Ela disse-me como tinha desistido. Desistido de o amar, de o querer. Contou-me como o amor começa com um mistério. O mistério do outro ser só quem se olha nas quatro paredes de uma sala. Alguém que se olha muitos e muitos dias nas quatro paredes de uma sala. E depois o olhar já dói, a boca abre meio sorriso, e chegam as primeiras palavras. Ela contou-me que achava que ele era um cigano assimilado. Abri a boca de espanto perante tal ideia. Contou-me que começou a amá-lo porque ele era um cigano e não dizia que o era. Perguntei-lhe pelos sinas de tal pertença étnica. E ela respondeu que era o amor que ele devotava aos cavalos. E também havia os olhos muito pretos e o tom moreno da pele. Ela apaixou-se por ele a julgar que ele, além de um brilhante geógrafo, era cigano. Um cigano a esconder a sua pertença étnica, ou com as raízes cortadas. O mestrado tornou-se secundário. Os outros deixaram de existir na sala em que eles se olhavam.
Mas afinal ele não era cigano e tinha mulher, dois meninos e uma óbvia e forte ligação à família. Mas também estava apaixonado por ela. E terminava todas as frases que lhe dizia com a palavra espera. E ela percebeu que teria que esperar até os meninos terminarem os seus primeiros estudos, depois a faculdade, depois a saída de casa. Ela percebeu que tinha uma vida de espera pela frente. E percebeu também que se esticasse a corda, ele viria, deixando para trás a mulher e os meninos. E via como lhe era insuportável começar uma vida sobre a dor de outros, mesmo não os conhecendo. Acordava a meio da noite a ouvi-los chorar. E desistiu, matou lentamente aquele amor que nem corpo tinha tido.
~CC~
1 comentário:
Na verdade
o ciclo das marés
não ignoram o tempo
a menos que ousem
contra as escarpas
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