompanhavam-no, mas quando ele perdeu, abandonaram-no. Por isso, quando ele vive enquanto todos os julgavam morto e acabado, é para junto das mulheres que vai e é a elas que faz o seu pedido de evangelização. Foram as mulheres que não deixaram morrer a palavra de Deus.


Na solidão da viagem, Alentejo fora, abro a boca de espanto.

~CC~


Equilíbrio(s)

Viviane esbracejava e gritava e estava sempre a zangar-se, uma onda de emoções à flor da pele, da qual ninguém escapava. Junto dela estava calor, estava frio, mas nunca se vivia tempo ameno. As palavras eram todas dela e usava-as para se espalhar no mundo. Da sua desorientação eram vitímas directas os seus três gatos e alguns vizinhos a quem movia luta sem tréguas. Os seus excessos traziam-na próximo de nós, pela fragilidade que mostrava, não obstante o receio de que alguma vez a zanga tomasse para sempre conta dela. Era uma mulher sem Primavera. Era toda ela Verão.

Natália, ao invés dela era uma mulher quase sem palavras, não se lhe reconhecia tristeza ou crise, mágoa que se visse ou se traduzisse em qualquer choro. Da felicidade também não era possível dizer alguma coisa, porque tinha um riso comedido e uma gargalhada que nunca chegava. Era contida, tão contida que não se lhe adivinhava quase nada da alma, não obstante nos acolher com delicadeza e simpatia. Os seus abraços eram como penas soltas no vento e nunca, mas nunca se conseguia soletrar a palavra proximidade para combinar com ela. Era uma mulher sem Verão, sem Inverno e a ausência de brilho não a podia aproximar da Primavera, era Outono certamente.

Um dia pediram-me que escolhesse qual delas precisava com mais urgência de um divã de psicanalista. Perdida na dúvida, sugeri a partilha do divã, resposta que apesar de errada do ponto de vista académico, achei até hoje que era certa.


De qual delas gosto mais? Essa é já uma outra questão.
~CC~

sexta-feira, março 21, 2008

Poesia-dia

Pensão Sombra, Angola, Setembro 2007


Os livros dos poemas estavam na mesa dos cafés, nos bancos dos jardins, nos bares das escolas, encaixados nos transportes públicos, pendurados nas estantes dos átrios dos hotéis, a espreitar-nos debaixo das barraquinhas de madeira da praia, viviam paredes meias com as praças das cidades e das aldeias, andavam pelas mesas dos bares e das discotecas e deitavam-se connosco, em perpétua viagem para dentro dos nossos sonhos.


E no supermercado estavam lado a lado com o pão, como necessidade primeira de alimento.


A poesia oferecia-se em todos os lugares, numa luta sem tréguas pela imaginação, pelo calor do sangue, pela sonoridade da palavra, pelo brilho do olhar, numa luta, numa luta contra as palavras mal temperadas, descosidas e banais.


A poesia oferecia-se, devia oferecer-se. E os poetas seriam todos pagos pelo erário público como bem essencial. Os poetas andariam pelas ruas, pelos cafés, pelas escolas, pelas praias, pelos supermecados. Os poetas deixariam os seus poemas escritos pelos guardanapos de papel, pela areia, pelas embalagens, pela primeira página dos jornais, pelas nuvens, pelas paredes das casas, nos beijos postos nas nossas faces.


E a poesia não precisaria mesmo de dia, deste dia.


~CC~




quinta-feira, março 20, 2008

Primeiras flores

Amanhã é o primeiro dia das novas flores. Há que observá-las bem a cada ano. Leva os teus olhos para que as possas trazer quando olhar para ti.
~CC~

Separações

É agora um tempo em que se descosem laços muito antigos ou mais recentes, mas em que duas pessoas que estavam juntas parecem nada mais encontrar para assim se manter. São separações de amigos ou de família, gente próxima. Da dor deles há um eco na nossa pele. Há também a enorme dificuldade em dizer as palavras certas, em oferecer o colo na medida correcta, em escolher o melhor lenço que possa limpar as lágrimas ou em alguns casos, o empurrão para que possam chorar porque tudo parece já estar seco. Querendo ser justos, parecemos sempre injustos. Recusando acusar nos casos em que é essa a medida que aquela separação encontra, somos sempre suspeitos, acabamos por vezes também acusados.

