sexta-feira, outubro 29, 2010

O melhor remédio

Ela tinha uma saia de flores brilhantes exactamente igual a uma que tenho e de que não gosto particularmente, por isso olhei. A mim a saia faz-me mais gorda e por isso não a visto, mas ela era realmente mais gorda e a saia ficava-lhe bem. Era alta, redonda e risonha, entre os quarenta e os cinquenta. É raro alguém sorrir assim manhã tão cedo, num café meio tristonho e sem graça. E todos a cumprimentavam com afabilidade.

A mulher dos envelopes aproximou-se dela delicadamente para tirar lá de dentro os papéis e mostrar-lhe. E ela sorriu mais: dê-lhe mimos! A outra nada dizia, espantada com a papelada a mostrar o tamanho da infeccção. E então ela disse mais perto, mais baixo: sexo, faça sexo com ele, vai ver que ajuda. Não, psicóloga não era, essas não recomedam assim abertamente o que os doentes precisam, é preciso que eles cheguem lá uma quantas sessões depois, e por si próprios. A mulher dos envelopes não pareceu nada satisfeita com ao remédio recomendado, impossível comprar em qualquer farmácia e sem custos.~

E chegou outra mais nova a falar da vacina contra a gripe, e se devia tomá-la. E ela riu-se e recomendou-lhe laranjas, sol, e muitos espinafres. Desta vez o sexo ficou de fora, ainda que a mistura de ingredientes recomendada lhe fosse muito favorável.

Tudo se configurava para um retrato de médica de clínica geral, esta saída de uma escola que não conheço, pois não mandou ninguém à farmácia que ficava mesmo ao lado.

E pensar que 20% anda a antidepressivos.
~CC~

Mariposa

(com mariposas nos olhos ao ler)

amo-te
te quiero
je t'aime
i love you
te amoich lieberdich
cretcheu di meu
ahabib

(e em Quimbudo por saber dizer, algures na memória da minha infância deve existir um par abraçado).

~CC~

quarta-feira, outubro 27, 2010

Formigas, quem sabe cigarras escondidas

Duas mulheres passeando entre as hortaliças e as frutas mal a manhã acorda são capazes de passar da crise do país às maleitas do seu corpo e aos aparelhos dos dentes para os filhos. Sao duas formigas amealhando o pão, ciosas do seu mundo, capazes de o defender contra as tempestades, todas elas e até a crise, esse bicho escuro que já tratam por tu. Discutem como poupar como se estivessem nas Tardes da Júlia (é assim que isto existe, ainda existe?)

Olho-as a pensar como amam elas, olho os seus corpos a pensar nas carícias que eles podem receber e não consigo imaginar. Talvez afinal se transfigurem e cantem como cigarras. Talvez não amem, fechem só os olhos no escuro da noite, como se estivessem afinal na mesma função que cumprem tão escrupulosamente manhã cedo, no supermercado.

Formigas, quem sabe cigarras escondidas.
~CC~

segunda-feira, outubro 25, 2010

Em mudança

As delas amarelas e laranjas, os meus brancos.
Da cor da seiva que nos corre dentro, e das suas mudanças, nada se vê.
~CC~

domingo, outubro 24, 2010

Domingo mais

A menina procura na praia os caranguejos já mortos, esses que não a assustam. O rapaz pequenino empurra o seu grande camião e enche-o de areia muito devagar, desistirá a meio porque logo se levanta o avião, o barco arranca com barulho, e a sua atenção flutua pelo mundo. Os jornais ficam por ler sobre a mesa dos adultos, porque o sol é mais forte e teima em nos abençoar com a sua luz, soltando palavras triviais. Ser feliz é por momentos este não dar conta de nada, só da carícia de uma mão, ora grande, ora pequenina, agarrada à nossa.

