terça-feira, março 31, 2009

Sem palavras

Moçambique, Novembro de 2007


Estava sentada naquela pequena sala da faculdade em Lisboa a tentar explicar porque é que 2007-08 tinha sido um ano nulo do ponto de vista da evolução do meu trabalho académico mas tinha sido um dos mais ricos da minha vida. E dizia-lhe: é que fui a Angola, Moçambique e Cabo Verde. Mas ao dizer isto não dizia realmente nada. Devia ter-lhe explicado que por ter ido consegui compreender a notícia sobre a morte dos missionários no norte de Moçambique, aquela horrivel notícia sobre a população enfurecida ter encerrado três missionários numa palhota e lhe ter largado fogo. Explicaram que os missionários andavam a espalhar a cólera, embora eles distribuíssem cloro. Eu estive ainda mais, muito mais a norte.

Nesta família, que posa assim para nós em toda a sua integridade e à qual pedi autorização para a foto (procedimento obrigatório em África), apenas dois falam Português, o chede da aldeia e o rapaz mais jovem dos óculos escuros. Ele porque já não vive na aldeia mas na vila sede do distrito e foi à escola, apesar de a ter abandonado cedo para guiar o seu taxi. O chefe da família porque o intercâmbio com os portugueses no tempo colonial o obrigou a aprender, sabe o português coloquial, mas não sei se saberá escrever. A mulher só sorria e largou umas gargalhadas inesquecíveis quando lhe mostrei a foto no écran da máquina, nunca tinha visto nenhuma. Esta é a família mais abastada da aldeia e teve para connosco um acolhimento contido mas simpático.

Nesta aldeia como em tantas outras do norte de Moçambique as crianças não vão à escola e a economia local faz-se com meia dúzia de cabras colectivas, mangas e papaias que crescem abudantemente por todo o lado sem nenhum esforço e há às vezes uma horta colectiva ou pequenas hortas junto às palhotas. Aqui nesta aldeia também havia peixe, mas era quase todo comprado pelos comerciantes da vila que vinham esperar os barcos. Sim, é verdade, para quem percebe mal o Português é possível confundir cloro com cólera. Não é preciso por isso atear fogo às pessoas, pois não, não é. Mas quando nunca se saiu desta aldeia, nunca se foi à escola, nunca se conviveu com brancos (ou outras cores de pele), não se compreende o que nos procuram dizer, e se venera o feiticeiro local, as coisas podem extremar-se assim. É esta África que nos assusta e me assustou também, habituados que estamos à mediação pela linguagem e pela comunicação, sentimos por vezes que não temos modo de chegar às pessoas, de nos fazermos entender. Penso nos missionários que morreram com imenso pesar e penso igualmente com pesar naqueles que o fizeram, são mundos sem pontes os deles. E, no entanto, se nas aldeias havia junto às palhotas uma tenda, sabíamos que era uma ONG, fosse católica ou não. É louvável a persistência dos que vão, mas vão muitas vezes sem qualquer preparação que lhes permita uma abordagem intercultural do mundo.
~CC~

3 comentários:

isabel mendes ferreira disse...

:)

beijo.a. pela doce persistência.


obrigada.

sem-se-ver disse...

exactamente.

JPN disse...

que importante testemunho!