quinta-feira, setembro 30, 2010

Banhos de silêncio

Tomo banhos de silêncio. Ele é floresta escura em que me perco. Ele é uma ponte romana nos confins da Beira Alta, onde encosto as mãos nas pedras e vou delas ao meu corpo e do meu corpo a elas, e concluo que somos matéria porosa do tempo, daqui a pouco seremos pó, mais eu que elas.

Há tanto ruído no mundo, tanta gente a falar. Anunciados os precípicios não sabemos como não cair, não nos dizem. E pouco percebemos já do que o mundo é. Escapam-nos os sentidos de todas as crises que nos inventaram.

Há ruído a mais em todo o lado, música estridente, conversas ao telemóvel, redes virtuais, discussões entre vizinhos, políticos de boca aberta. E tão pouca coisa a fazer sentido.

Apetecia-me fazer greve. Seria apenas o corpo a falar a sua linguagem para quem o quisesse escutar. Digo-me melhor com a pele.

~CC~

quarta-feira, setembro 29, 2010

Das cores

Imagem retirada de: http://www.topearl.com/pimages/Coral_Color_shell%20pearls.jpg

Sentadas à mesa de Domingo, com o cansaço colado manso na pele, falamos de coisas simples como as cores da moda deste Outono. Interessa-me invugarmente este ano o assunto, isto porque tenho a teoria de que as cores que gosto mais dia menos dia estão na moda, como o roxo e o lilás, finalmente em abundância pelas montras. E há algumas que nunca visto como o verde, porque jamais poderemos imitar a beleza do verde da natureza, e quando o vestimos parecemos plantas sem graça.

Esta ano, qual alquimistas, os estilistas entraram em devaneio, resolveram trazer-nos cores sem nome, investiram de tal modo em cambiantes dos vários tons, que nos deixam confusos na nomeação, e assim aumentaram o léxico das vendedoras das lojas. A minha mãe, de (+) 80 anos, resolveu bem a coisa, disse que este ano a moda eram as cores abstractas.

Penso que é assim também a saudade quando ela começa a perder o rosto, torna-se uma saudade em abstracto em vez de ser concreta, de ter rosto. É uma saudade de uma cor sem nome, tem lá dentro apenas um sentimento de nostalgia, de uma coisa perdida. É a saudade do amor, em vez de ser a saudade de um amor.

Este Outono as cores não têm já os nomes antigos, andam em demanda à procura de nomes novos, reinventando-se dentro do que é velho e parece gasto. Se assim fosse com todas as coisas.


~CC~

Veja-se o que se diz do coral: "Coral é uma cor vermelho ligeiramente aclarado com branco, sem chegar a ser rosa, que deve seu nome a um tipo de cnidarias chamadas coralé. Em mistura sustractiva obtém-se suavizando com alvo um vermelho intenso, podendo desviar-se minimamente para o magenta ou para a laranja. Em mistura aditiva, seria o resultado de somar um pouco de luz azul e um pouco de luz verde a luz vermelha ao máximo" (in http://pt.wikilingue.com/es/Coral_(cor)





terça-feira, setembro 28, 2010

Da minha árvore

Uma frase curta, a medo ainda. Sabe se há uma casa à venda, mesmo pequenina, tem que ser é perto do chão, e tem que ter quintal. E não se esqueça de uma árvore no quintal, daquelas que falam com a nossa solidão. E não quero prédios em volta, apenas o silêncio do céu grande e azul.

Devia pensar na vida, mas é na morte que penso. Não lhe posso dizer mais, muito mais. Não lhe posso dizer da dolorosa consciência do que é a morte a aproximar-se num hospital público. Das lágrimas que só por momentos cairam grandes e grossas. Da forma como a morte ronda as camas e se infiltra a cada momento nos olhares tristes daqueles que ainda abrem os olhos. Olhamos todos a nossa própria morte quando se aproxima a daqueles que nos são próximos. Preciso assim de uma árvore e de um quintal. E de umas mãos que me possam tocar até ao fim sem medo da pele gasta e velha que terei.

