sexta-feira, fevereiro 29, 2008

Transparecer

S. Nicolau, Cabo Verde, Fevereiro 2008

Entre as pedras esta era a maior, uma pedra grande que chegou há pouco mas se tornou logo grande, sempre a esmagar o sol dos dias. E agora ela já transparece e nos sonhos melhores fica leve e voa feita ave.


Pode ser que ainda demore, mas um dia deixarás para sempre de viver em hospitais. Também tu brincarás, depois de despidas as máscaras de Carnaval, de tudo se faz brinquedo de menino.


~CC~

Ser

Leio durante toda a semana a entrevista ao Luís Miguel Sintra na revista Pública de Domingo Passado. E um dos paragráfos é como se estivesse dentro de mim, como se eu tivesse desde sempre procurado as palavras que ele usa.

" Sou religioso porque não sei pensar de outra maneira. Há uma interpretação do sentido da vida, uma visão da humanidade que transcende a existência de cada indivíduo e que não acaba na morte, que perdura para além da passagem das gerações, que eu só consigo interpretar de um ponto de vista religioso."
~CC~

quarta-feira, fevereiro 27, 2008

As palavras



Pedes que escolha doze para a corrente. Escolho-as por causa da palavra corrente de que gosto, escolho-as porque pedes palavras, coisa que toca os lábios e foge para o mundo, coisa de que gosto. O significado das minhas palavras não vem no dicionário, a não ser que exista um dicionário de sentidos, toma-as. Peço-vos queridos amigos, sem vos nomear, que agarrem a corrente se por ela se deixarem tocar.


Almar, porque é o lugar em que nasci. Em que se calhar todos nascemos, mas há uns que não sabem, outros nunca irão mesmo descobrir.

Alice, porque é onde a fantasia encontra o amor .

Água, porque é a matéria de que são feitos os rios que vão a cair para o mar infinito.

Crespúsculo, porque é a hora da visita dos Deuses.

Amantes, porque a sua intensidade explode vida.

Pequenino, porque tenho a memória da sua aplicação doce.

Beijo, porque por ele se vê tudo.

África, porque choro por ela e a amo e a detesto e não sei que fazer a este continente agarrado a mim.

Chá, por ser o lugar onde as ervas me fascinam.

Pele, pelo muito que ela fala.

Pessoas, porque a sua natureza é uma teia de mistério.

Poesia, porque o seu vasto e complexo lume ilumina o mundo


~CC~
Nota: também a Marta me tinha deixado este desafio que tardei a ver, obrigado por um pedido tão saboroso.

Vertigens

A diferença é que dantes eu sabia a origem das tonturas. Era por ter comido cerejas a mais, por andar sempre descalça, porque um rapaz tinha olhado intensamente para mim, era pelos sonhos sempre maiores do que o meu próprio tamanho, era a Primavera.


Agora interrogo o meu sangue, perguntando-lhe porque teima em trazer-me estas vertigens, como se por momentos parasse de correr dentro de mim. Interrogo esta névoa branca que me atormenta, este brilho da luz que parece cegar-me, esta ausência súbita de consciência.


Se há remédio, que sejam as cerejas.
~CC~

terça-feira, fevereiro 26, 2008

O tamanho da dor


Descobri que quando o tamanho de uma dor é grande torna absurdas e irreais as dores pequenas. Quase consigo rir-me dos imensos obstáculos pequeninos atravessados nos meus dias.


~CC~

Bairro amarelo (I)

São dezasseis anos de prédios amarelos desmaiados, agora manchados de cinzento e riscos vários. Não sei se queria viver mais dezasseis mas também não quero morrer. Gosto de fumos e bolachas de chocolate, pouco mais sei de mim ou da vida.
~CC~

segunda-feira, fevereiro 25, 2008

Sentados na mesa pela manhã


A saudade tem nome de tempo. A saudade chega de mansinho nos intervalos pequenos chamados segundos. Há tantas imagens que habitam um segundo. Umas demoram mais e ocupam quase um minuto. Esta aconteceu hoje, entre as 14.05 e as 14.06

Vejo a mesa posta pela manhã cedo e o cuscous a cozer no binde num dos bicos do fogão enquanto no outro se põe o café a fazer. Ambos chegarão quentes à mesa para que demoremos e assim se possam gastar as palavras que nos habitam. O doce de goiaba cobre a manteiga que já se derreteu na fatia quente do cuscous. Demoraremos. Gastaremos tempo neste nada que é transformar a comida em sangue e calor, aqui mais calor. As papaias podem partir-se de vários modos que experimentamos, ora as comemos fininhas com o garfo, ora cheias em meias luas, a polpa trazida pela colher. Ficaremos até não conseguirmos mais nos manter sentados, até o dia nos chamar para a vila, para o passeio, para a praia de areia escura.