Há também a sensação por vezes estranha de que se separa quem não devia e permanece junto quem já não devia estar. O esgotar das razões e as razões que parecem não se encontrar.

E há um deles que vemos partir mais do que outro porque era com esse o nosso nó primordial, ficamos sem saber que dizer ao elo do par que sabemos que o tempo levará para longe de nós. È como se o seu rosto já se estivesse a apagar, como se a voz se estivesse a esfumar, como se do tempo que juntos vivemos já só reste a lembrança. Durante alguns anos pensei que devia acompanhar minimamente este que sairá do círculo, que é empurrado bruscamente para fora das festas de família, de aniversário, este que deixa de ser convidado para o cinema e para os jantares. Ultimamente já não consigo, já não consigo sequer telefonar e dizer: independentemente da vossa separação, sabes que podes contar comigo. Não é que tenha deixado de o sentir, sei simplesmente que não será assim. Sei que quem se separa não é só daquela pessoa que se separa mas do mundo inteiro que a acompanhava e que restam, nos casos em que existem, apenas os filhos. Há em alguns casos um desamparo enorme desta pessoa a quem nunca chamámos amigo porque o nosso amigo ou membro da família é o outro membro do par. E ficamos estáticos perante esse desamparo, imóveis perante o nosso laço de amor, sem palavras que possam dizer que a nossa escolha não é racional, não se faz pela justiça, tem por base sobretudo a cumplicidade que anos e anos teceram.

Um abraço, apetecia-me dar um abraço a esses que não mais verei. Com os outros, o meu abraço é permanente.
~CC~

domingo, março 16, 2008

Coisas simples (I)


Isto é também um jogo?! Sim, a blogosfera é também feita destes jogos, de miúdos a brincar de mostrar e de esconder.

A CS recebeu de alguém e passou de mão em mão virtual o desafio, qual lengalenga que se repete no recreio...se eu fosse...Ela não sabe que uma parte da minha vida é feita destas brincadeiras com gente crescida, a tentar ver o que guardam lá dentro, acreditanto que são mais do que as trivialidades que dizem ser.


Ela resolveu tudo de uma vez mas eu não consigo, pedi tempo, adiantamento, mudança, enfim um espaço para a anarquia que comporto. Vou dizendo, assim na medida em que a vontade chegar. Que leve também a corrente quem quiser.


Se eu fosse um mês seria um mês de calor a chegar, o mês das primeiras idas à praia, um mês ainda com papoilas, um mês em que há ainda cerejas e morangos e já aparecem as primeiras melancias. Eu seria Junho.

Se eu fosse um dia de semana, nunca seria nem Domigo nem Segunda Feira, dias de adormecer almas, tinha que ser um dia vivo, um dia de acordar em sol.
~CC~

quinta-feira, março 13, 2008

Bairro Amarelo II

Yasmina tirou os óculos e poisou-os sobre a mesa, mostrando o cansaço dos seus quarenta anos:


Aos nove levaram-me para um lugar incerto, pensei que não voltava nunca mais, consegui fugir, mas escolhi não odiar.


Aos doze a polícia tirou-nos de casa numa acção de despejo porque a minha mãe não pagava a renda, mas escollhi não odiar.


Aos catazore fui apanhada a roubar chocolates num supermercado e apenas por um chocolate levaram-me à esquadra como se eu fosse uma deliquente, mas escolhi não odiar.


Aos dezanove o homem que eu amava desde os doze deixou-me por outra mulher, mas escolhi não odiar.