Poderei trabalhar mais e mais, mais e mais. A bem da árvore, dos diálogos que terei com ela. Por momentos imagino tambem o riso das miúdas, e um sabor a manjericão, como se um resto de alegria pudesse infiltrar-se em toda a minha tristeza.
~CC~

segunda-feira, setembro 27, 2010

Nada menos que muito

Podia vir a correr, mas veio ao pé coxinho. Podia vir a dançar, mas veio de passo hesitante. Podia ter vindo de riso aberto, mas esboçou meio sorriso. Podia ter dito uma frase redonda e quente, mas disse frases confusas, atrapalhadas, mornas.

Do amor eu não quero nada menos que muito.

Os outros que fiquem com o resto.

~CC~

domingo, setembro 26, 2010

Domingo

O Domingo chega tão cedo, tão triste. Sacudo partículas finas que parecem lágrimas coladas à pele, sopro-as com tanta esperança de que se vão. Mas ainda se demoram, ainda ficam.

Aqueles que agora se encostam mesmo sabendo que o sabor das lágrimas é só sal, esses são os que ficam. Esses a quem a nossa tristeza não pesa. Esses para quem o nosso sorriso é uma luz pela qual lutam ao nosso lado. Esses para quem ao nosso lado é tudo, esses que não fazem perguntas, esses que ficam.
~CC~

Para uma flor


De todas as horas, as mais felizes, as mais infelizes, aquelas em que nos rimos, aquelas em que chorámos. De todos os minutos, aqueles em que nos levantámos, aqueles em que tombámos. De todos os segundos, aqueles que foram secos e em terra, aqueles que foram molhados e salgados.


É assim a amizade que sinto por ti, ela é feita de tudo o que construimos passo a passo, ela é sobretudo esse agarrar o outro quando ele tropeça. É saber que estás ali do lado do telefone, do sms, do mail. É saber que há um capuccino do Magnólia sempre à nossa espera e por trás do seu fumo uns olhos transparentes onde me posso e te posso olhar.

Estou aqui, estarei aqui.
Gosto muito de ti.

Parabéns flor.

~CC~

sexta-feira, setembro 24, 2010

Ausência

Quando as estrelas do mar
passavam laranjas leves doces
voando pelo azul da praia de Pemba
estavas longe e eu tinha-te

Tinham sumo os teus lábios
um doce sussurrar
que parecia um manto
que vinha levar-me os meus anjos negros

Nem te tocava
Mas a tua voz chegava
para enrolar as insónias
levá-las de mim

Esse era outro de ti
alguém que já partiu
como se alguém agora usasse o teu corpo
e a tua voz
e não és já tu

E se voltas ao teu corpo
e usas a voz que tinhas
é só por um instante
é um breve atear de sorrisos
uma chama que não se aguenta no pavio
e não consigo soprar mais
dar-lhe gás

e na tua presença
tenho saudades de ti
o amor pode assim partir
quando alguém parte de si.

arrepio-me sozinha com a palavra rapaz.

~CC~

quarta-feira, setembro 22, 2010

A loiça

Parece que foi apenas momentinhos antes de eu dar sinal de que queria pular para este lado do mundo, consta que tinha acabado de embrulhar o serviço de loiça das flores verdes e azuis estilizadas, nada que se assemelhasse aos serviços de loiça antiga, era já verdadeiramente um design anos 60, hoje meio estranho porque não é antigo nem moderno, é uma coisa assim a meio caminho.