Há ainda o rádio sempre ligado nestes pequenos almoços, às vezes nem o percebemos, outras ele impõe-se nos espaços brancos deixados entre as palavras e paramos para o ouvir. Há ainda a variante que ele traz quando não pode comer porque o grogue foi muito e é preciso ficar apenas a chá ou a gin tónico. Há ainda uma mão a repousar na minha perna, presa por um fio de lume, uma festa ligeira a acontecer por baixo da mesa, um gesto cumplice.

A saudade tem nome de tempo que já passou e ainda persiste teimosamente em nós, é este desejo de outra e outra vez que vai doendo ao mesmo tempo nos vai enchendo.

~CC~

domingo, fevereiro 24, 2008

Prece

Não sofrer mais, eles não podem sofrer mais. Por favor, uma réstia de sol, um favo de mel, um azul claro, uma papoila, uma brisa doce, um tempo sereno.

Por favor para eles, para ele, uma vida.

~CC~

(sim, eu sei que as orações são actos irracionais puros, mas há momentos em que pouco mais nos resta do que andar com o coração nas mãos).

Crioula


Venho de um lugar em que as árvores secas choram a dor dos homens e das mulheres. Eles, ao invés de chorar, cantam e dançam para espantar a angústia que aperta os corações. Não se sabe onde é que a tristeza acaba para começar a alegria, apenas as vemos enroladas como um espesso manto onde os olhos se abrem e fecham.

E as nuvens que não chegam a parar levam com elas para longe tantos e tantos apenas meninos, fazendo de cada país lá longe mais uma ilha, mais um lugar de saudade. Cada conversa no terreiro de S. Nicolau é uma viagem pelo mundo.

É preciso ir além, muito além do Sal- deserto reconstruído para turistas-para sentir. Desta vez sim, bateu na minha mão o seu coração. Tudo é diferente quando nos aguarda gente crioula.

~CC~

quarta-feira, fevereiro 13, 2008

Longe e perto

Ontem ela entrou numa igreja muito antiga e bela no coração da cidade e rezou com as amigas, confessando depois que não sabia muito bem rezar. Rezou ao Deus que há nela. Rezou ao Deus que habita todas as coisas que sentimos belas e boas. Importante é falar a alguém, juntar mais uma voz à nossa, acrescentar mais um abraço.

Amanhã também eu rezarei nas ilhas negras do Atlântico com o coração oscilante, por um lado partir e deixar o meu corpo seguir no ritmo das mornas e por outro ficar perto de ti, dele, desta luta. Transporto-vos comigo diluídos no meu sangue, por dentro da minha pele, memória constante.

Não estarei aqui por estes dias a escrever esperança e esperança para que de tanto a riscar na ardósia ela torne verdade o que desejo, mas escreverei na areia junto ao mar, nas pedras negras que encontrar, no calor do ar.

Estarei longe mas perto.
Até...
~CC~

segunda-feira, fevereiro 11, 2008

Guarda-rios e estuários (X)


Uma criança Almar é como qualquer outra rasgada pelo desejo de saber. A resposta da mulher velha não tinha saciado a menina. Ela indagava: diz-me, diz-me o que pode nascer destas sementes? E voz baixa, quase monocórdica: o que tu quiseres, o que tu quiseres, diz-me o que queres tu. E a criança sem compreender a pensar que aquilo que era um tesouro não podia ser o nada, tinha que ser o tudo. Concentrou-se na ideia tudo, no que podia significar tudo.

Uma semente devia dar origem a uma bananeira, porque a banana é como o pão a saciar a fome.Uma semente devia ser uma faísca eterna, capaz de atear o lume em qualquer circunstância, mesmo quando a lenha respira chuva.Uma semente devia ser uma isco que atraísse sempre os peixes mas que ao mesmo tempo nunca se gastasse, permitindo trazer para casa apenas os suficientes para que no mar ainda pudessem sobrar muitos.Uma semente devia dar origem a uma árvore tão grande, tão forte e tão frondosa como um imbondeiro, uma árvore como uma casa ou uma casa árvore.E a última semente, a última devia dar a flor de marucujá, uma flor capaz de durar sempre, uma flor sem morte.


A mulher velha escutou-a atentamente e disse apenas: a última, o que desejas que nasça a partir da última semente é muito difícil, quase impossível, mesmo em Almar. E continuou...

...cada criança Almar tem um sonho para estas cinco sementes e elas são, elas são exactamente todos esses sonhos.

~CC~

domingo, fevereiro 10, 2008

Esperança


Pensa comigo. Sim, é frágil e pequeno e está doente e é difícil conter as lágrimas de o ver novamente ali. Mas está ao cuidados dos milagres humanos e encontrará no calor do vosso sangue a força que o transportará ao dia em que será grande e forte, ao dia em que ninguém o agarrará quando jogar à apanhada. Pensa comigo a esperança que eu a penso contigo, pensemos alto para que possa ecoar profundamente e longe.

