segunda-feira, junho 14, 2010

Somos nós (I)

Ele tinha feito 18, ela 22. Tinham deixado o quarto vazio, no quadro de cortiça ainda estavam os pequenos buraquinhos dos pioneses que seguravam as fotos. Apesar do Hi5, do Facebook, dos murais digitais que eles também tinham, onde se escondiam horas a fio, nenhum deles se sentava na sala a ver televisão, e as novelas eram definitivamente pimbas. Talvez apenas a cortiça das fotos, apenas ela traçava a linha entre as suas adolescências.

Ele tinha 22, ela 18. Ela passava todos os dias às 18h junto ao lago dos cisnes pretos. Naquele lago não havia cisnes brancos. Ela parava a dar-lhes pequenos pedaços de pão que trazia dentro da mala. Os cisnes não se aproximavam muito, eram desconfiados. Ela nunca dava pão aos pombos, só aos cisnes pretos. Às vezes debruçava-se um pouco no varandim do lago, como se fosse saltar para nadar com os cisnes. E ele espreitava o decote, e ao mesmo tempo vigiava-a, não fosse ela saltar de verdade. Tinha sido há tanto tempo, na verdade só restavam sombras. Ele já não a via a cores, nem à vida.

A folha de excel das contas do mês, tinha passado a fazê-la meticulamente, e por causa dela os quadradinhos não lhe saiam da cabeça. E por causa desses quadradinhos tinha começado a tomá-los, pequeninos, redondos, uma coisa que nunca pensou fazer, ser. As noites eram pesadas quando se tomava comprimidos para dormir, e de manhã não havia sonhos para recordar. A cabeça tinha só peso, como se estivesse cheia de serradura.

Não se lembrava, como é possível que não recordemos os momentos em que fomos felizes?!
~CC~

2 comentários:

R. disse...

É possível quando a vida é anestesiante...

via disse...

sim, imperioso não esquecer, é uma questão de sobrevivência, o balão de oxigénio quando tudo corre mal.