domingo, novembro 23, 2008

Ponte dos milagres (VI)

Tentei convencer os juízes da inocência desta mulher simples, nascida numa aldeia do sul, fruto de um mundo em que as soluções se esgotam depressa como areia a cair das mãos. Tentei mostrar-lhes como é possível ir ao encontro de um milagre e acreditar de facto que ele existiu, mesmo que isso de todo nos pareça impossível. Mas ela era também uma mulher esperta, capaz e despachada, pelo que não podia nem queria marcá-la com um rótulo que tornaria a sua vida uma outra coisa. Sim, se o mundo se podia dividir em dois, ela era imputável.

Nunca, por mais casos que defenda em tribunal, me posso esquecer dos seus olhos meigos como mel, da sua voz dizendo:
Aconteceu percebe?! Pela manhã o desconhecido apareceu na ponte da Mizarela, apareceu logo com a criança, não me lembro do rosto dele, trazia um pano a cobri-lo. Debaixo desse pano preto, muito comprido, trazia o bebé. Era rosado, muito bonito, igual ao melhor dos meus sonhos. E deu-mo, simplesmente passou-o para os meus braços sem uma palavra.

Fez um silêncio, e depois, espantada com o que ela própria tinha descoberto, disse:
Só se esse desconhecido era o próprio Diabo, e como eu aceitei a criança dos seus braços, cometi o maior dos pecados e por isso tenho de ser julgada.

E lembro como nessa altura o juiz baixou a cabeça, passou a mão pelos olhos, e pareceu desesperar com a impossibilidade de comunicar com esta mulher.
~CC~

3 comentários:

eb disse...

Sei o que é desesperar por não conseguir comunicar. Acontece todos os dias. Mais dificil do que saber os pormenores da doença é ensinar o doente a tratar-se...

CCF disse...

Olá, agora que sei quem és! Obrigado por vires até aqui e por não teres esquecido o tempo que passámos juntas. A internet tem destas coisas...

Anónimo disse...

conta mais, conta mais...
Jvt