~CC~

sábado, fevereiro 09, 2008

Guarda-rios e estuários (IX)


Em Almar, a mulher mais velha de todas guardava o tesouro. Era uma caixa de madeira quase preta com a pirâmide gravada, a mesma que todos nós tínhamos tatuado na mão, logo abaixo do polegar.Esta tatuagem era feita no aniversário dos sete anos, um presente desejado como nenhum outro. E era aos sete por causa da palavra que estava dominada na oralidade e agora deixavam-nos partir para a escrita, a viagem da palavra escrita era a primeira para fora dos territórios da água. Por isso aos sete anos, em terra seca e na entrada para a escola onde nos misturariamos com todas as outras crianças, era necessário que a pirâmide nos brilhasse no escuro das salas de aula, que nos fizesse companhia. Ganhei o hábito de a esfregar nos momentos difíceis, mas não era um gesto só meu, vi-o noutras crianças Almar. Já adolescente pensei muitas vezes apagá-la, naquela idade em que só queremos ser diferentes de todos os legados que nos correm nas veias.

E quando esfregar a pirâmide não chega, tento ver com a mesma luz que vi pela primeira vez aos sete anos, o tesouro Almar. Eram apenas cinco sementes, cada uma diferente da outra. Uma era grande como um bolbo e outra tão pequena como uma semente de melancia. Eram lisas e rugosas, escuras e coloridas. Vejo-as dispostas diante de mim perante o sorriso da mulher velha. Vejo o meu espanto por pensar que dentro da caixa só podia haver ouro. E o atrevimento de lhe perguntar para que servia aquele presente, que importância tinha, afinal eram apenas cinco sementes numa caixa de madeira.

E da voz baixa dela e meio rouca a murmurar: das sementes tudo pode nascer.

Sim, das sementes tudo pode nascer.

~CC~

sexta-feira, fevereiro 08, 2008

Prémios


Recebidos das mãos da Marta e da Carla chegam os prémios, imagino-os conchas, algas ou estrelas do mar, em vez de estatuetas douradas. É uma questão de combinação com a alma ardósia azul, cuja voz elas escutam nos seus lugares, lugares que deseconheço como não as conheço a elas. Mas o que é conhecer? Talvez as conheça sim, conheço o modo como se me aconchegam aqui tantas vezes e o seu calor me aconchega também.

Recebo-os, agradeço, guardo os prémios entre a colecção de caixas ou dentro de uma delas. Não sei, contudo, seguir essa corrente, não sou capaz. Espero o seu perdão por esta incapacidade de nomear, de atribuir estas mesmas honras, de distinguir nomes entre os meus favoritos, alguns só favoritos porque são meus amigos e outros que não sendo meus amigos me embalam o sono e me revitalizam as dores.

Este lugar recuperou em mim os riscos que sempre guardei mas que a ausência de tempo e a correria dos anos teimou muitas vezes em apagar. Saber que há gente do outro lado é a outra face(boa) deste gosto maior.

~CC~

quinta-feira, fevereiro 07, 2008

Objectos singulares


Há filmes belos e intensos como Expiação*, uma Primavera de águas claras seguida de um duro e lodoso Inverno. É um filme de almas presas entre o céu e o inferno.

Há filmes recheados de tonalidades e sabedoria como Michou d'Auber (Michou em sarilhos)* , um amarelo vermelho em tudo Outono. É um filme de imensa esperança na bondade humana.

E há objectos coisa nenhuma como Floripes, cuja identidade é uma viagem entre o documentário e a ficção, habitado por fantasmas de pele e rugas de sal. Ninguém é actor porque todos se representam a si próprios ou representam alguém que realmente podiam ser. Na ilha da Culatra e em Olhão, vila da Restauração, vivem os velhos compostos e os velhos decompostos, entre paredes brancas pintalgadas de sangue mouro. Os olhos das pessoas de vida real, directos nos nossos, encontram um eco de séculos do medo das coisas que não sabemos. São muitas memórias de mouras encantadas desterradas em terras que não são suas, presas de um quebranto tão escuro como a noite, tão escuro como o mar. Um objecto singular, este filme.


E a língua que falam é não é português, é um arrastar avinagrado de limos da ria formosa, é por isso e estranhamente um falar legendado. De repente estou na casa dos meus avós, entre cravos e redes de pesca, entre santinhos escondidos debaixo da cama e a volta a Portugal em bicicleta. O meu avô também esteve com a moura encantada, diz ele que nos Pinheiros de Marim. Pessoas singulares.

