terça-feira, dezembro 09, 2008

A obra

Há meses que eles vivem ao meu lado, trabalham de dia e de noite e não me deixam dormir. Conheço agora melhor que nunca o significado das cores dos capacetes e distingo o que faz cada uma delas. São por vezes tantos que parecem as minhas formigas africanas, outras vezes são tão poucos que parece que a obra será impossível de terminar com tamanha escassez.

Têm cores variadas, quase tanto como as nacionalidades. São quase todos homens, mas já houve mulheres na obra, parece que se foram com a aproximação do Inverno. Penso como aguentam o frio e a chuva pela noite fora, como se mantêm acordados, como é que se sustenta tanta dureza com um salário em regra tão baixo. No outro dia cheguei muito perto e pude ver os coletes com o logotipo da empresa de trabalho temporário.

Nunca tinha visto construir de raiz um tunel, passagens inferiores e superiores, pequenas pontes, casinhas várias. Nunca tinha visto a transformação do nada pela armação do ferro, da madeira, da terra, numa minúcia que corresponde a segundos, horas, meses de observação. Quando partirem eu já não serei a mesma, até porque terei dormido consideravalmente menos e, pior ainda, sonhado pouco. Talvez tenha aprendido coisas que não sei para que servem, é assim que os meus alunos as enunciam muitas: não sabemos para que serve aprender essas coisas...para que serve...

Poderia odiá-los porque há meses que não me deixam dormir. Estive várias vezes a um passo de terminar com isto, apresentando queixa em todos os lugares em que isso fosse possível. Mas no sábado passado entre o ruído das máquinas ouvia-se uma voz forte a cantar um fado por baixo da minha janela, era bela e cortava quente o frio matinal, e é por essas e outras que não os posso odiar, não consigo.
~CC~

2 comentários:

clorinda disse...

quando se é bom de raiz, o bom senso prevalece sobre qualquer sentimento mesquinho... por vezes é difícil, mas creio que vale a pena, de vez em quando, em situações de tensão ceder à nossa vontade em detrimento das necessidades alheias.
Abraço e Carpe Diem

Gregório Salvaterra disse...

Há pessoas... :) Pois, há pessoas para quem essa obra terá sempre um significado especial. Quando um dia for inaugurada, espero que em breve, poucos saberão dos ferros que lhes percorrem as entranhas, poucos lembrarão os coletes reflectores do trabalho temporário. Pode ser que a melodia desse fado perdure no ouvido e faça esquecer o ostinato dos apitos das gruas.
Tudo isso é assim como um parto a que se assistiu desde o início. Um parto longo e difícil. Não serás a mesma, pois não.
Bons sonhos.
Beijo
*jj*