sábado, fevereiro 28, 2009

Não saber ler

O homem devia ter perto de 60 anos, cedi-lhe a passagem na porta de entrada da tesouraria das finanças. Os funcionários estão numa espécie de caixas de vidro, cada um na sua, como se fossem aves raras. Têm apenas uma janelinha por onde falam connosco, de preferência que esses diálogos se resumam a passar-lhes as notas certas ou o cartão multibanco. Um deles é mais zeloso, costuma avisar-me de todas as coimas que terei se não pagar a tempo, salientando os prazos e escrevendo num papelinho, por acaso gosto dele. Mas o que se passou com o homem de 60 anos que não sabia ler, isso não abalou nem por um minuto a ordem do dia nas caixas de vidro.

Primeiro as senhas de atendimento, divididas em sectores. O homem que não sabia ler, não podia escolher. Estava à minha frente atordoado, mas não pedia ajuda. Nestes momentos sabemos o quanto as pessoas têm vergonha de não saber ler. Li o que queria dizer cada uma das secções possíveis como se o fizesse para mim própria e ele então tirou a que queria. Não me disse obrigado, avançou directo ao balcão. A funcionária mandou-o para trás, não era a sua vez, só quando chamassem o número da sua senha. O homem não disse nada, ficou ali a aguardar. Como ele não sabia ler o número, também não daria por nada quando o chamassem. Assim aconteceu. Fui até perto dele e disse baixinho: é o seu número. Ele avançou para ser atendido, mais uma vez não me agradeceu.

O seu desconforto era tanto que ele não podia agradecer-me. Percebi também que cada vez mais o mundo não atende pessoas que não sabem ler.
~CC~

4 comentários:

Gregório Salvaterra disse...

Lembrei-me...

Aí senhor das furnas
Que escuro vai dentro de nós
Rezar o terço ao fim da tarde
Só para espantar a solidão
Rogar a deus que nos guarde
Confiar-lhe o destino na mão

Que adianta saber as marés
Os frutos e as sementeiras
Tratar por tu os ofícios
Entender o suão e os animais
Falar o dialecto da terra
Conhecer-lhe o corpo pelos sinais

E do resto entender mal
Soletrar assinar em cruz
Não ver os vultos furtivos
Que nos tramam por trás da luz

Aí senhor das furnas
Que escuro vai dentro de nós
A gente morre logo ao nascer
Com olhos rasos de lezítia
De boca em boca passar o saber
Com os provérbios que ficam na gíria

De que nos vale esta pureza
Sem ler fica-se pederneira
Agita-se a solidão cá no fundo
Fica-se sentado à soleiro
A ouvir os ruídos do mundo
E a entendê-los à nossa maneira

Carregar a superstição
De ser pequeno ser ninguém
E nã quebrar a tradição
Que dos nossos avós já vem

(A Gente Não Lê - Carlos Tê / Rui Veloso)

Beijo
*jj*

O Puma disse...

Muito menos os fazedores

de analfabetos

Anónimo disse...

não sabel ler, não entendem o que deviam. Todos os dias me pergunto como é que conseguem andar neste mundo sem serem enganados... São-no constantemente, não são? Dizia um amigo meu há mais de 30 anos: "a revolução só existe se as pessoas adquirirem cultura!". Nunca pensei que 30 anos passados, ainda os vejo iletrados ou pouco mais,sem entenderem o básico mínimo...
EB

sem-se-ver disse...

CC, tem de ver o 'the reader'.