Tudo parece estar às vezes no lugar certo, como se a tranquilidade fosse chegar assim suave para me trazer descanso de todas, de tantas lutas.
~CC~

sexta-feira, outubro 22, 2010

Assombro

Assombram-nos o Inverno, já não basta saber que os dias serão mais pequenos e a pele mal respirará abafada nos casacos, ainda nos turvam os olhos com as suas imagens vazias, mas gravatas ainda brilhantes. Há no fundo dos seus olhos o que as palavras não conseguem traduzir: eles nada sabem do futuro. Esgotaram o planeamento dos planos. Fingem que acreditam, mas já não acreditam verdadeiramente no rumo, sabem do desgoverno.

Assombram-nos o Inverno e já não é o salário a diminuir, o fantasma do desemprego que em algumas casas já se tornou de carne e osso, é já o que temos para deixar aos filhos, um mundo a desfazer-se.

Para alguns haverá Deus, para outros Revolução, para mim apenas o aconchego das mãos, alguma imaginação.

~CC~

quarta-feira, outubro 20, 2010

Amargo(s)


Discutia-se, entre professores, os prémios que se atribuem aos alunos como forma de os distinguir por esta ou aquela coisa boa. E um deles diz: temos é que lhes dizer que o prémio não é um livro! Gargalhada geral.

E depois cada sorriso a desfazer-se amargo.
~CC~

terça-feira, outubro 19, 2010

Fragmentos

Os teus dedos fazem lume brando e eu posso aquecer-me. As noites sem frio são mais pequenas.

O olhar dele é o derradeiro lugar onde a minha tristeza é pequena se comparada com a dele. Não consigo evitar desorientar-me com a vida a fechar-se.

O medo diminui devagarinho mas ainda enche os meus sonos. Amachuco o medo enchendo-o com a esperança dos olhos amados. Encho o meu coração de viagens a dois, a três, a muitos.

O Outono tem este sol manso, não é o mesmo da festa do mar, mas lugar de enrolar, se pudesse fazia como os gatos, ia pelos muros miando a vida. Fugia de quando em quando a todas as minhas obrigações, já era tempo de serem menos, de me encherem menos o tempo. Devia poder dormir ao sol como as gatas.

~CC~

domingo, outubro 17, 2010

Ouro azul

Cabo Verde, Ilha de S. Nicolau. 2007



A sem se ver avisou, o dia certo já passou, mas nunca é tarde para lembrar.

Domingo luz e sombra

A sombra pode ser qualquer coisa que nos aparece no momento em que nos sentimos felizes. Uma mancha que começa por ser pequenina e quer aumentar. E nós lutamos com ela. A vida é, para alguns, um lugar de muita luta.

O receio é baixar os braços, desistir. As insónias insinuam-se.

É Outono, já há fumo de castanhas pela rua, um manto de friozinho que ainda não corta a pele, cheiro a mosto que vem do campo. E cá dentro a força dos teus abraços. Uma luz nas letras com que bordo o trabalho. Os sorrisos da miúda tão vivos. Não pode a sombra apanhar-me neste momento. Afasto-a. Mas ela não parece ser só sombra, quer ganhar contornos, ser matéria, insinuar-me no meu corpo. A sombra não pretende ser só melancolia, tristeza, parece querer ser real, avançar pelo lado mais frágil de mim.

Não pode, não pode.
~CC~

sexta-feira, outubro 15, 2010

quinta-feira, outubro 14, 2010

Observação dos dias (III)

Pagava o café a umas ex.alunas que tinham vindo a convite meu. E a empregada do bar comentou: aproveitem meninas que é a professora que paga, aproveitem quanto antes porque vai ficar sem mais um dinheirinho no final do mês. E acha bem? Perguntei-lhe eu. Claro que acho, é muito bem feito. A empresa que gere o bar é obviamente privada, há muito que tudo se entregou ao mercado.