Parece que foi o primeiro serviço de loiça completo, com pratos e pratinhos de todo o tipo, e até pires específicos para azeitonas, molheira e sopeira. Por se ter casado por procuração, isto é, está nas fotos com outro que não o seu marido, e não ter podido levar arcas de enxoval para a Índia, esta mulher foi-se desenhando diferente do que as suas origens faziam pensar. E este serviço de loiça foi das poucas coisas que viajou com ela por estes cantos do mundo onde nos fomos encostando a procurar ser família. E o serviço é como nós, já resta pouca coisa dele, apesar de pouco se ter partido, a sua resistência fez com que se encontre disseminado por muitas casas e sitios, e ainda há pouco a minha mãe encontrou uns quantos pratos na casa de uma amiga.

Todos os anos nesta data digo que vou guardar o que dele resta como memória preciosa do dia do meu nascimento. Mas depois penso que o melhor é deixá-lo por aí, porque o que dele restar já não é só o vidro de que é feito, mas a prova do tempo. Como ele, também prefiro pensar em mim como alguém que o vento levou até ao coração de algumas pessas, e que os pedaços que repousam são sementes que a seu modo próprio modo germinarão.
~CC~

terça-feira, setembro 21, 2010

Noites brancas

Penso invariavelmente nas suas noites de solidão dentro do hospital, mais ou menos iguais aos seus dias. Só me interessa que por alguns momentos dê conta de estamos ali, de que não o abandonámos. Tu não o fizeste, mesmo quando a retribuição que te deu foi pequena. O melhor de nós é superarmos o pior de nós, o escuro que se esconde cá dentro. Preciso ir, preciso estar.

O tempo está a escoar-se, a fugir-lhe. E as minhas noites ficam brancas, quase iguais aos meus dias. Às vezes parece não haver lugar onde ir buscar mais força, outras vezes pareço alimentar-me da energia da lua que teima em brilhar nestas noites em que se vai enchendo até atingir o máximo do seu esplendor. Se eu pudesse deixar tudo, acompanhá-lo.

São as trevas e a luz que dançam comigo por estes dias, uma e outra batalhando em segundos, minutos e horas para ver quem ganha.
~CC~

segunda-feira, setembro 20, 2010

Luz

Ela disse: nesta aldeia nova não podemos falar com os nossos mortos. Eles estão lá na outra, na que está debaixo de água.

E eu percebi como se estivesse dentro dela com os mesmos 80 anos e toda uma vida a morar numa aldeia alentejana. Deve haver qualquer coisa de errado comigo pois nunca sequer estive uma aldeia, um lugar, uma terra, uma festa de aldeia da qual me pudesse rir até às lágrimas. Qualquer coisa de errado, pois sei que os mortos não são mais que ossos, bocados de carne arruinada, quase pó.

Eventualmente o problema pode ter sido o de ter devorado o Meu pé de laranja lima aos dez e os Cem anos de solidão por volta dos dezassete. A minha educação afectiva foi feita à custa de formigas gigantes, famílias de sangue, árvores falantes.

Fiquei assim, a pensar que também posso falar com os mortos. A chorar as aldeias perdidas que não tive. A imaginar casas térras cheias de osgas na parede assim que o sol se põe. A imaginar que deixo uma grande e bonita azinheira como legado aos meus filhos, mesmo tendo só uma, fico a pensar que todos os outros que fui tendo também são meus. A imaginar-me em paz, rodeada por trepadeiras que cobrem de vermelho, laranja e roxo as minhas próprias paredes brancas.

~CC~

domingo, setembro 19, 2010

Domingo


Procuro por mim
É uma das minhas actividades de Domingo
~CC~

sábado, setembro 18, 2010

"Expulsão voluntária"


"Monsieur, monsieur...
Bianca, jovem cigana búlgara de pés descalços, chora e implora a um agente policial que a deixe ir buscar as sandálias à cabana. Um bulldozer está já em acção no bairro de lata de Bobigny, subúrbios de Paris. Não há tempo a perder com o calçado que a rapariga não conseguiu enfiar."
Daniel Ribeiro, Jornal Expresso, p.7 de 17 de Setembro.

