quarta-feira, maio 14, 2008

Creme de esteva



As coisas não me prendem. Demorei tempo a apreciar roupas, a gostar do espellho, a entender para que eram precisos adornos na pele se ela já era uma coisa tão bela. Ainda hoje não me demoro nas lojas, fujo dos centros comerciais, abomino desfiles de moda e outras manobras de exposição pública do corpo. Antes era uma ideologia baseada na busca da terra e da nudez, entre a ecologia e o comunitarismo, uma arquitectura tão íntima que não encontrava alojamento em nenhum partido, em nenhuma organização, em nenhum grupo. De qualquer modo cresci num mundo em que as mulheres que usavam saltos e pintavam as unhas eram objecto de desprezo, tanto quanto eram admiráveis as que usavam linhos brancos e longas cabeleiras sem pingo de tinta.


Hoje está longe de ser isso, abandonados os ideais românticos que forjaram a adolescência e embrulharam a entrada na idade adulta num limbo, há condições outras para pensar os objectos com liberdade. Mas ao contrário de muitos outros não viajei com a idade adulta até ao extremo, como quem vai da esquerda para a direita quando percebe que o mundo é imperfeito e dificilmente vai mudar. Não passei a gostar de saltos agulha e de verniz vermelho, mas passei a saber que quem os usa é potencialmente tão bom e tão interessante como quem não o faz, ainda que esteticamente essa imagem não me apaixone.


E passei a apaixonar-me por pequenos objectos, a deixar-me encantar pela poesia que alguns objectos parecem ter. É como se falassem comigo, é como se os ouvisse dizer: leva-me. É como se por os usar a minha identidade encontrasse eco neles. O creme de esteva, por exemplo. O creme de esteva, um produto natural para o rosto, estava num banal supermercado, creio que à minha espera. Não o tenho visto em mais nenhum. Tem duas particularidades: não parece acabar mais, há meses que o uso e o fundo continua a encher-se; cheira a campo, cheira à Primavera dos campos alentejanos, ao seu branco amarelo sol.


~CC~

12 comentários:

inominável disse...

manda-me um frasquinho desse creme que se renova...

e algo temos em comum: consumofobia em torno do corpo... qualquer corpo nu, de roupas e de cheiros, é mais belo que qualquer outro adornado de Prada e a cheirar a Channel 5...

Cristina Gomes da Silva disse...

Eu gosto de estevas!

JJS disse...

Estivesse pois feito creme...
Beijo
*jj*

Carla disse...

eu gosto de estevas, mas não conheço o creme...mas se dura, dura, dura...é certamente uma boa opção...
gosto da forma serena como descreves as coisas, por isso gosto tanto de passar por aqui´
beijos

CCF disse...

Quem sabe, um dia dedico-me aos cremes, poções e chás e depois convido-vos a todos para uma prova/demonstração!
Abraços quatro
~CC~

João Torres disse...

Quem sabe se não te vemos ainda um dia de saltos agulha e de verniz vermelho?

Bjs
João

Anónimo disse...

Ao contrário da mana nasci cigana, tenho um fascínio por adornos, folhos, crucifixos, exaltação, vermelho, luz e imaginação. Talvez seja porque o meu interior não se abala, não sente convulsão, vísivel. Admiro o despojamento, mas cada cada pérola e cada missanga e cada côr, trazem-me a minha africanidade perdida. Lamento admitir e chocar os mais puros, mas sou toda eu negritude, adoro enfeitar-me. As vezes saio de casa e entro e ninguém viu a não ser eu, e gosto tanto desses dias, como de todos os outros.
Envio aqui o link da Xana dos Rádio Macau com a Canção de Amor, onde apesar da imagem sofisticada é toda ela pureza e despojamento. Usando creme de esteva talvez. T
http://br.youtube.com/watch?v=yqfJoTHmCZg

CCF disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
CCF disse...

João, João...só na tua imaginação...e mesmo assim não sei se fico bem!

T, destas diferenças é que o mundo se enriquece. E agora sou muito menos radical, até faço de quando em quando umas pinturas faciais :))))

Anónimo disse...

Bem... tanto a dizer depois do que li hoje. Acho que mais ainda há tanto a pensar.
Creio que a conheci nesse outro tempo... e que a vi transformar-se como uma borboleta, primeiro bichinho da seda. Tudo belo.
E fiquei maravilhada porque depreendo que esta capacidade de encantar pela escrita é de família.
Quando for grande queria escrever assim... :)

Beijinhos,
Madalena.

Rui disse...

Curioso ter vindo aqui parar.
Andava a escarafunchar na net "pomada de esteva", "creme de esteva", "bálsamo de esteva" para ver o que diziam, propriedades, etc.
Porque aqui a história é ao contrário...
Estive a fazer cremes para consumo da casa, de esteva, erva de s. joão, alfazema, rosmaninho, com base em plantas maceradas em azeite, que depois são coadas, e com esse "azeite aromatizado", cera, manteiga de cacau, às vezes própolis, às vezes óleos essenciais, às vezes mel (depende da inspiração) e resolvi vir ver o que andava de facto a fazer e se havia mais gente a brincar a isto.

CCF disse...

Ena Rui, tanto tempo depois...o seu comentário, uma surpresa. Adorava aprender a fazer essas coisas, continuo a ter grande admiração por produtos naturais, só deixei de detestar quem não lhes vota esse gosto. Fez-me ter saudades de escrever na ardósia.
~CC~