quarta-feira, setembro 02, 2009

Fotograma (II)

Creio que terá sido na edicão de Sexta do Público da última semana ou talvez na de Domingo, ou talvez na semana anterior. Nas férias que já não são, mas em que as rotinas ainda não voltaram inteiramente, é difícil acertar com os dias. O que importa é que o jornalista Paulo Moura conta que uma mulher num país distante e dilacerado por conflitos vários o chamou, em plena rua, para contar a sua história. E ele que tanto desejava saber como viviam as mulheres naquele país, ligou maravilhado e expectante o seu gravador. E a mulher contava e contava e a entrevista durou dias e dias e cada vez ela contava coisas mais fascinantes mas também mais privadas. E ele mudou o rumo a todo o seu trabalho, centrando-o na história fascinante daquela mulher. E perguntou-lhe várias vezes se ela autorizava que se publicasse aquele material e ela disse sempre que sim. Dois ou três dias antes, num momento em que a reportagem já estava feita e pronta a publicar, ela ligou-lhe para anular tudo. E apesar dele lhe ter tido que era impossível anular a edição naquela fase, acabou mesmo por o fazer, dilacerado pelo medo do mal que tais revelações poderiam causar à mulher.

São também feitos dessa mesma angústia os meus dias a transcrever entrevistas ou a fazer a sua revisão. Espanto-me com o que as pessoas foram capazes de revelar e dizer, com a sua vida profissional inteira ali dita...e longos silêncios, por vezes emocionados, complicados. E quando as leio, penso logo no que virá cortado a vermelho por elas próprias no momento em que as devolver, no momento em que elas se confrontarem com o que disseram. É dramático que o que me parece mais rico e interessante é também o que é mais susceptível de auto-censura. E sinto o conflito ético, não me apetece que me roubem deste material o que nele é explosão, ruído, onda. E, no entanto, sei que tenho que o fazer. Resta-me a esperança que fiquem algumas ondinhas, não pela perturbação, pela conflitualidade, mas porque na praia há maré cheia e maré vaza e um milhar de nuances entre elas.
~CC~

1 comentário:

Cristina Gomes da Silva disse...

Também li. Nestes processos de escuta é preciso muito cuidado com o voyeurismo. É uma questão de respeito pelos outros