Aos vinte e dois acabei para sempre com qualquer hipótese de promoção na fábrica porque não entrei no carro do chefe quando ele me acenou à saída do trabalho, mas escolhi não odiar.


Tenho quarenta e a fábrica abriu hoje pela última vez e não faço ideia do que irei fazer amanhã, mas vou continuar a escolher não odiar.


Mas vê estas pessoas aqui do bairro, elas odeiam e eu sei porquê, é porque a vida delas foi igual ou pior que a minha.


Olho Yasmina e o rosto dela apaga-se no meu e o meu apaga-se no dela. Digo para mim as palavras dela, baixinho, para que elas me entrem para sempre no coração: escolhi não odiar.
~CC~

quarta-feira, março 12, 2008

Primavera



A noite tinha sido branca, cada hora a passar uma a seguir à outra em perfeita consciência, e com ela o medo a crescer. Assim que o sol nasceu meio pálido numa manhã ainda fria, saímos para a rua. Era preciso andar e andar e não comer nada, é pouco o que os médicos nos dizem às vezes, quase o mesmo que a vizinha do lado. Não podem ler nos nossos olhos porque isso poderia atrapalhá-los, então cruzam os olhares rápido para que a luz que podemos ter ou a absoluta falta dela, não os possa ferir. Como os ponteiros do relógio demos voltas e voltas em redor do hospital até que o sol acordou por completo e a dor se tornou tão grande que o corpo teve que se dobrar ao meio, num último esforço para ultrapassar a porta.

Tudo começou bem e a meio tornou-se mau e escuro e difícil. Mas o que fazem as sombras quando o sol chega forte? Era meio dia e acho que o chamei, chamei baixinho e sem nenhuma dor já, eu era apenas o desespero a chamar a esperança.

Foi no calor do meu sorriso que a vi e era uma princesa tão loira e tão bonita, que parecia ter saído de um conto de fadas. O que dizemos quando nascem flores? Que começou a Primavera. A minha chega sempre um pouco antes, desde há doze anos que anda assim a adiantar-se ao calendário. E cada ano mais bonita.

Parabéns flor.
~CC~


segunda-feira, março 10, 2008

Ousar



Fim de tarde com chuva pequenina. Estação de comboios, sempre a ir, sempre a chegar. O rapaz e a rapariga, na casa dos vinte, abraçam-se uma e outra vez e mais e mais. O rosto dele, mais alto, deita-se no ombro dela e o dela encosta-se no peito dele, são afagos lentos e demorados de gatos. É certo que um deles terá que ir no comboio e o outro irá ficar. A despedida deve ser apenas um até amanhã porque a Fertagus só faz trajectos curtos. Mas claro que não parece, parece que só se se irão ver dentro de uma semana, um mês, um ano. Beijam-se pouco, enrolam mais os seus corpos, procuram o encaixe como se estivessem na cama. Estão longe de ser belos, ele é muito alto e desengoçado, ela é mais baixa e forte. O comboio chega e ela prende-o ou é ele que se prende nela. Ficam assim apertados em silêncio, parece uma eternidade. O comboio parte e nenhum deles se despreende do outro. Depois riem, riem perdidos de alegria, riem da sua ousadia, riem da rebeldia que o amor tem, que só o amor tem.


Muitas vezes tentei explicar o que era a rebeldia do amor sem conseguir.


~CC~



domingo, março 09, 2008

Links

Acredito que a amizade é voz, ela irrompe o nosso silêncio interior para nos transportar ao encontro e depois tece um laço que se alimenta de um diálogo muito íntimo que nos fortalece.

