segunda-feira, novembro 09, 2009

Muros (II)



(para ~AF~, que tanto gosta de conhecer as histórias reais da família)



Nunca poderei esquecer os muros que havia dentro de casa. Eram portas e portas fechadas à chave, e meninas que ainda éramos, espreitavámos pelos buracos da fechadura para tentar adivinhar o que ia lá dentro. Era uma casa grande, muito grande, mas nós vivíamos as quatro num único quarto, uma única casa de banho e a cozinha.

Nós agonizámos na nossa falta de espaço: duas mulheres, uma adolescente, uma criança enfiadas num único quarto onde se tinha que fazer tudo. Lembro-me dos colchões que se estendiam na hora de deitar e que era preciso tirar ao levantar, e ainda sei a cor dos cobertores que se dobravam e desdobravam a toda a hora. Tinham-nos deixado a casa cheia de portas fechadas à chave e nenhuma chave. Eram os nossos muros, os muros dolorosos da minha adolescência. E pouco podia compreender do que se passava em concreto: dizia-se em voz baixa que a casa tinha sido ocupada pelos retornados, e nós éramos já a segunda vaga da ocupação. Éramos também retornados, mas mais pobres e menos espertos, a nossa família era esse bando de quatro mulheres, duas afinal quase meninas, e não tínhamos nenhum rendimento para além de uma magra pensão pela qual a mãe lutava todos os dias, e mesmo essa estava sempre sob ameaça. Tínhamos vindo assim, na esteira de outros, ocupar casas de luxo vazias.

A família que tinha sido a primeira ocupante tinha partido deixando toda a casa fechada, um palacete cheio de muros. Todos os dias me perguntava pela razão das portas fechadas, e cedo descobri que entre os miseráveis há ainda quem seja mais miserável. Era por isso que a mãe chamava bruxa a quem se julgava proprietária de uma casa que tinha ilegalmente ocupado. E dizia-se que a ocupante tinha as salas fechadas cheias de móveis de luxo que tinha trazido da antiga colónia. Eu não sabia se era verdade, sonhava apenas com a abertura das portas. O meu mundo era todo feito de segredos, jamais poderia dizer às minhas colegas de escola como era a minha casa, e tremi de medo quando em Inglês estudámos as designações das divisões da casa e cada um devia falar das suas. Já não me lembro se faltei ou inventei uma casa à semelhança de todas as outras.

As portas fechadas da casa foram os maiores muros da minha adolescência. Era da tua idade, da idade que agora tens.
~CC~

2 comentários:

jvt disse...

Desculpa ~AF~ mas eu também li. Li e gostei... Todos nós temos os nossos muros, as nossas portas fechadas à chave...

Gosto muito deste blogue, sabias? É um blogue com gente dentro... um blogue um nos sentimos invariavelmente bem, mesmo quando nos contam histórias tristes... Historias tristes de mulheres fortes e autênticas que nenhuma porta, nem nenhum muro, conseguirá nunca aprisionar!

deep disse...

Também gostei muito da tua história, apesar no que nela há de tristeza e sofrimento. Comovi-me... talvez também porque hoje estou cansada e um pouquito triste.

Felizmente para mim, nas modestas casas onde vivi nunca houve portas fechadas. Até as chaves desta onde vivo agora estão todas juntas numa gaveta.

Um abraço. :)