quarta-feira, março 24, 2010

Quando o corpo já não pede

Voltei lá mais uma vez, porque da última vez não tínhamos trabalhado todas as histórias de vida que eu levava. Histórias dos outros como mote para as nossas. Na universidade sénior as pessoas estão lá só porque querem, e eu também. Nada nos obriga a estar ali, essa liberdade tornou únicas as nossas conversas. Eu não trabalho ali, eles já não trabalham.

Falar de afectos e de sexualidade é talvez a única coisa que há realmente para falar, mas as cortinas de silêncio tampam-nos quase desde que nascemos.

Hoje eles contaram como os seus casamentos foram cortados pelo silêncio maior do peso das múltiplas tarefas com que os adultos estão confrontados. Entre o crescimento dos filhos, a exigência dos empregos, a ausência de ajudas na lida doméstica da casa, os familiares distantes, a distância grande da residência ao emprego, não houve tempo para ouvir nem o próprio corpo nem o do outro. Quando chegamos à cama, só queremos dormir.

E quando o tempo chegou e o casal se viu só no espaço da casa, o desejo já tinha há muito fugido pelas janelas. E como elas, sobretudo elas, dizem: o corpo agora já não pede. E elas não sabem olhar esse corpo que mudou, que morreu aos poucos. E eles também já não se sentem capazes do mesmo modo.

Mas ao mesmo tempo, parece que qualquer coisa ainda está viva, é esse lampejo de luz que os trouxe até aqui, esse balbuciar das palavras certas para falar colectivamente de uma dimensão tão íntima, e esse brilho quando um pedaço da história do outro diz afinal a nossa.

Como eu ganhei, como eu aprendi.
~CC~

2 comentários:

Gregório Salvaterra disse...

Lindo! Linda!
Beijo
*jj*

Anónimo disse...

Hoje ouvi a Gymnopédie do Satie... que sentiriam os teus seniores se a ouvissem? Quando era adolescente aprendi que não precisava de drogas para viajar e ter prazer. A transformação da idade continuou a ensinar-me: o que o corpo não consegue fazer ou pedir não pode ser vedado à mente. Quando oiço a tamanha harmonia desta composição a alma e o corpo parecem ter a elegancia e agilidade que sempre aspirei e nunca tive mas o prazer é todo meu
EB