sábado, dezembro 29, 2007

Bom ano bissexto

Desenho de ~AF~



Os mesmos ano a ano. Que o teu, o meu, os nossos, os vossos corpos não sejam invandidos pela doença, abruptamente tomados por algum acidente, sujeitos à violência que espreita cada um dos momentos em que estamos vivos. Os mesmos ano a ano. Que a ti, a mim, a nós, a vós, não escape o sustento trazido pelas mãos quando elas ainda estão capazes de produzir e com isso gerar as coisas que precisamos, as que temos de ter e as que amamos ter. Os mesmos ano a ano, que os laços do afecto se alimentem e cresçam ainda mais e mais de modo a que o meu, o teu, o nosso, os vossos possam permanecer quentes e irradiar calor. Os mesmos ano a ano, que o mundo não se entorne de vez numa noite escura.


E ainda outros absurdos, loucos, meus. Este ano queria ganhar uma estação de comboio abandonada. Apaixonei-me recentemente por duas. Para a primeira, plantada na terra, sem nada em volta, escolhia o amarelo ocre. Imagino-a como uma luz, um farol onde os viajantes parariam para o chá. Imagino-a o oásis no deserto onde os caminhantes parariam para beber água Almar. Imagino-a cheia de livros sagrados onde se poderiam estudar todas as religiões do mundo em Paz. É a noite serena onde nos abrigamos do sol. A segunda imagino-a azul alentejo, não obstante estar próxima de uma cidade e precisaria de ajuda para escolher as uvas mais tenras e saborosas que em pequenas doses aqueceriam o inverno que de quando em quando nos assola o coração. Imagino-a cheia de poetas vivos e mortos a dizer palavras de lume. Imagino-a pintada a jazz como se fosse em Nova Iorque mas luminosa como se invadida pelas manhãs de bruma e sol de Moçambique. Imagino que no seu quintal há mangas e goiabas que usamos para os sumos. É o sol em cada noite.


Não se pode ser feliz em 2008 quando os sonhos que temos são assim maiores que nós. Pode-se ser feliz em 2008 quando os sonhos que temos são maiores que nós. E as duas coisas que se opõem são ambas verdadeiras.


Vinha apenas desejar-vos bem e não inquientar-vos com sonhos que não são vossos. Desejo-vos bem e o bem é assim uma cor, pó e pasta de moldar sonhos. Deixem-se invadir e transportar por eles, são as asas que nos tiram os chumbo dos pés.


Bom ano bissexto.

~CC~



sexta-feira, dezembro 28, 2007

Estranho(s)

Somos estranhos na terra que nos disseram nossa, muito embora a terra não tenha dono e as bandeiras sejam bocados de pano. Mas a língua, esse dizer de nós, essa é um património que é pele e nos custa a largar. Allgarve é Lagos em pleno. Falam-nos em Inglês mal entramos e sorriem com alguma vergonha perante o engano: é que quase não há portugueses por aqui. O dia seguinte repete a mesma dose, a ausência de ementas em português, explicada pelo fecho em breve para férias. Diz-nos a rapariga, que emenda em simpatia o que lhe falta em saber: eu traduzo a ementa inglesa para que possam escolher. Não é essa a questão, mas como explicar-lhe.


Somos estranhos aqui, até no modo como cobrimos o corpo com roupa enquanto a maior parte a desnuda. Tenho saudades daquele modo enviesado, declinado e arrastado como falavam os algarvios em Lagos. Imagino a Sophia aqui e a dificuldade que teria em encontrar meninas do mar morenas e pequeninas. Não sei também se há ainda polvos disponíveis para entrar em hsitórias. Não tenho vontade de lhes dizer que se vão porque o sol onde se estendem a sorrir é tanto meu como deles, mas gostaria de sentir que pele que é a língua não se vende assim a troco das moedas do poder.


De repente compreendo melhor aquele sentimento dos Angolanos quando levantam o nariz para nos dizer que aquela é a terra deles e nós somos só estrangeiros, o que nos custa a admitir. A mim particularmente que nasci lá. É complicado gerir todos os nossos sentimentos em tempo de Globalização. E lembro-me daquela esplanada em Benguela onde se gritava pelo Sporting e pelo Benfica como se aqueles clubes fossem tão ou mais deles do que nossos. Minutos antes estrangeiros, agora irmãos.


