quarta-feira, junho 04, 2008

A construção do amor e outros edifícios(II)



Jacinta amou uma vez só e a dor do abandono foi tão forte que ainda hoje a sente como uma lamina a cortar a carne. Percebeu que não sabia medir-se na entrega, percebeu que quereria sempre demais. Escolheu o deserto em que mora como quem decide entre a paz e a guerra. Tem um jardim lindo de amores perfeitos e é tudo o que quer da vida, que a deixem dar-lhes água e alimentar as suas cores. O corpo pode pedir por vezes outras coisas, mas ela sabe torná-lo manso. Os dias de Natal é que são um pouco mais difíceis cheios de tanto silêncio.


Josefa mergulhava intensamente em cada amor como se ele fosse o único e o maior de todos, nessa infinita capacidade de se entregar como se fosse vento ou água. Não durava muito o tempo de cada amor, fins colocados por ele ou por ela, quase sempre despedidas negras. Era uma mulher em viagem recolhendo pequenas dores que nunca a derrubavam, saía de todas igual a si própria, como se limpasse a roupa depois de uma queda na areia, importante era seguir em frente. Não queria perder tempo a falar das suas mágoas nem a chorar, melhor era pensar no riso que ainda havia a conquistar. Pouco saberemos sempre de outras das suas paisagens interiores, a paisagem exterior era o seu domínio de brilho.


Joaquina ainda não era velha mas há muito tinham passado os anos da sua juventude. Sabia a história das suas rugas como sabia dizer da arquitectura de cada amor e da forma como a ruína os tinha afectado como se fossem casas. Não tinha tido muitos amores, mas cada um deles era um mapa mundo que tocava com os olhos fechados, como se a todos tivesse guardado um lugar único, parecia ainda amá-los, o que de certo modo era estranho. Disse-me um dia que tinha decidido não amar mais, que aquele amor que tinha agora seria o seu último. Questionei o modo como podia tomar tal decisão e se isso se devia à sua idade. Respondeu que não, que dominava agora melhor a arquitectura do amor, não era preciso procurar mais, bastava construir.


Estas mulheres talvez possam ser homens. Estas mulheres são na realidade uma mulher só. Talvez seja eu todas estas mulheres ou talvez ela seja uma mulher que conheço.

~CC~

4 comentários:

João Torres disse...

Tanto enigma num só texto!

Beijos para as três ou então... só para quem lhes dá voz!

João

JPN disse...

estes últimos três textos são uma pequena delícia. gosto dos teus mundos...

Cristina Gomes da Silva disse...

Gosto particularmente desta frase: "saía de todas igual a si própria, como se limpasse a roupa depois de uma queda na areia, importante era seguir em frente", embora a areia suje pouco, talvez a terra ou mesmo a lama sejam mais actuantes ;)

Gregório Salvaterra disse...

Sublime construção. O amor em três parágrafos e um corolário florido.
Há homens assim também, há. Com uma Joaquina a crescer dentro deles, a sonhar com viagens de Josefa e a cuidar de um jardim como Jacinta.
O amor é construção complexa e nada fácil. Co-construímo-nos também no amor, não achas?
Beijo
*jj*