Antes estas vozes tinham um rosto preciso e apenas ele era sempre invocado na nossa memória para referir a palavra amigo. Hoje chegam-nos vozes sem rosto através da rede, vozes que ficam a falar-nos na caixa de comentários, vozes de afago e de dúvida, vozes sem timbre nem tom, até que alguém faça um movimento para dar imagem ao que é apenas sombra. Umas vozes aparecem e depois desaparecem como fogos fátuos, ficamos a pensar que vento as levou, com que palavras esquecemos de corresponder ou que talvez a aragem seja a sua natureza. Das razões porque vieram, das razões porque foram, nunca chegaremos a saber. Do Ninguém Lê, meu primeiro blogue, recordo o Jorge e o Jota, vozes que eram persistentes nas suas vindas e teciam nós connosco, mas que um dia se foram, assim como bolas de sabão desfeitas ao vento.

Não tenho ainda a capacidade suficiente para compreender o que é esta amizade sombra que se vai construindo na rede, estas vozes que se chegam a nós através das imagens e da escrita. Mas estou longe de querer compreender tudo, não obstante alguma deformação profissional me conduzir por essa via. O que eu queria, sobretudo, era dizer que o link é esse caminho para o outro quando o outro já fez até nós um caminho, é dizer-lhe que agradecemos o tempo que nos dedica na caixa de comentários, é dizer-lhe que mesmo quando não há possibilidade de resposta ou resposta sequer, estamos aqui e escutamos.

É assim com:
Isabel Mendes Ferreira, do Piano
JRM, do Profanus.
Para eles o meu abraço. Outros, a seu tempo virão, se os dedos no teclado aqui os trouxerem.
~CC~

sábado, março 08, 2008

Mulheres



Não quero rosas, obrigada. Prefiro as flores do campo.


Gostaria mais que notícias como a do jornal Público de ontem não existissem. Na pág. 13 pode ler-se que as reclusas não têm direito como os reclusos a visitas íntimas (que duram três horas, uma vez por mês). "É como se só eles tivessem imperativo sexual". Estamos no Ocidente do século XXI.


É nestas coisas pequenas, muitas delas ligadas de facto ao corpo, ao afecto, ao sexo, que a discriminação passa ainda como uma sombra. E claro, nas questões do poder, donde elas por vontade própria ou alheia arredam as suas vidas. Quando não o fazem, gostam de mostrar uma face dura, como para desmentir o que a sociedade considera a fraqueza do género. Aqui e agora, as conquistas princípais estão feitas, mas há ainda discriminação subtil e difusa, sombras. E há ainda a violência. No outro dia, na rua, em plena cidade, ouvi o lamento de uma amiga a outra: ontem o sacana bateu-me tanto....junto delas caminhava um miúdo de três anos. Os relatos são mais que muitos.


Para que servem as rosas senhores? Prefiro as Acácias Rubras.


~CC~

sexta-feira, março 07, 2008

Ver e escutar

Sua excelência, sabe que a escuta é uma das competências fundamentais do ser humano? Parece que amanhã os professores marcham em silêncio em grande parte do percurso que farão no coração da cidade de Lisboa. A capacidade de observar é outra grande competência, analise atentamente o rosto deles. Se souber ver e escutar, saberá que nada se constrói entre ruínas.


Sua excelência não fez tudo mal, ninguém faz. Sua excelência tem razão em algumas das coisas que pretende mudar, mas fracassou no essencial. E o essencial é a escuta, a compreensão do que o outro diz, quer, sente.

Experimente virar a página.
~CC~

quinta-feira, março 06, 2008

Dias felizes

Mesmo sem ser Sábado ou Domingo, assim de surpresa a meio da semana, o dia acordou-me dentro do mar.
~CC~

terça-feira, março 04, 2008

Nascer


O meu amor imagina que foi concebido num meloal do Ribatejo, numa madrugada de calor maior, entre um golo de vinto tinto e um resto de pão com azeitonas. Explica desse modo as suas mãos grandes e cheias de vontade de terra, a sua paixão por secar todos os frutos, o seu ofício de guardador de sementes. O meu amor imagina que foi concebido rapidamente no intervalo do trabalho, na intensidade de um desejo frugal que amansou logo depois de satisfeito. Explica desse modo o seu corpo quente, sempre em demanda do calor de outro corpo, o seu gemido cheio no prazer, a sede de beijos que trouxe a vida inteira.