Não obstante a tristeza pelo Allgarve que se afirma, sou tendencialmente fascinada pelas cidades multiculturais, desde que as culturas se equilibrem na geometria do poder e o encanto resida no encontro das matizes dos olhares, mas não sei se é isso o que aqui acontece, parece-me que não.
~CC~

quinta-feira, dezembro 27, 2007

No tempo dos balanços



No tempo dos balanços passam pelos dedos os futuros como desenhos de um tempo que virá. Futuros tão incertos como são cada vez mais os que se enrolam nestes passos do mundo e nos meus próprios passos. Não é vulgar tanta incerteza na idade que é a minha. Nem tantos projectos, tantos sonhos, tanto lume sempre a aparecer, ou são apenas os meus olhos que ao olhar para dentro se enviesam. São olhos tortos a ver-se num espelho de flores.


No tempo dos balanços que se cruzam connosco a cada virar de ano, o ódio ganha força e mata gente, sempre acreditei que assim era e que não há nada mais perigoso que a forma como ele se aloja dentro do sangue e toma cor. A cada tempo que a minha vida demorar mais, é nessa frente que a minha batalha se irá travar, contra esse fanatismo que nos assola em várias frentes. Darei todas as minhas mãos que são só duas a quem o queira fazer.


No tempo dos balanços acertar os sonhos é um exercício de equilíbrio entre amores vários, entre as possibilidades e a intensidade de certos desejos. Tenho três certezas: que estou viva diante deste manto azul que se abre diante de mim, que tenho vontades capazes de caber em doze passas, que as minhas mãos fragéis se alimentam da força dos que me amam.


E como não há três sem quatro, acrescente-se o gosto que ainda tenho por rir.


~CC~

terça-feira, dezembro 25, 2007

Luzia

Dias inteiros de pausa dos dias cheios. Dias cheios que trazem inteiros outro tempo. Cobre-nos o frio deste torpor de risos e choros de quem está por perto da pele e dentro do nosso sangue. É ainda o mesmo tempo que sempre partilhámos, as sobremesas que anos e anos foram sempre estas e no entanto somos já outros, outras são as companhias e as solidões. A alegria está sobretudo em nos termos, desce do coração aos presentes trocados e às birras e canções das crianças. Também eu tive direito a uma canção azul como ardósia para molhar os olhos. Tenho uma família grande e generosa que está sempre a mudar a cada ano e a cada vento. Este ano vieram mais quatro rapazes, um por nascimento e outros três por adopção amorosa, que é um óptimo modo de aumentar a família. Tudo o que me chega é é infinitamente maior do que os reis magos levaram ao menino Jesus, não obstante gostar de incenso. Estou muitas vezes verdadeiramente feliz.

A tristeza está dissimulada dentro de mim, quase a julgo inexistente e acorda ao esbarrar nas portas fechadas dos cafés das cidades no dia 25 de Dezembro e aparece fugazmente no cruzamento com os olhos transparentes das almas que deambulam sós nestas noites em que a solidão é quase uma tragédia, há rolos de escuridão que me atravessam por alguns minutos, um frio que chega de todos os lugares negros do mundo. Dizes que eu não sei ser só feliz e que a tristeza está sempre a espreitar dentro de mim e acho que tens razão. Mas é só um manto pequenino que cobre de quando em quando o meu olhar, por causa dela é que sei rir.


Eu sei que a luta que cada um trava pode ser às vezes esta capacidade de fazer a festa.

~CC~

sexta-feira, dezembro 21, 2007

Cortejos natalícios

Alpiarça, Dezembro de 2007

Um carnaval de pais natal interrompeu barulhento a tranquilidade da vila.
Os velhos vieram mostrar sorrisos e bater-lhes palmas
Às vezes não sabemos se as coisas são más ou boas ou se uma coisa e a outra estão tão juntas que não as conseguimos separar.
~CC~

quinta-feira, dezembro 20, 2007

O templo

Em Telheiras há um templo Hindu enorme e inacabado que me foi dado a descobrir numa noite de muita chuva.

Dão-nos uma colher para a colheita das cores que nos espalham no prato, mas é com as mãos que a comida chega à nossa boca misturada com o nosso próprio sabor. Os olhos meigos e doces que a trazem, sempre a perguntar se queremos mais e mais, não têm preço.

Somos acolhidos como se o vento de inverno por onde chegámos lhes trouxesse uma luz nova para combinar com as muitas que por ali se abrigam no colo da deusa. Mas somos nós que levamos a ginguba e o cajú para que no dia 24 de Dezembro combinar os sabores das ervas e do picante com as filhozes. As pessoas que vivem em mundos diferentes deviam encontrar-se mais.

