segunda-feira, fevereiro 08, 2010

Amor e outra história



(...o melhor amor de cada um de nós ainda está por descobrir)

E.


Celeste olhou uma a uma as portas fechadas da sua casa grande, tinha-as fechado para a tornar mais pequena e assim diminuir a sua solidão. Abriu a janela da sala, era a única divisão que tinha sobrado da sua vida familiar antiga, fechando os olhos podia ouvir as vozes dos miúdos quando chegavam da escola e sentir o coração a bater com força. Mas em vez da lágrima habitual que lhe aparecia nessas ocasiões de profunda saudade, viu nascer na sua boca um sorriso. E da janela da sala dirigiu o sorriso até ao lugar da Nogueira. A verdade é que ainda há pouco tempo a mandara cortar porque a entristecia ver a ruína em que ela se tornara, e muitas vezes sentira-se tão velha quanto ela.


Mas estava para chegar o seu velho com a nogueira nova, e o buraco que pedira para abrir cheirava a água e a terra, estava pronto para alimentar a seiva de uma nova vida. Chamava-lhe intimamente e só para si própria o seu velho, mas achava-o ainda um homem muito bonito, e tinha pensado muitas vezes encher os seus dedos com aqueles cabelos brancos tão abundantes.

Ele tinha vindo ver a casa quando ela a pusera à venda, cansada das memórias que lhe estavam agarradas, e tinha ficado preso à cor purpura única das paredes e ao cheiro dos jasmins que trepavam por elas. Tinha dado tudo o que tinha aos filhos numa espécie de despedida antecipada, os bens já não lhe interessavam, mas procurava ainda um lugar para poder demorar-se nos crepúsculos. Combinaram ver-se uma e outra vez com a casa pelo meio, mas já presos um ao outro pelo resto do brilho que os seus olhos tinham. E ele tinha-lhe pedido para ficar naquela casa, porque há lugares que não se podem abandonar sob pena do sangue se transformar rapidamente em pó. E ela sabia que apesar de ter fechado as portas, deixá-la era também secar por dentro. E ela tinha-o convidado a vir, a trazer as suas coisas. E ele tinha dito: primeiro trago a nogueira nova para plantar. E viram que na geografia da pele havia roteiros de lume ainda por descobrir. E nunca falaram de amor, nunca.

(a frase de E. está cheia de esperança, se no momento em que perdemos um amor que ainda amamos, nos fosse possivel beber dela, a sombra não nos tomaria)

(é beber desta esperança, não só porque "o melhor amor de cada um de nós ainda está por descobrir" mas também porque podemos descobrir melhor o amor que temos).

~CC~

5 comentários:

deep disse...

Só para dizer boa noite e para agradecer o incentivo no Letras. Amanhã regresso para ler as tuas palavras com a merecida atenção. Beijos

E. disse...

Uma excelente história CC. Como reagiria Alberoni?

Uma história paga-se com outra. fica então uma, de Janeiro de 2005:

Trémulo, desenhou o último símbolo na partitura. Nem precisou de dedilhar as notas no teclado marfim e ébano, tal a certeza que tinha no acerto da melodia. Reviu uma vez mais mentalmente o dedilhar dos dedos nas teclas e, sem um estremecimento de comoção, fechou a tampa do teclado do piano preto em que há muito não tocava. Detestaria para sempre aquela música, mas no entanto tinha de a ter escrito para dela se libertar; havia muito lhe não saíam da cabeças aquelas notas malditas, a sequência que mil vezes proscreveu. Altas horas na noite, um trautear insuportável apoderava-se dos seus sentidos e acordava enxaguado no seu suor dedilhando fervorosa e infinitamente de cabeça encostada à parede da cabeceira da cama aquela maldição que apanhou num concerto de Outono a que foi por acaso sem vontade. As suas notas, as notas dela, ela... onde estaria, volvidos cinquenta anos?... Como seria o seu rosto? Teriam as suas feições perfeitas sobrevivido, como a música terminada com a pressa de cinquenta anos, à fustigação do tempo? Um último suspiro solitário, silenciado, quando se sentava na cadeira de baloiço de vime, levou-o desta vida sem permitir ao velho o tempo e a esperança de uma resposta.

deep disse...

Também o teu texto - belíssimo, a lembrar Mia Couto - está carregado de esperança, a esperança de que o amor, mesmo que tenha outros nomes, pode chegar a qualquer hora, mesmo quando pensámos que lhe fechámos a porta. Obrigada por esta partilha. :)

Bjs

CCF disse...

Obrigado duas vezes à DEEP! E aquele abraço.

E um agradecimento muito especial ao E. que com os comentários às minhas histórias e com as suas próprias histórias encheu esta ardósia de bons riscos.

~CC~

E. disse...

Nada a agradecer. Evidentemente, foi (é) um prazer.