O meu amor é um menino só a crescer entre as couves e as galinhas do quintal e a sonhar com mundos que lhe chegam para além do Tejo. Quando cresceu, foi ficando moreno, cada vez mais moreno e agora parece que sempre cantou mornas em crioulo. O meu amor teve muitos amores, amores bravios, outros doentios, e outros que não eram nada. O meu amor procurava, diz que me procurava.

O meu amor estudou muitas coisas. Ele pode ser um caçador de gambuzinhos, um encantador de aves, um corredor de bicicleta movido a vento, um flautista de palácio, um dançarino de baile da pinha, um cuidador de almas cansadas. Ele assa sardinhas e vai ao baile da paróquia, ele sintoniza a rádio Jazz e usa quatro talheres e alguns copos.

O meu amor diz que nasceu hoje, mas ele já nasceu muitas vezes, esta é apenas aquela data escolhida para a festa. O meu amor já nasceu dentro de mim, com um sorriso tão grande, que não há memória de nascimento tão feliz.

segunda-feira, março 03, 2008

No meu bairro

Bairro da Bela Vista- Setúbal
Imagem retirada de cetobriga.blogspot.com


Os bairros deviam ser todos verdes e belos, rasgados para horizontes de mar e gaivotas. Os bairros deviam ser como os ninhos das cegonhas, equilibrados em aconchego sobre o céu. Mas não são. E não podemos evitar saber isso, ou não devemos.

Cruzei-me com este por acaso, mas não lhe fui indiferente. Às vezes parece-me tão sereno como uma pomba adormecida e lenta, outras vezes tão soalheiro como se fosse apenas talhado em vizinhança amistosa e outras ameaçador e negro como um buraco sem saída. Tem muitos rostos, mas apenas um chega à Comunicação Social, é invariavelmente pelo mal que brilha.

Desta vez, mesmo que apenas ocupe uma pequena notícia de rodapé ou pé de página, é por uma coisa boa que se falará (embora pouco, é certo, que o bem não faz notícia). Desde há ano e meio que cerca de 25 estudantes da ESE ocupam por lá os poucos tempos livres que lhes restam, entregando o que de melhor conseguem descobrir em si. Eles deixaram-se tocar quando os chamei e até hoje isso surpreende-me. Alguns ficam pouco tempo e não resistem às múltiplas pressões, mas outros ficam, mesmo muito jovens ainda e com uma experiência de vida completamente diferente desta. Eu também nunca morei num bairro social, também nos meus olhos doem algumas imagens.

Amanhã, por um momento, vão esquecer-se as divisões e conflitos que vivem na flor da pele , amanhã por um momento é festa. Afinal saiu o primeiro número do Jornal "Vozes do Bairro", nascido a tinta e papel, pelas mãos das crianças e jovens do bairro. Espero que este seja apenas o primeiro. Uma das nossas estudantes voluntárias contará do seu envolvimento. Há também jornalistas* que aceitam estar assim em acontecimentos modestos destes, julgo que se deixam tocar.

~CC~


* Obrigado ao LF do Jornal Diário de Notícias.

Nasce de coisas pequenas

O amor (re)nasce a cada dia quando se deixa habitar pela ternura das coisas pequenas e por elas também é capaz de morrer.

Ela menina magra e pequenina, frágil como se qualquer vento a pudesse levar, mas ao mesmo tempo de olhos pretos espertos, embora baços a arder pela febre. Ela de choro inquieto, cabeça dorida, perdida na ausência dos pais.

Tu a acompanhares a dor da infância doente misturando a dose de xarope com a dose de viola doce, vozes que se soltam a cantarolar, como se afinal tudo estivesse bem. Ela adormece, sonhos embalados pela música. Foi assim que cheguei até ti.
~CC~