terça-feira, abril 20, 2010

Outras palavras, e podiam ser minhas (I)



TESTAMENTO
Vou partir de avião
e o medo das alturas misturado comigo
faz-me tomar calmantes
e ter sonhos confusos

Se eu morrer
quero que a minha filha não se esqueça de mim
que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada
e que lhe ofereçam fantasia
mais que um horário certo
ou uma cama bem feita

Dêem-lhe amor e ver
dentro das coisas
sonhar com sóis azuis e céus brilhantes
em vez de lhe ensinarem contas de somar
e a descascar batatas

Preparem a minha filha
para a vida
se eu morrer de avião
e ficar despegada do meu corpo
e for átomo livre lá no céu

Que se lembre de mim
a minha filha
e mais tarde que diga à sua filha
que eu voei lá no céu
e fui contentamento deslumbrado
ao ver na sua casa as contas de somar erradas
e as batatas no saco esquecidas
e íntegras

ANA LUÍSA AMARAL, Minha Senhora de Quê, Quetzal Editores, Lisboa, 1999: 61, 62

2 comentários:

Margarida Belchior disse...

Tão lindo!! ... :-)

É mesmo o contra-tempo do "main stream" actual.

Bjs e vai continuando a tocar a "contra-tempo" :-)

candida disse...

muito bonito mesmo.