Gostava um dia de experimentar vestir um Sari.
~CC~

terça-feira, dezembro 18, 2007

Hoje convido

Fotografia de ~AF~

ERA UMA VEZ UM SONHO

Eu sempre tive muitos sonhos. Sonhos grandes, sonhos pequenos e até sonhos médios…
Mas, havia um sonho que era o maior de todos os sonhos. Era aquele sonho que eu desejava quando trincava as velas dos meus aniversários e quando comia as passas no ano novo (muito poucas vezes, pois não gosto de passas)...

Esse sonho era ter um cão, mas não era um cão qualquer era um cão, como o que o meu pai tinha tido, em criança. Apesar de nunca o ter visto o meu pai contava-me imensas histórias dele e eu imaginava-o dourado, com o pelo comprido e macio, brincalhão e reguila…


Mas, houve um Natal. Um Natal que eu nunca esqueci. Um natal que penso ter sido um dos melhores natais de sempre. Esse Natal foi passado numa quinta, numa quinta no meio do campo. Tinha casinhas de pedra acolhedoras e muito espaço ao ar livre, mas não foi isso que a tornou especial. O que a tornava especial eram dois cães, dois cães iguais aos do meu sonho, dois cães lindos. Então eu decidi perguntar ao dono que raça eram.
Ele simplesmente respondeu:
- São GOLDENS RETRIEVER!
É claro GOLDEN RETRIEVER era a raça do cão do meu sonho. Sim, GOLDEN RETRIEVER soava bem em qual queres lábios.
A partir dessa altura, o meu sonho deixou de ser ter um cão, para passar a ser ter um GOLDEN RETRIEVER.


Era uma vez um dia, um dia daqueles que queremos que passe rápido, pois estava meio adoentada e ainda por cima tinha de ir vacinar-me.
Depois da vacina, quando já só me apetecia ir para casa e estender-me no sofá, o meu pai avisa-me que temos de ir a Lisboa.
-Que seca! – pensei eu.
Mas lá fui. Quando cheguei lá, o meu tio deu-me um boneco pequenino de um GOLDEN RETRIEVER. O meu pai disse logo que eu queria era um a sério e eu acenei com a cabeça. O meu tio respondeu que esse era muito caro, aí desanimei, pensei até que o melhor era deixar aquele sonho. Mas alguns segundos depois chegou uma carinha com um símbolo de animais estampado. Chamaram-me dizendo que aquele senhor (que obviamente era o condutor) tinha uma coisa para mim. Quando cheguei ao pé dele, ele abriu a bagageira e de lá sei o meu sonho. Nesse momento acho que paralisei, senti o que nunca antes tinha sentido, ainda hoje não consigo descrever os meus sentimentos. Só consegui responder à pergunta:
- Como é que ele se vai chamar?
Eu respondi apenas POLY, ainda sem saber se se escrevia com dois “Ls” ou apenas um “I”.

~AF~

Solidão partilhada

No início dos caminhos virtuais as letras eram partilhadas, depois este e o outro caminho e mais outro ou se quiserem as razões podem ser tantas ou nenhuma em especial, encontrei-me aqui frente a uma ardósia preta pintada de azul. Sinto-me quase sempre bem no aconhego deste silêncio, imagino que o espelho é o céu feito noite de estrelas onde mergulho para me ver.

Mas às vezes sinto a falta de riscos na minha ardósia, riscos de outros, com outras cores e outros sabores. Mas por ora ainda não o posso fazer de modo permanente e regular, ainda preciso de mais noite, de mais silêncio. Por isso, ardósia azul de riscos outros, um convite para trazeres as tuas palavras até aqui. Sem compromisso e sem regularidade, um tapete vermelho estendido para um passeio até mim. Hoje convido.

Hoje convido uma menina de onze anos sem lugar virtual, mas a conquistar o seu lugar no mundo.
~CC~

segunda-feira, dezembro 17, 2007

A visita

Levo os meus olhos a passear até lá e sei que me vão doer. As laranjas deitadas sobre a terra dizem tudo sobre a impossibilidade das mãos as poderem apanhar. As pernas já não obedecem quando as querem levar a dançar, não obstante certa luz que lhes aparece nos olhos, a que chamam a luz antiga, a que se transporta através do tempo.

As muitas roupas umas sobre as outras impedem que se gaste em luz e em gaz e eles nem percebem os pedidos insistentes para que os aquecedores se liguem, mesmo quando a noite já chegou e a temperatura ronda os zero graus. Acham que as cozinhas estão sempre quentes porque os cozinhados são demorados e os jantares se devem arrastar mais e mais para que a casa não fique outra vez vazia. Acham que o não há melhor vinho que aquele que produz a adega da terra, nem melhores enchidos que os feitos em casa pela prima, nem melhor fruta que a que vem do quintal.