Como me apatecia ficar descalça como Bianca, não para correr livre de sandálias, mas verdadeiramente para as usar como símbolo de revolta. É assim que se constrói a raiva a correr dentro do sangue, é por causa dela que se pega em pedras, em sapatos, em tudo o que esteja à mão para arremessar contra a cegueira que toma conta do poder. Depois ficamos admirados pelo ódio avançar mais depressa do que avançam as ervas daninhas nos tapetes de relva. E pelo ódio não usar os meios mais adequados para se expor, mas os menos. Como poderá não odiar uma menina expulsa de um país sem razão aparente que não seja a pobreza do seu povo? E que poderá ela fazer ao seu ódio?

Desejo que possa fazer com ele algo mais nobre, mais digno de que o devolver sob a mesma forma, mas isso é uma tarefa que muitas vezes se afigura verdadeiramente impossível. As cicatrizes até podem não doer, mas a pele, essa revela-nos todos os dias as suas marcas. Ainda lhe chamam "expulsão voluntária".
~CC~

sexta-feira, setembro 17, 2010

Descaminhos (II)

Cães que são meio gatos.
~CC~

Descaminhos

Irrompeu por ali no meio do átrio, com a seu cabelo loiro e um sorriso grande, uma rapariga bonita que já não via há uns três anos. Veio ao meu encontro com os passos certos e quando me ia dar os dois beijos comuns, agarrou-se a mim num abraço. No meio do átrio cheio de alunos trajados a rigor, assim sem vergonha, ela ex.aluna e eu sua ex.professora ficámos por um momento abraçadas, comovidas.

Perguntei-lhe pela vida, ao que ela respondeu que a vida ia bem, mas que decidira mudar de vida e estava ali para estudar outra vez. Tinha dado aulas sim, mas tinha começado a cantar à noite, e agora tinha-se tornado sério, e ia gravar um disco. Ainda pensei que vinha então estudar música, mas disse-me que não, que tinha escolhido Comunicação Social. E como eu não estava a ver relação evidente completou: é para abrir horizontes, e preciso de estar a estudar, faz-me bem. Vou gostar de a ver por cá, respondi-lhe, mais ou menos certa de que a vida é um cruzar contínuo de caminhos, muitos deles inesperados. E que ainda hei-de abrir a minha loja de mil chás.
~CC~

quinta-feira, setembro 16, 2010

Constatações

Vento do Sal. Cabo Verde. 2007


O coração é papel
rasgado, amarrotado, torcido
e ainda assim
pronto a ser alisado
ficar como novo
transformar-se em papagaio
riscar o céu

O coração é sopro de ar
fiozinho, vendaval, aragem
e ainda assim
pronto a respirar compassado
se lhe apanharem o ritmo certo
transformar-se em saxafone
arrepiar a noite

o coração não morre
só quando já morto.


~CC~

quarta-feira, setembro 15, 2010

Lugares onde ir (II)

56ª Edição
FESTIVAL DE MÉRIDA • Diocles, 1 - 06800 Mérida
Tel. 924 009 480 Info: 924 004 930
oficina@festivaldemerida.es • http://www.festivaldemerida.es/

A programação era apelativa e o lugar belissímo, há muito colocado na minha agenda. Dá-me alento saber que quando entramos no site, nos avisam que já preparam a 57ªedição. Enquanto o Outono espreita, posso assim sonhar com uma noite do próximo Verão no teatro romano de Mérida. Há sonhos mais complicados.

~CC~

terça-feira, setembro 14, 2010

Outra

Como eu gostava de ter uma carapaça onde me esconder como fazem as tartarugas quando qualquer ameaça se aproxima.

Sim, já sei. Não é um modo de um ser humano viver.

Mas precisava.

Ou então de um vento doce, que me desse vontade de ser um guarda-rios. Quem me dera andar de asas a visitar todos os rios um por um, fazer-lhes as curvas. As curvas dos rios sempre me interessaram.

Outra coisa que não pele exposta.

