segunda-feira, setembro 20, 2010

Luz

Ela disse: nesta aldeia nova não podemos falar com os nossos mortos. Eles estão lá na outra, na que está debaixo de água.

E eu percebi como se estivesse dentro dela com os mesmos 80 anos e toda uma vida a morar numa aldeia alentejana. Deve haver qualquer coisa de errado comigo pois nunca sequer estive uma aldeia, um lugar, uma terra, uma festa de aldeia da qual me pudesse rir até às lágrimas. Qualquer coisa de errado, pois sei que os mortos não são mais que ossos, bocados de carne arruinada, quase pó.

Eventualmente o problema pode ter sido o de ter devorado o Meu pé de laranja lima aos dez e os Cem anos de solidão por volta dos dezassete. A minha educação afectiva foi feita à custa de formigas gigantes, famílias de sangue, árvores falantes.

Fiquei assim, a pensar que também posso falar com os mortos. A chorar as aldeias perdidas que não tive. A imaginar casas térras cheias de osgas na parede assim que o sol se põe. A imaginar que deixo uma grande e bonita azinheira como legado aos meus filhos, mesmo tendo só uma, fico a pensar que todos os outros que fui tendo também são meus. A imaginar-me em paz, rodeada por trepadeiras que cobrem de vermelho, laranja e roxo as minhas próprias paredes brancas.

~CC~

3 comentários:

sem-se-ver disse...

que giro: também eu de vorei «o Meu pé de laranja lima aos dez e os Cem anos de solidão por volta dos dezassete»

:))

Margarida Belchior disse...

... esses aconchegos das trepadeiras vermelhas, laranjas e roxas são óptimos!! ... mas as minhas recordações e memórias trazem-me outros tipos de confortos e aconchegos que, fazendo embora parte do mundo natural, fazem também parte do mundo humano ... :-)

Bjs grds

CCF disse...

Sem se ver :)

Margarida, as trepadeiras são também isso, abraços de gente que temos connosco, não apenas natureza no sentido puro do termo.

Abraços às duas
~CC~