A casa é mais fria do que qualquer rua e não são só as paredes que a tornam assim, é também o modo como o calor se guarda com pudor, as palavras de afecto tardam a sair, é o modo como silêncio cai, o modo como os laços de sangue se parecem resumir à partilha do galo e ao gosto pelas couves com feijão.

Mas a tristeza mora apenas no olhar de quem olha, ao longe aquele aceno até outro Natal, tem lá dentro a alegria da visita, o agradecimento mudo de quem ficou menos só. Não se pode deixar de os visitar, não se pode.
~CC~

sexta-feira, dezembro 14, 2007

Na memória do olhar


Ruas de Pemba, Moçambique, Novembro de 2007.

Vamos. Voltamos. Fazemos algumas coisas. Mas tudo o que é mais importante é o que guardamos dentro de nós, o que nunca esqueceremos. As crianças, as muitas, as muitas crianças, os olhares delas no cruzamento com os nossos. Não há lugar no mundo onde as crianças sejam tão tristes e ao mesmo tempo as mais felizes, as mais felizes que já vi.
~CC~


Nota: em Moçambique o pedido de autorização para fotografar pessoas é obrigatório, o que me parece bem, algumas crianças gostam e outras escondem-se e devemos respeitar. Algumas pedem ou esperam receber dinheiro por uma fotografia e outras não, querem simplesmente que partilhemos com elas o modo como ficaram na fotografia. Com as mulheres, numa zona muçulmana, a fotografia é ainda mais delicada, é preciso aprender a conter o desejo de fotografar tudo, também aprendi isso.

quinta-feira, dezembro 13, 2007

As duas lágrimas

Tenho uma lágrima feliz a descer vagorosa pelo meu rosto branco da cor do Inverno. Dentro dela está um menino. O menino agora, no meio das nossas meninas, tantas e já tão crescidas.

O menino deixou a sua caixa de vidro aquecida e veio para o mundo. Tomou o seu primeiro banho em água tépida, enconstou pela primeira vez a sua boca ao seio da mãe, vestiu a sua primeira roupa. O menino deixou de estar nu na sua caixa de vidro aquecida, tantos e tantos dias dormindo, primeiro de olhos fechados e depois abrindo-os aos poucos, chorando o choro mais pequenino que alguma vez ouvi. Diz-nos agora com os olhos que vai enfrentar esta luz simultaneamente tão dura e tão doce que adorna a terra. Cresce meu amor, cresce.


Tenho uma lágrima triste no meu rosto preto, cor da terra que ainda amo, mesmo agora que a vi sem a luz dourada da infância. Chega pelos rostos cruzados que perderam o seu calor e agora me tocam com os seus dedos de morte. Fecho os olhos para que a lágrima desça mais rapidamente, para que a possa engolir e com ela todos os fantasmas. E quando ela me chega à boca, os olhos fechados ajudam-me a pensar que afinal é o mar. É o mar.

~CC~

quarta-feira, dezembro 12, 2007

Gostar

Gosto quando as gaivotas se contam como se a sua viagem fosse pelo universo.

Gosto quando o mundo, perfeito como ele é, se embrulha em luzes de Natal.

Gosto quando as mulheres levantam a voz e correm com eles.

Gosto quando alguém tem dúvidas e por causa delas faz apelos.

~CC~

Buraco negro, bandeira branca

Em Dezembro com tanto frio e tanta luz o mundo alucina. Os carros explodem em cidades de nome fascinante, junto de homens e mulheres que acreditam que espalhar bandeiras brancas pode ser um caminho, matando sem escolha, sem sentido. As notícias das mortes são sem gritos, sem lágrimas, factuais como deve ser o mandato do manual do jornalismo.

Em Dezembro há famílias que enlouquecem reacendendo ódios antigos embrulhados como presente e depositando os seus velhos no hospital para que a festa se possa fazer sem o gemido dos acamados. Há crianças a entrar nos hospitais de Pediatria por maus tratos este mês, este mês de Dezembro, como em todos os outros. Dessas crianças não há familiar se possa aproximar sem prévia autorização, dissolvidos os laços de sangue, elas são do mundo, mas de que mundo?!
Em Dezembro o sol não nos aquece o suficiente. A não ser quando oiço isto:
- Ela que venha já, ela que venha sem roupa, ela que venha de qualquer modo, ela que cruze os ocenados, ela que fuja de quem a não quer, eu estou aqui à espera dela, sou a madrinha e quero estar com ela este Natal.