Muitas vezes me comovi dentro de um filme ou dentro de um livro, levada ao colo até lugares de água, mas nunca tanto como com os olhos a espreitar reais os meus e o roçar das peles junto da minha pele.

E é também esta a comoção que me tem acontecido por estes dias cheios de crianças e jovens em que ninguém aposta, dentro de escolas e bairros miseráveis e que de repente vejo rir por se ter criado um espaço em que brincar é digno. É na maior parte das vezes apenas um momento, como quando o sol espreita num dia de chuva. Mas alimentam-me os momentos, os filmes singulares.

~CC~

* recomendados pela Cristina GS na Poeira dos dias e por JVT no Ninguém lê.

quarta-feira, fevereiro 06, 2008

Aprendizagem Matemática (VI)


Dois corpos que se amam ocupam consideravelmente menos espaço no universo do que quando sós.
~CC~

Aprendizagem Matemática (V)

Castelo de Praga, 2007


O poder, como o zero, tem tendência a tornar-se elemento absorvente da multiplicação. Não adianta multiplicar outros números, fazê-los variar, encantá-los, há esta enorme tristeza de tudo o que se multiplica por zero tender para o nada. Veja-se a ministra da Educação, se integrar como a lei torna possível, o Conselho de Avaliação dos professores, o mais certo é tornar zero os outros 21 membros. Ou será que em pleno Conselho, algum membro se assumirá diferente de zero e discordará dela?


O poder quando toma o seu lugar diz-se feito de outra quantidade, outro desenho menos redondo e mais imaginativo, mas assim que o alcança transforma-se inexplicavelmente a si próprio e a todos os outros com quuem se multiplica em zero. Poderia ser dramático mas não trágico se fosse apenas no governo da nação, mas da nação se passa para o lugar e do lugar para a casa. E em casa a dor é ainda maior.


Mas como a Matemática, mesmo ela, não é exacta, há que contar com a força do cinco ou sete, números com projecto mas à escuta de projectos outros, fazendo a diferença. Multipliquem-se!
~CC~

terça-feira, fevereiro 05, 2008

Aprendizagem Matemática IV




O rei recolhia as lágrimas da sua rainha para as levar em frasco transparente junto dos magos do reino. Analisava-se gota a gota esse rio de sal que tornava pálida e feia a rainha bela e loira, branca como a neve ausente dos seus dias. O mago que tinha vindo há muito do deserto era o que mais sabia sobre a saudade, não obstante a natureza da sua ser oposta à daquelas lágrimas.

O mago disse: é preciso tornar a distância relativa.


No ano seguinte já a neve branca das árvores despertava todo o espanto e o frasco ficava vazio porque guardar sorrisos era coisa que só os olhos podiam.
~CC~

sábado, fevereiro 02, 2008

Carnaval

Moçambique, Novembro 2007

Vamos brincar ao Carnaval, é simples.

Vestimos fantasias por todo o nosso corpo.

Nessa nudez, mergulhamos no azul transparente seguindo a rota das estrelas do mar.
~CC~


sexta-feira, fevereiro 01, 2008

Hoje convido!


Tenho às vezes pedido no calorzinho de um café, num intervalo em que foge um sms, nas palavras que sobram no final do jantar assim doces como sobremesa, na despedida de um telefonema...escreve um texto, mesmo pequenino, para deixar na minha ardósia. Mas ninguém pega no giz de cor para deixar traços, a não ser na caixa de comentários e nessa alguns dos traços são tão belos, tão azuis, que apetece trazer para aqui. Quem sabe um dia, um dia um texto alimentado da costura de uns e outros, nomes que se encaixam como um puzzle, rostos de olhos cruzados nos meus.

Entre os poucos a quem soprei ao ouvido o convite escreve um texto, mesmo pequenino está sempre ela, a minha pequena rapariga. Também ela acena a cabeça, fica com um ar pensativo, baixa os olhos como se não fosse nada com ela, mas depois, quando lhe apetece, dá-me palavras de presente.
~CC~

Meninas felizes

Está no meu quarto
Muito segura de si
Não me preocupo
Só lhe abre quem sorri

Sorrisos e risos
Não lhe vão faltar
Toda a gente vê
Que ela está a brilhar

Meninas diferentes
Meninas iguais
Estão todas contentes
Sem coisas morais

Umas magrinhas
Outras gordinhas
Guardam-na bem
São tão queridinhas

Há lá feitiços
E bruxarias
Há reboliços
E rebaldarias

Se tiver um filho
Ai mostra-lhe tudo
E ele vai dizer
Que é mesmo sortudo


~AF~

Nota: escrito para "la boîte de ma rose", uma caixa que a pequena tem no quarto. Não toquei numa palavra, numa letra, numa vírgula, está tal qual o que a autora escreveu.