quinta-feira, fevereiro 04, 2010

Amor e uma história (I)

(Para E, em jeito de resposta (1) ao seu comentário no post anterior)

A derrota

Maria tinha tido um acidente grave de carro que a deixara com um braço para sempre paralisado e por isso reformara-se cedo, não tinha ainda completado cinquenta anos. Com as filhas crescidas, deixara a cidade e voltara à vila onde nascera e à qual durante anos só tinha ido esporadicamente. Como mulher que toda a vida amara os livros e se dedicara a fazê-los amar, tinha levado com ela a vasta biblioteca que organizara meticulosamente numa das assoalhadas da sua casa na vila. E os miúdos da escola iam amiúde procurá-la, tornara-se numa espécie de tia culta que ajudava a ler e a interpretar as obras obrigatórias, fazia-o de graça e com gosto e aquilo dera um novo sentido à sua vida. Ganhara também o respeito da comunidade.

E isso durou até ao dia em que um rapaz mais velho, já trabalhador, a procurou para o ajudar a fazer o exame de 12º ano e poder ingressar na faculdade. Também ele tivera azar com a vida, a doença do pai tinha-o obrigado a deixar os estudos, e só agora podia voltar. Era assim diferente de todos os que tinham procurado Maria, tinha mesmo vontade de aprender e de superar-se a si próprio. Liam muita poesia, sobretudo Fernando Pessoa e Camões, poetas que eram muito focados nos exames de 12º ano. E o rapaz sentiu uma e outra vez os olhos molhados quando ela lia com a sua voz rouca, o braço sem vida, a alma fora dali. E era verdade, ela esquecia-se da presença dele, lia para si própria em viagem interior. E é assim que o amor nasce: uma coisa tão pequena que nos toca no outro, que nos toca como mais ninguém tocou.

E nenhum deles quis ou pode evitar que da doçura das vozes se caminhasse para a doçura dos corpos, nenhum deles teve medo do amor. É verdade que primeiro se escondiam no escuro do quarto, mas assim que a Primavera chegou, quiseram ir com ela pelos campos e deixaram de se enconder.

E a vila inteira soube, falou e condenou. Era um amor imoral. Condenada a diferença de idades, de estatutos, de ambições. Ela passou a receber cartas intimidatórias, deixaram de a cumprimentar nos lugares públicos e um dia uns miúdos na rua chamaram-lhe puta e depois desataram a fugir em ruidosas gargalhadas. Condenado o amor, tão só essa explosão, em si mesmo anárquica e não convencional. E sim, terminaram em mútuo acordo essa sua Primavera.

Ela fechou a porta da sua casa na Vila e colocou uma tabuleta: para venda. E nunca mais voltou. Ele fez tudo o que era suposto fazer: casou e teve filhos. E continuou sempre a procurá-la, não activamente é verdade, mas passivamente. Julgou vê-la no Cinema, numa livraria, num jardim...era uma miragem interior, uma sombra dentro dos seus olhos. E foram assim os dois infelizes para sempre. E o amor perdeu.
~CC~

2 comentários:

E. disse...

Oh, mas que bela resposta CCF. E agora, que faço? Coloco um post com uma história no SUL, ou conto-a aqui?

CCF disse...

:) Conta, conta...escolhe tu o lugar! Se quiseres envia que eu publico aqui na ardósia.
~CC~

(cibelefster@gmail.com)