E ela (de quem gosto) continuou num chorilho de ofensas aos funcionários públicos. Conclui que afinal o governo escolheu bem o alvo, são vítimas desde sempre pouco amadas, presas fáceis de uma inveja sem qualquer sentido. Talvez alguns possam merecer este desdém, mas estou certa que há muito quem não o mereça.
~CC~

quarta-feira, outubro 13, 2010

700.13

Auditório do Museu do NEO-REALISMO. Vila Franca de Xira

MÚSICA DE INTERVENÇÃO E NEO-REALISMO
Lançamento do CD 13, de Afonso Dias com Afonso Dias, Manuel Freire, Francisco Fanhais, Tino Flores e Pedro Lobo Antunes
Sábado, 16 de Outubro de 2010 Hora: 16h00


"que se chama 13 porque sim - e também porque tem nele 13 canções - porque 13 é número de magias negras e brancas , associadas à sorte e ao azar - porque o azar é como a água benta: cada qual toma a que quer, embora haja acidentes e quanto a isso paciência, pá - porque a sorte é como a vida: melhora se a gente puxa por ela - e porque as cantigas continuam a ser precisas para mostrar as nossas zangas, partilhar os nossos afectos, esbanjar a nossa solidariedade e para denunciar a mentira e a iniquidade – sempre!"

Afonso Dias

ver mais em: http://www3.cm-vfxira.pt/PageGen.aspx?WMCM_PaginaId=30638


Nota: foram 700 as vezes que me apeteceu escrever aqui.

terça-feira, outubro 12, 2010

Observação dos dias (II)



Os dias passam demasiado rápido. Só isso explica que tenha deixado passar Voando nos Equinócios. Nada afinal me apeteceria mais. E nenhuma coisa me causaria mais medo, esse medo que habita o desejo do impossível.

~CC~

Nota: Para os curiosos espreitar aqui. (ver Desporto, 9 e 10 Outubro)

Observação dos dias (I)


Saio muito cedo pela manhã. A paisagem é inevitavelmente composta por homens e mulheres que passeiam os seus cães. As ruas ficam logo imundas pela manhã cedo.

~CC~

segunda-feira, outubro 11, 2010

Laços apertados e deslaçados

O nó, esse cimento de anos. Um grito e os amigos acordam, mesmo distantes. Um olhar e somos os miúdos de antigamente, os adolescentes que já fomos, os adultos nas veredas iniciais, as primeiras crianças que nasceram de nós. Estamos ainda aqui.


Outros chegados ainda há pouco, e no entanto um lume já capaz de aquecer, fulgor de palavras trocadas, lágrimas pelo mundo. A fotografia do nó ali a olhar-me (obrigado J.)


Outros chegaram ainda há pouco e já parecem ter partido. Eram fumo, vento, simulacro. Não devia trazer nenhuma dor, e no entanto dói. Porque vieram, porque se foram, talvez nunca venha a saber.

Talvez estejam outros para chegar, talvez possam ficar.
~CC~

domingo, outubro 10, 2010

Domingo de volta

Tenho-me. Tenho-te. O mundo parece acordar de um sono triste.

Toquem os sinos porque o Domingo é de água e Deus é o sangue que nos corre por dentro a pedir felicidade. Há uma fina película de luz a entrar nas janelas que acabei de abrir.

Apanhei mais do que um comboio para acordar noutros lugares e poder saber como é a manhã quando acordamos longe de casa e não sabemos onde se pode ir beber café. E Aveiro é uma cidade entre a água doce e a água salgada, num equilibrio instável. Tem a serenidade dos lugares instáveis, a mesma que eu procuro. A beleza dos lugares em movimento.

É tão bom como ir é poder no regresso enrolar-me naquele sorriso alegre da adolescente que me espera na volta. É observar até que ponto as plantas cresceram na minha ausência. É deixar-me cair no sofá de todos os dias. O melhor das rotinas é sabermos que as podermos romper, é conseguir fazê-lo.