A mulher polícia enorme e com voz firme e rouca aquece-me Dezembro com a sua vontade selvagem de cruzamento dos oceanos. Venha sem nada querida afilhada, traga sol.
~CC~

terça-feira, dezembro 11, 2007

Café (III)

O aroma quente dos bagos vermelhos vivia comigo deste sempre. Odiava, contudo, o branco que era preciso juntar-lhe. Mais tarde soube quais eram os nomes de baptismo da mistura que me nauseava: meia de leite, galão e mesmo garoto. O gosto pelo cheiro do chá e do café em estado puro contrastava com o que emanava de qualquer um deles mal se juntava uma pinga de leite. A rejeição na infância levava-me a beber, quando obrigada, de olhos fechados, custava menos se não visse.

Mais tarde acreditei que a mistura era um bom modo de matar a fome, em conjunto com as maçãs vermelhas ou verdes. Bebia galões de leite gordo, acabado de vir da vacaria do fundo daquele quintal em que brincavámos às escolas, no tempo em que o futuro do país e o nosso ia ser a agricultura. Era com R que os bebia, ele adorava, eu torturava-me.

Tudo isto foi no tempo anterior à espuma de leite. Foi no tempo anterior aos desenhos feitos a chocolate no branco imaculado a cobrir levemente o aroma quente. Tudo isto foi antes do Magnólia.

Agora vou a Lisboa por um capuccino do Magnólia. Venho de lá com a espuma nos lábios, o chocolate na pele e o quente na alma, feliz por mais uma coisa tão pequena me fazer feliz.
~CC~

Guarda-rios e estuários (V)

A tristeza começou nesse dia em que os homens Almar deixaram de ser Guarda-rios e começaram a morrer de uma doença sem nome. Ficámos sem terra embora a nossa terra fosse um lugar junto da água. Mas sobraram os panos, os panos das mulheres Almar. E com eles elas inventaram outra vez a vida. Levaram-nos para as feiras como sempre tinham feito mas agora com mais flores, mais peixes, mais luas...e eles eram cortinados, tapetes, colchas e vendiam-se como únicos que eram, cada um diferente do outro.


E nós crianças, nós começamos a usar os tecidos para bonecos grandes de espantar a passarada. Nós as crianças Almar fazíamos nascer espantalhos. Os donos das quintas chamavam-nos porque por uns tostões, uma fruta, um caldo, um naco de pão com azeitonas, nós pintavámos a paisagem de cor e de poesia. Cresci criança Almar, pobre como pensava que só nós éramos, mas rendida à mudança da cor da terra em cada estação.

E ainda sonho com espantalhos, agora com espantalhos que dançam.
~CC~

segunda-feira, dezembro 10, 2007

1948


O silêncio é grande, penso que só eu acordei a lembrar-me, talvez pelo compromisso que tenho com a escola das quartas. Ou talvez hoje precise de lavar os olhos com utopia em vez de água.


Secção I- Declaração dos Direitos da Virgínia- 12 de Junho de 1776
"Todos os homens são por natureza igualmente livres e independentes e têm certos direitos inatos de que, quando entram no estado da sociedade não podem, por nenhuma forma, privar ou despojar a sua posterioridade, nomeadamente ao gozo da vida e da liberdade(...)."

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão- 26 de Agosto de 1789
Artigo 1º- "Os homens nascem e são livres e iguais em direitos (...)"

Declaração Universal dos Direitos do Homem- 10 de Dezembro de 1948
Artigo 1º- "Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos."

(Vamos fazer um jogo, deixem-se estar em pé aqui junto de mim. Eu vou dar-vos opções e consoante a que escolherem, digo-vos se vos devem dirigir para a direita ou para a esquerda. Preferem mar ou campo, Inverno ou Verão, carne ou peixe....são coisas simples, de todos os dias. Escolhem facilmente, às vezes querem ficar no meio, é a indecisão, nem sempre a opção é clara...mas podem escolher, digo muitas vezes sublinhado, a carregado e em maiscúlas, VOCÊS PODEM ESCOLHER).

