domingo, março 29, 2009

Entre azul e negro

Acontece-me andar com um pesadelo dentro de mim. E depois em vez de o sonhar, sonho outros igualmente maus. O homem que vinha roubar-te pela metade os legumes da horta, levava meia couve de bróculos, levava metade de uma alface, levava meia papaia. Deixava sempre as metades que não levava no parapeito da janela, mas como nem sempre as encontravas logo, elas ficavam cobertas de formigas. Eu a tentar dizer-te que só podia ser um ladrão bom, pois levava apenas metade do que roubava. E tu a dizer que não, que era uma forma de nos causar medo. E esperavas por ele escondido, sempre com uma tesoura de podar na mão.

Acontece-me não sonhar com o pesadelo que trago dentro de mim. Os dias que tenho levado a pensar no homem que deixou o filho dentro do carro. Os dias a viajar no horror desse episódio sem outra explicação que não seja a sombra que habita cada um de nós. As pessoas a dizerem que deveria ser encerrado num carro também e morrer do mesmo modo que morreu a criança. Eu a dizer-te: eu não conseguia perdoar a morte de um filho, eu nunca mais quereria ver este homem. E assim que as palavras saíram da minha boca o horror que senti de mim própria por não ser capaz de perdão. Eu tinha dito, as palavras estavam ditas, eu tinha acabado de as dizer à minha filha e ela tinha ficado num silêncio estranho que piorou ainda mais a forma como me sentia. Penso muito neste homem, no que as pessoas disseram, no modo como anunciaram que só a sua própria morte lhe podia trazer paz. Penso no desejo de morte que pode existir quando fazemos o pior possível a alguém que amamos, mesmo que essa intenção não tenha existido. Penso que não haverá sofrimento maior. E justifico este homem quando disse eu própria que não o perdoaria. Parece que era bom pai, quem sabe a pressão no emprego era terrível, estava provavelmente muito atrasado, os quotidianos hoje são aterradores...procuro em mim o perdão que não tenho, como se por o dizer aos outros, ele se tornasse verdadeiro dentro de mim. E do mesmo modo que me arrepio com a justiça popular, não consigo encontrar o perdão necessário.

Procuro afastar de mim o pesadelo, procuro um sonho bom, daqueles que nos apetece encomendar para adormecer. E apareces tu, a dizer que não tarda haverá rosas vermelhas pequeninas no quintal. Aparece a minha filha montada num cavalo branco, a sorrir muito e a dizer "mãe, já sei andar tão bem"...e queria segurar-vos assim nesse instante feliz e dormir a sorrir.
~CC~

3 comentários:

Gregório Salvaterra disse...

A tempestade. Depois veio sol e já se vêem papoilas.
Beijos. Inteiros.
*jj*

Cristina Gomes da Silva disse...

Não me parece que possa existir perdão para quem não se perdoa a si próprio e esse deve ser o caso deste homem. A quem não emudeceu esta história? De espanto de improbabilidade, de terror. Eu também acho que só a morte o pode fazer esquecer, mas não uma morte ditada pelos outros, uma que ele só decida

Mar Arável disse...

A vida sempre teve vidros

a rasgar a pele e a alma

naufragos mesmo nas águas mansas

contradições

que é preciso resolver

mas também primaveras

e amanhãs de luz