~CC~

segunda-feira, setembro 13, 2010

Cheiro a papel novo



Há coisas que nos tentam, por exemplo o cheiro a papel de um livro novo, pronto a sair da gráfica.

http://quetzal.blogs.sapo.pt/229382.html


Mas isso de ter que ser obrigatoriamente através do Facebook...


Fica para a próxima!


~CC~

Dos dias

Fazemos uma festa a cada dia que o calendário pessoal ou colectivo marca como de alegria. Nuns nascemos, noutros iniciámos um namoro, ou casámos, ou tivémos filhos. Já me trouxeram sempre flores nesse dias, e eu gostava. Para o colectivo é Natal, passagem de ano, Carnaval...ou simplesmente início de ano lectivo. Muitas vezes esses dias foram mesmo festa cá dentro, um riso intímo e precioso, outras só uma forma de esconder melhor a tristeza.

Mas a memória que habita cada dia triste é, até morrer apagada pelo tempo, um latejar de dor. Escondemos esses dias, até de nós. Mas um dia descobrimos que foram tão ou mais importantes que os dias felizes, que o fundo do poço tem escondida uma outra luz que somente ainda não nos é acessível.

E isto é só por ser dia 13.


~CC~

domingo, setembro 12, 2010

Mensagens na neve

O titulo do filme tem um ar banal, de policial barato: "O Caso Farewell".
E começa com um tiro afastar a quietude dos pássaros que voam sobre a neve. E assim acaba.
A história é baseada em factos e pessoas reais ocorridos no tempo da guerra fria, culturalmente interessante para a compreensão do mundo que hoje temos, que hoje somos.

Mas registo apenas:
Dois homens que se tornaram amigos e que nunca se irão trair, e o abismo estava ali, entre eles e à volta deles. Um dos homens é Russo e deixou de ser comunista, mas não é verdade, ele é, os outros é que deixaram de o ser. Está perdido no meio dos seus. E não tem outro lugar, não fugirá. A sua traição não é traição, é um tiro para fazer voar as aves da lama onde enterravam as patas.
Um dos homens é Francês, mas a sua simplicidade é tão desarmante, que em nada se assemelha à soberba com que os franceses costumam olhar o mundo. E não tem com o seu país nenhum romance, só quer criar os seus filhos em paz. Na hora certa gritará, sem medo das palavras, que o ocidente vive do marketing da palavra liberdade.

Todos procuramos amigos assim, capazes de nos fazer rir e de nos limpar as lágrimas. Não precisam de ser muitos nem de estar sempre connosco, é a confiança a base de todos os elos.

Dois homens tão improváveis bebendo conhaque para derreter a neve.

~CC~

(nas sessões da tarde de Domingo as pessoas vão sozinhas ao cinema, e são muito poucas, olham a solidão umas das outras com uma simpatia envergonhada)

A pomba da pata partida

Não era um homem conhecido pela sua bondade, e toda a vida tinha desprezado laços, ou tinha-os perdido devido ao seu mau feitio. Todos lhe conheciam essa faceta, e os mais próximos já tinham deixado de o tentar amar, em algum lugar eles sabiam que ele esconderia um gesto de desprezo.

Não era um homem mau, ninguém se queixava verdadeiramente de uma ofensa sem remédio, de um mal sem um pedido de desculpa, e era possível recordar um gesto de carinho, um braço que tinha posto sobre os ombros dos filhos, uma mão dada à mulher, umas das muitas mulheres que teve.

A ambiguidade do que se sentia por ele era tremenda, e atirava-nos a nós, mais do que a ele, para um lugar escuro, uma espécie de beco sem saída. A vontade de bater a porta e não mais voltar era grande, mas voltaríamos sempre, porque o que fazíamos já não era por ele mas por nós, para calar culpas e remorsos futuros.