Fim de tarde na escola das quartas, hoje que é Segunda. Os cartazes enchem a sala de convívio, as bancas das ONG´s, os slides a pensar, a música, os pedaços dos filmes, uma actriz famosa e muito bonita que parece pouco credível nas cenas de violência doméstica, mas se calhar não passa de preconceito meu. Pergunto-me se sentem, se sabem. Pergunto-me. Oiço as palavras escritas do JMP na interrogação aos seus próprios filhos: "os direitos humanos são pouco mais que boas intenções para uma vida melhor, uma que há-de vir um dia" (JMP, revista Noesis, Out/Dez. 2000), é esta a resposta dos jovens. Os direitos humanos, como um quadro que se compra e fica bem em qualquer parede. E outra vez a sua voz tranquila com a qual me cruzei um dia " a terceira coisa fundamental que o Manel e a Rita não sabem sobre os direitos humanos é que, ao contrário do que lhes temos ensinado, eles são um impulso desordeiro" (JMP, revista Noesis, Out/Dez. 2000).

Eles são...como a a poesia, utopia sempre a correr no sangue.

~CC~

domingo, dezembro 09, 2007

As coisas pequenas

Os lábios não podem estar secos, qualquer que seja a estação. Os lábios podem ter baton de cor ou não, cor só em caso muito relevante. Um chocolate, um vermelho escuro, um rosa brilhante quando se quer fugir à rotina que cada um é para si próprio. Seja a festa e a dança a cortar o tempo em fantasia, precisamos, preciso.


Mas todos os dias há um brilho mínimo que os lábios precisam para que o sorriso pareça a festa dos olhos. Há coisas indispensáveis para que os beijos possam ter o sabor simples que têm as frutas de todos os dias. Todos os beijos, mesmo os que depositamos nas faces dos outros, não podem ser secos. Mas apesar da variedade dos sabores: morango, ananáz, cereja, kiwi...o sabor tem que ser o dos lábios, o dos próprios lábios e por isso o baton tem ser incolor, inodoro e sem paladar.

Por isso não posso esquecer o dia em que te pedi que me comprasses um baton no supermercado, tarefa difícil para um homem, sem dúvida. Senti a insegurança que tal pedido te causava e ajudei: um qualquer, escolhe um qualquer da prateleira.
Tu trouxeste um e disseste: trouxe este, repara bem, tem o teu nome escrito, assim se te esqueceres dele, toda a gente vai saber que é teu.

E era verdade, tinha mesmo o meu nome escrito.
~CC~

sexta-feira, dezembro 07, 2007

Direitos Humanos

Angola, Setembro 2007
Tema da aula: Direitos Humanos.
~CC~

Café (II)

Era o vento a mudar e eu sem saber onde poisar.

A princípio era só um lugar onde te trazia um ou outro fim de semana, na minha cabeça já o desejo de procurar aqui modo de ficar. Acho que só os belgas lhe podiam ter dado um nome que entre nós era piroso: Beijinho. Acho que por aí começou o namoro, pelo beijo pequenino que se dá às crianças, palavra quase primeira aprendida na expressão desse amor maior.

Um café quando é nosso é a extensão da nossa casa, torna-se pouco a pouco assim. Depois há algumas coisas que o tornam único. Aqui era o gelado de baunilha, os crepes, as tarteletes de morangos, o bolo de chocolate. Foi por aqui a tua iniciação e posterior rendição. Deixa ver mais. As fotografias enormes nas paredes, fotografias de paisagem e de crianças, na maior parte das vezes uma e outra coisa tinham mar. Belgas rendidos aos encantos das nossas ondas, trazendo com eles o chocolate. Não gostava de chocolate por aí além e não sabia o quanto podia gostar de gelado caseiro de baunilha(este Cgs, foi antes do teu). O português mal acentuado pode ser muito carinhoso e era o caso, acolhedor sem excesso. Depois de duas ou três vezes disse-te: já pensaste como era bom morar perto deste café? Os olhos brilharam um pouquinho, o chocolate a escapar-se numas migalhinhas pela mesa. Agradeço ao Beijinho a ajuda que me deu a trazer para outra cidade uma criança de apenas seis anos, a fazê-la mudar de casa quase sem dor. Esse foi o começo de quase um ano vivido entre a casa e o café, numa cumplicidade cada vez maior e com mais amigos. De lá trouxemos bolos de anos, barriga cheia, muito conforto.

Ainda temos saudades. Em casa guardo a ementa, combinámos (sem cumprir) fazer um jantar anual à Beijinho no dia da despedida emocionada, no dia do brinde ao futuro do jovem (e belo) rapaz que era o autor dos doces da casa. Deixou o gelado de baunilha e tornou-se fotógrafo. E até hoje a porta está fechada, o canto desolado, as montras escuras.

