Vi o filme no regresso de África, aqui no cinema (Charlot) do bairro que é simultaneamente o melhor cinema do mundo. Tinha muitas saudades de cinema, embora em Benguela tivesse visto um filme ao ar livre, num cinema, confesso, ainda mais bonito que o cinema do meu bairro. Contudo a sua beleza esfumava-se na fraca assistência, nos filmes sem estrelas e no uso frequente do palco para concursos de misses. Ora, o melhor cinema do mundo tem que se fazer de muitas coisas, entre elas um cartaz de qualidade acima da média.
Volto aos " Fantasmas de Goya" por causa dos fantasmas que o filme revolve no interior de Goya, na forma como eles atravessam toda a vida dele, regressando sempre para lhe mostrar o quanto um grande pintor é assim tão frágil como ser humano. E volto aos fantasmas por causa do Papa. E é Espanha no horizonte, país de sangue quente e controverso, de história pautada por conflitos vários, tão próximo de nós e ainda assim tão distante. O papa desligou-se do presente e do futuro e fugiu para o passado para beatificar aqueles que num momento terrível da guerra civil espanhola foram humilhados. Outros morreram também, tão injustamente como eles, e pelas mãos da igreja católica. Nos "Fantasmas de Goya" há uma rapariga que num restaurante recusa comer carne de porco por não a apreciar. Será acusada de ser judia, é humilhada e enlouquece gradualmente na prisão (para além de lá dentro ser repetidamente violada por um padre). Escusado dizer que a rapariga de judia nada tinha.
Não está em causa a injustiça do sangue que nestes casos se derrama de forma insana num e no outro lado da barricada. Não está em causa que o olhar do Papa possa ser condicionado pela religião que o molda, talvez se pudesse exigir um pouco mais, mas ainda assim é compreensível que queira chorar os mortos que acha seus. Mas uma coisa é que os chore, outra é que gaste mais tempo nestas lágrimas do que nos conflitos que dilaceram o mundo.
Está em causa que o Papa, em vez de olhar para o futuro, se satisfaça neste olhar para o passado, nesta missão adulterada do sentido da sua existência, nesta participação inútil no revolver da memória de um povo. No respeito e curiosidade pelos que pautam a sua vida por uma qualquer fé, mais valia que este fosse o tempo de enterrar os fantasmas e olhar pelo futuro.
http://axasteoque.blogspot.com/2007/10/os-fantasmas-de-goya-de-milos-forman.html
onde também se faz um comentário realmente cinéfilo ao filme.
2 comentários:
Absolutamente sublime este paralelismo que fazes entre "Os Fantasmas de Goya" e a mise-en-scène papal para eterna absolvição do franquismo (e a Espanha e nós aqui tão perto a contas com a memória). A propósito do olhar para o passado e para o futuro é impossível não recordar também Goya do Jorge de Sena, na carta-poema aos seus filhos:
"(...)
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram."
Concordo contigo. O Charlot é o melhor!
Abraço
JJS
JS, "para eterna absolvição do franquismo" não sei se é...simplesmente não se vê a oportunidade e pertinência de tal gesto. Obrigada por teres vindo e toma abraços do Sado.
~CC~
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