segunda-feira, janeiro 14, 2008

Vou contigo


Ela tinha apenas seis anos e dava-me a mão quando eu escrevia no quadro e ficava assim de mão dada comigo, calada e quieta à espera que eu terminasse a tarefa para lhe dar atenção. Um dia a mãe dela disse-me: ela gosta tanto de si, leve-a consigo, leve-a para sua casa. E a menina dizia-me o mesmo. Sabemos como a miséria pode vestir roupas diferentes e aquela era assim aquela dádiva dolorosa. Nos meus vinte e poucos anos não tinha sequer casa para onde trazer aquela menina, mas sempre pensei um dia trazer uma, uma dessas meninas que espera por nós num canto, com os olhos abertos, à espera que na mão que lhe damos acabe a tortura em que se tornou a sua vida.


Anos, estes anos depois vi mães potenciais no desespero das suas barrigas vazias não lhes trazerem meninas nem meninos, desesperadas pela ausência desse fruto, de olhos tão tristes como os das meninas sem mães. Quantas vezes não pensei como se podia dar esse encontro na ausência de tudo o que o formaliza porque o que formaliza significa na maior parte das vezes tempo, muito tempo para quem procura e para quem espera.


R nunca foi um rapaz de muitas esperas, há muito que decidiu inscrever o seu desejo de ser pai na procura de uma criança só, na procura por todo o mundo e por meios legais, naquilo que se designa como um processo de adopção internacional. Para as estrelas de cinema parece fácil, mas para os outros não é assim tanto. Esta procura tem dois, quase três anos e algumas desilusões no caminho, chamadas que resultavam em coisa nenhuma.


R construiu a sua casa peça a peça pelas suas próprias mãos como uma obra prima e sonhou que naquele quintal grande poderia juntar-se o riso de uma criança ao canto das aves, ao miar dos gatos e ao balido das cabras. Quer adoptar sozinho e é homem e esta diferença face ao comum, é quase fatal. Eu própria quis muitas vezes segredar-lhe por um ouvido a impossibilidade desse desejo, ao mesmo que pelo outro lhe queria soprar esperança.


Ontem partiu pelo oceano, levado por um sinal. Diz que voltará com uma menina de três anos, uma dessas meninas de olhos parados nos vidros, à espera que na sua infância cresçam finalmente flores. O julgamento está marcado lá e só o nome arrepia porque é desprovido de sentido para um caso como este, devia ser outro o nome a dar a esta cerimónia de aprovação de uma relação para a vida toda. Tremo por ele porque já fui testemunha num processo de adopção e não esqueço as perguntas que me fizeram: o casal tem condições? o casal não tem conflitos? o casal não tem discussões? a mãe é estável psicologicamente?


Espero que saibas dizer-lhes o que é o amor. Espero que aumentes a minha família com mais uma menina. Já lhe chamamos Rita, porque todas as meninas da nossa família são Ritas embora nenhuma se chame assim, mas isso é já uma outra história. E tu também não és da minha família mas sabes que és, que és mais que muitos outros, que praticamos entre nós um conceito de família baseado na força das redes.

Espero ansiosamente que voltes para que possa conhecer a Rita.

~CC~

4 comentários:

Gregório Salvaterra disse...

Lindo, lindo!
Pois se há sítios onde até as raízes crescem para cima, não deve haver impossíveis.
Venha de lá essa Rita para a família.
Beijo
*jj*

Anónimo disse...

fiquei com o coração apertadinho e conheço alguns casos de pessoas que tiveram que passar por imensas desilusões antes de conseguirem ter em sua casa o/a filho/a tão desejado.
Compreendo a necessidade de se ter precauções acrescidas num processo de adopção, mas creio que há limites que devem existir a bem de todos!
Carla

Mar Arável disse...

Nos gestos mais simples

é possível conquistar

um coração de ave

Anónimo disse...

Os textos que eu encontro!:)

A Rita veio com o pai?

Madalena