Não haverá um beijo igual, um beijinho tão doce quanto este.
~CC~

quinta-feira, dezembro 06, 2007

Café (I)

A voar, Novembro de 2007


Talvez por causa dos genes, afinal o meu pai, para além de ter vivido em quatro continentes, viveu metade da vida nos cafés. Um café dentro do meu presente é fundamental. Tive um ou mais por cada tempo, por cada terra, por cada trabalho, por cada grupo de amigos, tive um e agora tenho outro com a minha filha, outro(s) com cada amor.


Cafés da infância em Luanda são sem nome na minha memória, são horas que me pareciam uma eternidade na conversa sempre longa e com muitos cigarros do meu pai e amigos. A primeira das minhas paixões genuínas foi talvez o café "Vaquinha" na baixa Lisboeta, uma leitaria antiga que tem outro nome para além deste que guardei no meu coração. É capa de um vinil ou CD do Vitorino. Alimentei lá a minha adolescência a chá de limão e bolos de cenoura comprados no Celeiro, nem sei dizer se era macrobiótica ou vegetariana, acho que era simplesmente adolescente e estava fascinada pelos meus amigos e por Lisboa.


Nos cafés aprendi as coisas mais importantes de todas e ainda aprendo. Ontem, no café do trabalho (como é que há trabalhos sem cafés dentro ou por perto?), um colega de que quase só eu gosto, perguntava-me pelas diferenças entre Angola e Moçambique. São muitas, disse eu, antevendo uma conversa longa que eu não podia ter porque a aula estava prestes a começar. E ele respondeu: sabes, tive numa conferência...Acenei com a cabeça, não percebendo a relação. Ele continuou: lá percebi o que era a pobreza e a desigualdade e que uma e a outra não são a mesma coisa. Continuei a acenar com a cabeça. E ele deu a resposta à pergunta que me tinha feito: Angola é mais desigual, Moçambique é mais pobre. E com esta síntese arrumou as milhares de palavras que me ocorriam sobre a pergunta que me tinha feito. Gostei do café, gostei mais dele por me facilitar tanto a vida com as suas sínteses.


~CC~


Uma casa nova

A ria formosa já era para mim uma casa, mas agora encontrei esta. Nela os astros entram em rotação e a poesia parece acontecer com a mesma frequência com que o sol se põe. Lê este livro, ouve esta música, espreita este lugar, são assim os amigos, fazem-nos gostar mais do mundo e isso salva-nos quando desesperamos nele.
~CC~

quarta-feira, dezembro 05, 2007

A zanga

A zanga é em mim uma dor interior, contida como os mares que vivem entalados entre a terra. Mas hoje o mar era vermelho e queria romper como se fosse um oceano e nas suas ondas levasse a tempestade. Não sei se assim é melhor, dizem que o coração se torna sereno e aguenta mais longamente o estado do mundo se nos soubermos zangar. Não sei se ainda vou a tempo de começar.

Como tinha muita gente em casa sempre fui mais de chorar baixinho, vaguear pelas ruas, fazer desenhos com letras. São assim as irmãs do meio, vão-se embora quando o negro chega em vez de cerrarem os dentes e fazerem cara feia. Sei como é ir embora, mas agora às vezes não me apetece, já deixei para trás demasiadas terras.
~CC~

terça-feira, dezembro 04, 2007

O tempo

Ilha do Ibo, Moçambique, Novembro 2007

O tempo, essa a diferença maior. Agora corro dentro dele e ele corre contra mim.


Nesses dias no Índico nada era assim. Sentava-me à espera do crepúsculo assim que o sol evidenciava o seu primeiro declínio. Ficava parada ante tanta beleza sem me conseguir mexer nem falar, absolutamente comovida. E só quando escurecia completamente o corpo se mexia, tão lentamente quanto húmido, porque ao anoitecer o calor consegue ser ainda maior. A roupa a colar-se a mim não me incomodava, talvez porque ela é sempre tão pouca, em comparação com a de Dezembro neste lado do Equador.

O jantar demorava quase sempre duas horas, nenhum de nós tinha pressa para nada, ninguém corria, depois de nós só havia a noite, o mar, o sono a chegar. Começava inevitavelmente com uma laurentina clara doseada para três. E depois outra e outra. Esta forma de beber nunca a tinha tido, mas era a nossa forma da cerveja não aquecer, estava sempre gelada na pouca quantidade que ocupava em cada copo. O tempo, tanto que por vezes não se sabia o que fazer dele. O tempo de espera pela comida é sempre muito, insuportável para o padrão ocidental. Para mim não, nunca me zanguei por causa dele, mudei a agulha na mudança dos oceanos.

