terça-feira, outubro 21, 2008

Ausências e errâncias (IV)



São minhas as conversas com o jovem padre e com a amiga Isabel. O meu nome é Josefa e estou prestes a fazer 27 anos. Nasci numa várzea no interior deste país, lugar fértil onde tudo nasce e o rio corre. Cresci a furar os campos de milho alto, sabendo que a vitória era chegar ao outro lado sem me perder. Tinha uma enorme paixão pelo interior da matéria, sonhava com células como as minhas colegas sonhavam com os grupos da moda. Recebi da minha aldeia todo o incentivo que possam imaginar para uma carreira bem sucedida. Fui primeiro a melhor aluna da escola de pedra da primeira infância e repeti esta dose de êxito na vila e na cidade. Toda a aldeia foi comigo quando me mudei para a faculdade na capital e me escreveu cartas quando fui para Londres.

Como é que vos posso explicar este sentimento de ser maior do que eu, de ser o orgulho da terra, dos meus pais explicarem demoradamente no café da aldeia qual a natureza dos prémios que aqui e ali eu ganhava e de se fazerem brindes depois da missa "à menina Zéfinha que é de todas a melhor das nossas meninas". Eu não sou eu, sou a vingança de toda este gente que nunca saiu daqui a quase parte nenhuma, sou todas as meninas que casaram cedo e não puderam continuar os estudos, sou todos os rapazes que começaram cedo a lidar com o tractor e a podar as vinhas e não fizeram mais nada a não ser seguir o destino traçado, sou todas as velhotas que nunca aprenderam a ler. Carrego nos meus ombros toda a alegria de ter sido o seu orgulho e a imensa tristeza de não poder ter sido tudo o que eles foram e são. Não sei fazer marmelada, não sei calcular a olho nu a profundidade a que a semente deve ficar, não sei pegar numa agulha, não sei ter um bebé no colo e embalá-lo, não sei rezar.

E quando eles me abraçam e me chamam menina Zéfinha, eu não sei retribuir o afecto com o mesmo calor e creio que é isso o que me traz maior dor. Eu perdi-me deles mas eles não se perderam de mim, é como se tivessem ficado aqui à espera de todos nós que partimos, mesmo os que eram tão jovens como eu ficaram à espera.


E eu volto sempre à procura de mim, volto sempre que me perco e não me encontro, volto quando o meu coração parece que vai parar de bater tão devagar.


~CC~


5 comentários:

João Torres disse...

e...
como não voltar aqui, todos os dias, à espera de mais...

De mais um olhar sobre o mundo, sobre o que nos rodeia, contado em forma de história ou de lenda...

Parabéns e um beijo grande,

João

Mar Arável disse...

é sempre bom quando alguém

não se perde das suas memórias

abel neves disse...

É uma boa sorte. Tem de continuar no pulsar da sua aldeia. Havendo trabalhos e rios, poderá oferecer-se aos dias que virão, aos melhores dias. A boa sorte será dos outros também.

Gregório Salvaterra disse...

Que arrepio!
Não imagino a que profundidade foi semeada esta escrita para nascer assim dos dedos como papoilas.
beijo
*jj*

blue disse...

"...volto quando o meu coração parece que vai parar de bater tão devagar."

belo, belo, belo, CCF.