sexta-feira, abril 04, 2008

Estranho mundo

Quirimbas, Novembro 2007


Em Moçambique andei quase 100 km por estrada batida até chegar ao lugar onde se apanhavam os barcos para a Ilha do Ibo. Havia as avionetes claro, com partida do Resort mais luxuoso de Pemba, mas uma ida e volta custava cerca de 300 Euros. Ora nós moravámos numa pensão digna mas sem luxos em frente à praia onde o povo vai ao Domingo, não estava ao alcance do nosso bolso cruzar os ares em 30 minutos até qualquer paraíso. Pela minha parte nem quereria. Queria ir à Ilha como o povo vai. E descontando o facto dos barcos dos pescadores terem uma tabela a 3 preços: residentes das ilhas, moçambicanos e estrangeiros, foi assim que fui. Era noite quando saímos e manhã cedo quando chegámos ao pedaço de terra sem nada que tinha julgado um cais de embarque. Pelo meio, o nascer do sol mais belo que vi até hoje.


A ilha do Ibo é um lugar tão fantástico e bonito como estranho, de onde as memórias me vão saindo aos poucos. Ja no regresso da ilha, a luta por apanhar uma maré que permita chegar a terra faz o barco pequeno transbordar de gente e duvidamos que os dois motores consigam ter força para o arrasto até ao outro lado. Uns vão de pé e outros sentados, mas tão encostados uns aos outros que qualquer movimento nos faz tocar. Tenho medo, não fora olhar para o metro de altura da água e pensar que se nos afundarmos não será afogados que morreremos. Mas há muitos outros impoderáveis e tento apagar imagens de piranhas e crocodilos, que esses bichos não gostam de sal. Quanto muito uns tubarões, mas talvez sejam pequeninos, tubarões bébes.


No barco apinhado há um telemóvel que toca e recordo que na viagem para lá, bastante menos congestionada, tinha sido o meu. Olhamos todos uns para os outros, ainda que o ruído dos motores amorteça o toque. A Ilha do Ibo é invulgarmente pobre se pensarmos que é um destino turístico. As mulheres que viajam connosco vestem um traje muito comum em Moçambique, uma capulana enrolada nas pernas e uma t-shirt no tronco. É por isso com esforço que a mulher, cerca de 60 anos, enfia a mão por dentro da t-shirt e tira do soutien o telemóvel e o atende com desenvoltura. Demora pouco tempo, depois volta a colocá-lo entre os seus seios. Na ilha do Ibo não havia o que comer, passámos um dia a comer mangas porque foi a única coisa que conseguimos comprar. Fico a pensar naquele telemóvel a tocar entre os seios da mulher.

O mundo é hoje um lugar estranho.
~CC~

5 comentários:

cs disse...

É tão bom ler algo sobre este lugar

:)

cs

Anónimo disse...

Os meus alunos americanos partiram há quatro dias para Pemba... Eram religiosos, missionários, disse-lhes um dia que era ateu , depois de saber que rezavam por eles, pela família , e um pelo país...
-Ninguém reza por Moçambique?- quis saber ....
- Sim todos os dias, muito tempo...
Puxaram pelo caderno e leram algumas orações criadas em Portugal, comoventes...
Já não eram muito jovens , mas reinava neles a maravilha
, o sorriso , a leve ironia e um prazer enorme de aprender...
Quando se despediram de mim , disseram-me , rezaremos por si, rezaremos muito por si, muito.... Fiquei perplexo, e emocionado, você deu-nos muito....
Nunca os esquecerei porque tive muitos alunos missionários e laicos e de todos os desejos que trocamos , nenhum se cruzou com este , este desejo do bem por mim que senti profundamente como verdadeiro, ou não falassem os olhos e as mãos não se apertassem seguras.... Encontrei o poste e não resisti só porque havia uma referência a Pemba ,à ilha, às grandes praias, a Moçambique que hei-de visitar um dia como lhes prometi para comer com eles arroz e feijão.
Cordialmente J.Ribeiro Marto

hora tardia disse...

estranho mas belo...


irreversível.

nostálgico.


(areia que parece de zanzibar)

e Tu.
no caminho da escrita "reveladora".

que se lê e se segura. com as mãos cheias de terra.


____________________.
beijo.

Carla disse...

é mesmo um lugar estranho...mas que bem que me soube ler sobre esta tua viagem...
boa semana

Anónimo disse...

O avanço da tecnologia vai chegando a todo o lado. Mas a miséria mantém-se. Eu também já vi com os meus olhos. Estou a lembrar-me, não sei bem porquê, da globalização.

Mil beijinhos,
Madalena.