E agora deste lado do Equador já ele me inquieta e vejo como inquieta tanta gente que está por perto. Hoje, metade das perguntas que me fizeram tinha tempo lá dentro.

Não sei como vou viver sempre deste lado do Equador. Sem Laurentinas claras e escuras em partição igual pelos comensais, sem tempo para ver o crepúsculo, sem mamoeiros a encher-me o horizonte.
~CC~

segunda-feira, dezembro 03, 2007

Os números

Acontece de quando em quando uma estatística perturbar os dias. Desta vez são números de homens e mulheres sem ter para onde ir. Desemprego é palavra de vazio, de doença, de abandono. Mesmo quando por trás dela está alguém que parece não se importar com esse vazio, é ainda assim triste. E um fantasma, é sempre um fantasma. Nunca foram tão altos, também nunca foi tão fácil despedir. E já importa pouco, muito pouco. Somos todos tão indiferentes, só acordamos quando uma casa se incendeia. Gostava que estes números tivessem rosto, gostava de saber quem são sem que com isso nos tivessem a vender uma ideologia. Queria uma narrativa.

Uma eleição também, desta vez duas, cada qual mais triste. A primeira servida fria mas em prato de porcelana. A segunda vem servida quente, mas tem sabor requentado. São homens fortes, de quem o povo parece gostar. A força é sempre uma bela imagem, mesmo quando por trás dela há mais vazio que conteúdo. Mas mesmo sem nada de consistente que se possa apresentar como uma linha política coerente e inovadora, são homens fortes capazes de enfrentar o país mais poderoso do mundo, talvez isso tenha significado para quem vota neles. Escoa-se para eles o heroísmo, o riso contra uma certa humilhação que os mais poderosos quiseram impor ao mundo. Compreendo, sem aprovar. Gostava de saber quem são estes homens de rosto sem riso, queria saber se choram.

O que o mundo me dá a ver não me chega, queria compreender melhor. Queria a tradução dos números em letras corridas (des)alinhadas.
~CC~

Guarda Rios e Estuários (IV)


Um dia a tempestade veio e tomou todo o céu. Lembro-me bem como tudo ficou escuro num instante.

O chefe da comarca chamou o meu pai e depois disso nunca mais o vi. O meu pai não voltou mais, não teve coragem de nos vir dizer que os Guarda-rios tinham que levantar as tendas e partir para sempre, não eram mais necessários, nem aqui, nem em lado nenhum.

Os rios, dizia o chefe, correm sozinhos e não precisam que ninguém os guarde.

Depois disso uma doença foi tomando um a um os nossos homens. Só se salvaram os que eram meninos. E nós, nós as mulheres, embora nessa altura o meu tamanho e o meu coração fossem os de uma menina.
~CC~

sábado, dezembro 01, 2007

Dezembro primeiro

Pelo mês mais belo do ano caminhamos pelas estradas do Alentejo procurando a Igrejinha porque é lá que a lareira se acende com o coração aberto e o ensopado de borrego na mesa.


Pelo mês mais triste do ano vamos pelo Alentejo que é o único lugar onde eles ainda não chegaram em número assustador: centros comerciais onde as pessoas se afogam umas às outras em coisas de que não precisam.


Pelo mês mais frio do ano caminho com o casaco roxo semelhante ao xaile e a cor que é da moda é ainda e sempre a minha primeira cor, aquela que vesti na adolescência até à exaustão, quando ela era absolutamente fora de moda.


Pelo mês mais quente do ano levo as meninas ao campo, na esperança que lavem o seu olhar com o verde dos sobreiros e esqueçam os brinquedos electrónicos que carregam como uma doença.


Na Igrejinha o tempo corre devagar e o vinho e os doces ficam sempre sobre a mesa pela tarde dentro enquanto se canta.


Este é o Dezembro segundo, ano dois na Igrejinha. Somos menos este ano, mas ainda assim tragos os abraços envoltos no cheiro do fumo.


E penso que para o ano gostaria de voltar ao Alentejo, porém com uma pequena diferença capaz de anular a tristeza que hoje se misturou com a alegria. Para o ano o meu bloco de notas poderia ir cheio, hoje ele foi vazio. E nem o coração cheio de África foi capaz de me compensar desse branco.
~CC~


Nota: dia 1 de Dezembro, na Igrejinha, juntamos a "escola de Lisboa", um grupo de doutorandos que sonham daqui a um tempo partilhar na academia as suas notas de campo sobre objectos de estudo mais ou menos diversos, sob o chapéu pomposo de "Conhecimento, decisão e acção pública".