Comigo tudo era pior. Em parte por causa da pomba da pata partida. A história que ele me tinha contado num daqueles dias mais dificeis, quando ainda morava naquela que tinha sido a sua casa. Um intelectual, um antigo coronel, um homem do poder, um mestre espiritual não alimenta pombas no jardim ou na praça, e por isso ele fazia-o na sua varanda. E murmurava num daqueles regressos do hospital: que será das minhas pombas...E a da pata partida, aquela que me vinha comer à mão, aquela que eu protegia, afastando todas as outras...nunca a deixavam comer. Pensei que se tratava de um delírio de doente. A compaixão era um sentimento que não lhe assentava.

Mas quando tirei tudo da casa, sem tocar na varanda horrivelmente suja das pombas, ainda olhei a ver se a via. E pensei nela, na pomba da pata partida, entregue agora a uma luta mais dura. E por causa dela, um rombo no meu coração, esse que eu julgava de todo protegido dele e do que pensara ser o seu desamor de toda uma vida.
~CC~

sábado, setembro 11, 2010

Lugares a ir (I)

"Afinal, somos filhos dos Flagelados do Vento Leste. Todos os anos morremos com as dificuldades mas ressuscitamos com os novos desafios que enfrentamos".
imagem e frase de: http://www.mindelact.com/welcome.html


Temos lugares cá dentro anos e anos a amadurecer a vontade de ir. Não são a razão para viver, mas juntam-se microscopicamente uns aos outros e pesam, correm-nos na alma como luz que nos vem aos olhos de quando em quando. Direi dos meus, não para não os esquecer, mas na esperança de que este registo seja um modo de ganhar asas.
~CC~

quinta-feira, setembro 09, 2010

Fotossíntese


Gosto dele desde Nenhum Olhar, mesmo lhe reconhecendo obras maiores e outras menores, o que só lhe fica bem, torna-o o ser humano que é. E às vezes apanho-lhe as palavras por aí.

"Amar é um esforço intelectual. E quando se ama muito e só, sem espaços de sombra, transformamo-nos num sol. As plantas vivas dependem dessa estrela para chegarem à fotossíntese. Chamem-me hippy, chamem-me o que quiserem. Em qualquer dos casos, continuarei a saber de cor a letra do Something to believe in, Ramones, 1986.
José Luís Peixoto, revista Visão, 9 de Setembro.

~CC~

quarta-feira, setembro 08, 2010

Raízes

Lembro-me de outro Setembro, oito anos antes.

Esta cidade pela primeira vez, um quarto andar sem elevador, num prédio envelhecido de casas alugadas, zona de brasileiros, de gente de leste, de pessoas sem hipótese de comprar casa. Como eu, lutando para o salário dar para o essencial. Deles pouco sei, mas eu respirava liberdade mesmo com a carteira (quase) vazia. Não tinha medo de (quase) nada, muito menos da fama de cidade violenta que esta tinha. Eu, e uma miúda de sete anos pronta a ir para uma nova escola primária.

Mas nunca pensei realmente ficar, senti-me sempre em trânsito. E tinha nascido em Luanda, por isso era Angolana, estava apenas à espera de voltar. Ou de ir para qualquer outro lugar quente, longe desta Europa sufocante que nunca tinha querido como o meu destino. E depois fui, por acaso também em Setembro, foi o meu primeiro aniversário longe da família, mas pensava eu, na minha casa verdadeira. Nada mais errado, aquele país não era o meu. Não quereria lá viver, apesar de cortarem as bananas exactamente como eu sempre as corto, sem nunca ter conseguido explicar porquê. E da cor da terra, sangue quente como nenhum outro.

Voltei ainda mais sem país do que quando parti, mas menos em trânsito, como se qualquer coisa tivesse morrido com aquela viagem, creio que uma parte dos meus sonhos africanos. Afinal, marcada a ser coisa nenhuma.

E nunca mais pensei em ir onde quer que fosse, nem em ficar aqui.

