quarta-feira, julho 15, 2009

Cinzas

Por legado paterno chegou a leitura dos sinais ocultos nos olhos, nas mãos, nas folhas do chá, em certos desenhos do céu. Mas fui má aprendiz, nunca acreditei o suficiente e por isso não treinei suficientemente o nariz para o odor a enxofre e outros sinais do mal. Ao bem sou mais sensível, sinto paz na sua presença e esse é o inequívoco sinal da confiança.

Pensava saber distinguir bem a mentira da verdade, as pessoas boas das más, o amor do ódio. E se nada quase resta dessa ideia de mundo, nem dos feitiços e magia que assombraram a minha adolescência (Borges e Garcia Marques elevados aos píncaros....), sobraram certas palavras que me ocorrem para designar factos. Por exemplo maldição, serve perfeitamente para designar um amor já morto mas agarrado a nós como uma lapa, um amor que já nem dói mas se afigura ainda como um luto interminável. Maldição, já não é sequer a pessoa em si, mas a memória do desastre que aquele encontro significou nas nossas vidas. É a certeza de que o que nos trouxe de mau foi tão incomparavelmente menor face ao que nos trouxe de bom, que um salto ao passado com uma borracha de apagar certos olhares no momento certo seria um acto inteligente. Maldição é o que não devia, nunca devia ter acontecido.


Costuma ajudar de trocar de cidade, de emprego, de amigos, até já nada nem ninguém nos poder evocar aquela memória e podermos finalmente respirar um dia realmente azul, realmente limpo. Mas nem sempre o podemos fazer, nem sempre. É preciso viver com uma dor que já não dói, com lágrimas que já não correm, com um coração que não bate vermelho ao ver o outro mas bate cinza. Um coração a bater cinza é uma coisa realmente triste.

E também nos dizem que tudo passa nos braços de um outro amor, mas não é assim, uma pessoa não serve para esquecer outra, um amor não leva o outro. Um novo amor é felizmente uma outra coisa, uma coisa que nada tem a ver com a que passou. È outro acordar, outra forma de beijar, é um dia claro e luminoso por si mesmo.
~CC~

3 comentários:

deep disse...

Eu acredito que é impossível apagarmos da nossa memória alguém que tenha passado pela nossa vida. Fazê-lo é apagar anos, meses, dias e minutos da nossa vida em que houve outras coisas que estão além do que vivemos com essa pessoa, é esquecermos que vivemos nesse tempo.

Não esquecemos, mas é possível vivermos um amor diferente que nos faça relativizar o mal que alguém nos causou.

Fica bem. Bjs :)

Cristina Gomes da Silva disse...

É sempre bom lembrar o poeta "On n'oublie rien de rien, on s'habitue c'est tout"...de outra modo a vida morreria com cada amor que acaba e cada um de nós é mais do que amores mortos e memórias do passado :)

CCF disse...

Deep, és uma querida por te preocupares...acredita que não há razão! Sabes quando as nódoas negras já deixaram de doer mas ainda se vê a marca?! É só isso e nada mais. Beijinho para ti.

Cristina, claro que estamos cheios de amores mortos e a vida continua e a vontade de amar também, mas o modo como cada amor morre não é indiferente, fica gravado e, às vezes, condiciona o modo como vivemos. E tens razão, cada um de nós é além de passado, sede de futuro. E eu tenho uma terrível sede de futuro. Abraçinho
~CC~