quinta-feira, fevereiro 19, 2009

Saudades

Chegou a tua mensagem, veio da adolescência com o sol, o aroma das maçãs vermelhas e a nostalgia dos yogurtes de limão, estes últimos agora vedados pela úlcera que piorou com os quarenta. E quasei chorei, presa das memórias dos dias que eram nossos.

Aprendi a calçar galochas pela manhã e a sair para o campo em cumplicidade contigo. A nossa diferença alimentava-se da fuga ao que os outros queriam ser e eram. Eu fugia de aprender a matar galinhas e transformar os aviários em embalagens de supermercado, ia apanhando flores pelos caminhos, ramos e raminhos, pedras, gravetos e sementes. Decorava as paredes com as espigas de trigo e de milho, em vez de saber quanto rendia por m2 uma plantação. Tu vestias cores impensáveis para um aprendiz de agricultor, e tinhas gestos e palavras suaves que por si só agrediam os rapazes da turma. Lembro-me de cruzar o pátio contigo no meio de apupos e insultos. E quanto mais eles ostentavam o seu desdém, mais a nossa diferença era motivo de orgulho para nós. Eu e tu, nunca um largava a mão do outro.

Depois aprendemos alguns instrumentos de diálogo, descobrimos que com alguns dos aprendizes de agricultor era possível trocar meia dúzia de palavras neutras. Estavámos cansados de ser desprezados, mas jamais o poderíamos admitir. E descemos vagamente do nosso templo para dar o braço a quem merecia uma oportunidade, quem também tinha o seu mérito, mesmo sem a nossa aura de artistas perdidos e filosófos da noite. Talvez tenha sido aí que comecei a aprender que a diferença não é por si só um motivo de orgulho, talvez tenha sido aí que comecei a usar com mais cuidado as designações de piroso e pimba para me referir a quase toda a gente, talvez tenha sido aí que comecei a usar a compaixão na compreensão das pessoas, a gostar delas mesmo quando ofereciam caixas de bombons no dia dos namorados.

Outras coisas, meu amigo, por exemplo, esta saudade de nós, essas coisas só vão chegando com a úlcera dos quarenta. É verdade, não te disse, mas no fim de semana passado andei a apanhar lírios do campo.
~CC~

3 comentários:

Cristina Gomes da Silva disse...

bonita carta! é mesmo como diz o outro "pela escrita somos outros" Abçs

alexandrecastro disse...

li prazenteiramente esta sua carta.
confesso que fiquei com uma certa tristeza....
quanto gostaria de a encontrar na caixa do correio.
tenho saudades, também, do prazer de leituras em escritas de papel...!!
bj

Mar Arável disse...

Excelente

palavras com sentido

assertivas

a rasgar caminhos

é que vamos