Que em mim não morra esta vontade de ir, mesmo quando o peso das pernas parece ter aumentado e a vontade de dizer palavras parece ter desmaiado no fundo da minha garganta. Mas não é assim, eu sou ainda a vontade de ir. A minha viagem interior cresce nas viagens reais da terra, sou mais eu de cada vez que acordo noutro lugar.
~CC~

quinta-feira, outubro 07, 2010

Terra

Imagino que és tu a terra onde posso morar. Se abrires bem os braços e me puderes abrigar de todos os vendavais, talvez possa adormecer tranquilamente dentro do teu calor. Estou cansada.

E não é um rosto perfeito, um corpo bonito, um arquitecto do saber, um encantador de palavras. É apenas uma alma grande, aberta ao mundo, tombando no equilibrio precário das coisas para se erguer árvore em qualquer Primavera. O que é forte e pode ser também frágil. O que sabe rir sabe chorar. Deixa-te ir, ser. Deixa-me ir, ser.

Imagino que sou terra onde podes morar. Se abrir bem os braços talvez te possa acordar para esses rios que te correm dentro, às vezes presos e outras fluindo a campo aberto, fertilizando as searas. Talvez te possa adormercer tranquilamente dentro do meu calor. Estás cansado.

Beijos primeiros. Beijos em primeiro.

Terra, este existir para existir mar.

~CC~

quarta-feira, outubro 06, 2010

Pessoas luz

Passei a frequentar amiúde o bar do hospital, um lugar triste animado por dois vasos de plantas grandes e verdes e paredes pintadas com muita cor. E se é verdade que a estética das paredes, dos quadros, das plantas, lhe traz uma luz menos difusa, é a senhora cinquentona que de quando em quando atende ao balcão que o ilumina.

Chama-me meu amor com uma doçura que me deixa sem palavras para lhe responder. Aquele meu amor já me trouxe uma lágrima (meu amor, hoje traz cara triste), mas a maior parte das vezes deixa-me sorridente (meu amor, não há água com gaz, beba da outra que lhe faz melhor). Já a vi sair do balcão para vir abraçar uma moça que chorava convulsivamente porque tinha vindo do Porto e não estava à espera de ver o pai inanimado nos cuidados intensivos. E esteve muito tempo abraçada a ela esquecida do balcão e nós à espera, mas numa espera solidária, silenciosa.

Neste tempo que foi vazio e triste, meu amor era um tratamento tão distante de mim e do meu mundo, que quase só facto de ela o usar me possibilitava amar-me.
~CC~

Brasil

Depois de Nelson Mandela não houve mais ninguém, depois dele deu-se a morte dos políticos.

Agora aparece Lula, sendo que este agora é tardio. Agora damos conta que ele existia porque está de saída e quer passar um legado. Dizem que o Brasil cresceu economicamente tendo como horizonte o povo e isso parece-nos impossível na era do capitalismo global. Ninguém pensa nos mais pobres em Angola ou na China, países que até há pouco ninguém colocava na esfera do capitalismo puro e duro. E Lula tinha elos duvidosos, deixava-se seduzir por ditadores com perfil revolucionário.

Não queria acreditar no brasileiro, homem de meia idade que dizia olhos colados na televisão que ia votar Lula (apesar de não ser ele, é como se fosse) porque muitas tinham sido as melhorias na sua comunidade. Na sua comunidade, já ninguém diz palavras destas. Os políticos não interferem nas comunidades, quando chegam ao poder já perderam todos os laços, forjam-se nessa perca. Há alguma coisa de estranho neste Brasil, ou então é mero embuste, uma ilusão.

O Brasil é metade da minha imaginação, um bocado do meu sangue. Agora mais.
~CC~

segunda-feira, outubro 04, 2010

Praia

O meu corpo sabe dizer-me. Posso assim segui-lo como quem segue um mapa traçado pelos sentidos. Encontrar-te. Depois é deixar que os beijos possam ser maré.

Saber sacudir a areia, ainda guardar as conchas.

~CC~