Mas ontem deram-me em segredo, baixinho, um convite. E creio que a ninguém ele podera ter comovido como aconteceu comigo. Na verdade um simples convite para a festa de aniversário de um bar/restaurante, qualquer coisa para clientes, tudo banal. Mas à saída ela sorriu e disse: quero-vos cá às duas! (pois, a miúda cresceu). Creio que só as pessoas sem raízes se comovem quando as agarram à terra, grande parte das outras até sente as raízes como uma prisão.

Mas eu pensei: se eu me dissolver, afinal darão conta disso.
~CC~

terça-feira, setembro 07, 2010

Água

Tejo (Ribatejo), Março de 2009


Em geral destesto chuva, excepto quando chega depois de muitos e muitos dias de sol.

E em Cabo Verde aprendi a ver nos rostos das pessoas a tristeza da sua ausência, a saudade com que falavam de antigos rios e ribeiras. Não consigo conceber um país de rios secos, um lugar sem água doce.

Estas gotas foram uma bela variação às lágrimas de Verão, menos salgadas e sobretudo sem peso de mágoas. Nem pareciam chegar ao chão, antes voar livres de peso.

Agora pode vir sol, ainda tenho uns banhos de rio ou de mar para tomar.

~CC~

segunda-feira, setembro 06, 2010

Para sempre


2 Setembro 2010, Vilamoura, fotos de RC

Abraços para sempre

(ou o desejo incomensurável que assim seja)
e ainda
(se existem, nada de cortar os pulsos nem saltar de janelas...)
~CC~

Nota foto 1. Nasceu prematuro com menos de um quilo, esteve duas vezes no limite da vida e venceu. É ainda frágil, mas sobretudo muito bonito, doce e curioso. Encanta-me, temos um entendimento especial, feito da quimíca das coisas simples e boas.
Nota foto 2. A mulher que abraça assim este homem também é uma sobrevivente, entre outras coisas, das desilusões do amor. Teve três fihos a assistir ao seu casamento, e esta foi a primeira vez que o fez, não é apenas coragem, é mais do que isso, é a capacidade de regenerar todas as células mortas, de limpar todas as lágrimas, de rir das cicatrizes.

Setembro

Nasci neste mês dos dias a acabar cada vez mais cedo, neste mês de queimar a terra para deixar lá outras sementes. E sou terra, essa mesma terra que morre para renascer. E eu já morri, por isso só me resta renascer.

Ter nascido neste mês deve ser uma boa razão para chorar pela última vez as coisas perdidas. E quando pensamos nas últimas lágrimas sabemos que ainda são as penúltimas, esse aproximar do fim que não é ainda totalmente fim. Como quando o dia vai acabando e não é ainda nem de noite, nem é já dia.

Esse gosto pelas imagens e palavras disseste tu, e como eu gosto de tudo o que tu dizes, gostei sempre, como um calor que se manteve anos inteiro, como se tivesse congelado. E se o descongelar, encontro intacto o teu azul. E quero-o, mesmo sem nada saber de ti.

Renascer são também as palavras, as imagens, e como posso dizê-las agora com menos sangue, volto aqui. Por pudor, não gosto de blogues manchados de sangue.


Na verdade estou ainda para nascer este mês.
~CC~

sexta-feira, setembro 03, 2010

Uma palavra

Só uma razão para interromper o silêncio de que preciso para limpar o sangue da cansaço que o consome. Pela primeira vez senti necessidade de vir aqui, a este lugar semi público, necessidade de dizer uma palavra.

Só uma palavra para dizer quanto me cala fundo a condenação que mereceram hoje os arguidos da Casa Pia. E tenho a certeza não é nenhum resquício de justiça popular que me move, não é nenhum contentamento por ver quem tem poder ser condenado, não é nada de pessoal.

Acredito nas vitímas é apenas isso, e chega-me. Ninguém inventaria uma história destas, ainda por cima a troco de nada, ainda por cima para ver a vida exposta e se sujeitar a ser tido por mentiroso.

Acredito também na denúncia como acto profundo de coragem.
~CC~

(e agora, mais um tempo de silêncio)