quarta-feira, julho 30, 2008

Pousio

No tempo em que a minha aspiração profissional era a agricultura costumava apreciar uma terra sem nada, em pousio, coisa que agora, nos tempos da agricultura intensiva, já não se usa. Não era uma terra vazia, era uma terra à espera do momento das sementes e das primeiras chuvas.


Também eu preciso de um tempo assim, de pousar as palavras no silêncio e de deixar que o corpo tome conta de mim.


Voltarei, quando as palavras, de tão sumarentas e maduras, precisarem de se soltar na ardósia, na ardósia azul. Agora pousio.
~CC~

terça-feira, julho 29, 2008

Perguntas intímas (I)

Decifrar em cada vida uma palavra tão curta como o amor pode ser uma tarefa de sucesso incerto e sem fim à vista. Não obstante a tarefa me parecer impossível, continuo a tentar compreender como acontece e como morre ou permanece, interessa-me sobretudo entender o modo como a sua luz pode brilhar tanto e tanto tempo como a de uma estrela.
~CC~

domingo, julho 27, 2008

Memórias com voz (II)

O mar da minha infância morava ao meu lado e podia sentir-lhe o cheiro mas era feito de distância, um tapete líquido chamado baía de Luanda, bilhete postal que toda a vida ficou dentro dos olhos da miúda que eu fui.

Raramente se ia à praia, tenho três ou quatro idas dentro da minha memória. Além delas, um acampamento num lugar mágico, nele corria um rio pequenino para o mar e os caniços que cresciam lá eram tão grandes e altos que os caranguejos, também enormes, se passeavam vagorosamente por eles, como equilibristas de circo. Ir à praia e mergulhar no mar não era coisa que o meu pai pudesse acarinhar para os filhos e muito menos gastar nisso o seu tempo, preferia o sol na sombra de livros nas esplanadas e disso a infância está cheia, de longos tempos de observação do mundo nas esplanadas e no interior dos cafés, onde as ventoinhas de tecto giravam incansavelmente a tentar afastar o calor imenso das tardes.

Ontem com as minhas crianças, embora chamar-lhes assim já me custe (de tão crescidas que estão), fui elogiada por ser a única adulta da família que entra na água com elas, isto é, bem depois delas que entram mal poisam o pé na areia. Não pude deixar de pensar nessas infâncias de sequeiro que todos tivemos, mais estranhas ainda pela proximidade do mar que tínhamos, mas era difícil explicar-lhes isso, como as infâncias líquidas delas são tão diferentes das nossas.

Investi depois nesse prazer que a infância não me deu e um banho de mar desperta na minha pele um efeito de contentamento só igual ao de um grande e apertado abraço.
~CC~

sexta-feira, julho 25, 2008

Notas da Viagem a Itália (III)

Cartaz do seminário numa das paredes do hotel
~CC~

Notas da Viagem a Itália (II)

Arezzo, 19 de Julho, 8h da manhã


quinta-feira, julho 24, 2008

Notas da viagem a Itália (I)

Há pessoas que viajam com uma pequena mochila e desconhecem por isso as longas esperas nos tapetes de bagagem, há quem não corra atrás da "first bag", sempre admirei estes quase passáros, muito embora pareçam demasiado desligados da carga simbólica que os objectos têm. Ora dentro das nossas roupas estão os nossos cheiros e os nossos livros transportam as marcas dos nossos dedos, e disso não posso desligar-me.

Outras pessoas impressionam pelas malas pesadas e enormes que levam para três ou quatro dias como se a sua estabilidade dependesse do número de coisas que conseguem trazer de casa. Nunca irão nem vestir nem usar metade dos objectos que transportam e o peso excessivo atrapalha-os nas escadas rolantes e nos longos corredores dos aeroportos. Acreditam demasiado nos objectos e dependem deles.

Procurei levar para quatro dias uma mala pequena e flexível e comigo apenas uma pequena mochila com três ou quatro objectos, nos quais não se incluia nem um de higiene pessoal, nem sequer uma escova de cabelo. Isso não seria problemático se minha mala tivesse chegado a Itália, mas ela ficou no aeroporto em Lisboa. Acresce que nesse mesmo dia tinha que viajar para 300 Km a norte de Roma, para Arezzo e depois Cortona e não pude esperar pelo voo seguinte. Pedi que a deixassem em Lisboa, mas responderam que o procedimento era o de a enviar no avião seguinte, a inflexibilidade da burocracia é ainda uma coisa que me espanta. A mala passou assim três dias em Roma sem mim e eu passei os mesmos sem ela.

Na primeira noite não tinha nada mesmo a não ser a roupa que trazia vestida e o hotel era tão fraco que em nada ajudou, experimentei o que é um banho só a água, um cabelo molhado completamente despenteado e uma roupa interior mal seca por ter sido lavada na noite anterior.

Ao início fiquei perdida sem nada de meu e sem ter nada para substituir. Depois deram-me meia hora para comprar o mais urgente, mais exactamente das 9h às 9h30 porque iríamos viajar para o seminário e esse era longe de tudo. Comprei quase nada, as minhas coisas durante todo esse tempo cabiam na minha pequena mochila. E depois da falta do primeiro dia, deixei de pensar nelas e percebi que era mais livre do que eu própria pensava e que precisava de muito pouco. É claro que quando as minhas colegas mudavam a segunda vez de roupa no dia, descendo vaporosas para o jantar, sentia uma certa inquietação, acompanhada do sentimento de ser a mais feia e mal vestida da sala, mas depois de cinco minutos de conversa e das primeiras garfadas de pasta e de chianti, só me dava uma imensa vontade de rir.

Depois fui buscar a mala no dia da partida para Lisboa, mas como estava retida nas chegadas, saí com ela como se naquele momento tivesse chegado a Roma. Cheguei duas vezes a Roma numa só ida. Mas Roma lida ao contrário é outra coisa, uma coisa boa a que se pode chegar mais do que uma vez, e então pensei que era esse o sentido e voltei feliz.
~CC~

quarta-feira, julho 23, 2008

Uma flor para a ~CC~


Pediu-me, esta tarde, que a ajudasse a por um céu na Ardósia!

Apressado, como sempre (deveríamos ter muito mais tempo para os amigos como a ~CC~), disse que não tinha tempo, mas que poderia tentar mais logo em casa, se me enviasse os dados por e-mail!

Mandou, e tentei...

Fui avisando que com os dados poderia também publicar em seu nome e ela, ingénua, confiou em mim e disse que sim, que podia publicar uma mensagem...

Agora sinto-me como um ladrão em casa alheia, que pode meter no saco qualquer objecto de que goste...

Apetece-me levar os textos todos lá para onde ninguém os lê, mas tenho a sorte de já ter por lá alguns que foram dados e não roubados e é desses que eu mais gosto!

Procurei no fundo do saco e encontrei um flor para deixar aqui nesta Ardósia dos textos lindos juntamente com um beijo para a dona antes de fechar a porta deste lugar cheio de magia e palavras lindas que a ~CC~ agrupa como mais ninguém.

João

terça-feira, julho 22, 2008

Mulheres livres (II)

Esta mulher esteve presa muito tempo mas creio que sempre foi livre. E agora, mesmo livre, nunca o estará totalmente, está no momento presa pela esquerda e pela direita e todo o espaço que tem parece reduzir-se, oprimido entre mundos cuja separação feita desta forma já não faz sentido. Ela, no entanto, parece querer conquistar agora uma outra liberdade, a de poder ser quem é.

Para a esquerda, Ingrid é rica e burguesa e excessivamente católica, para além de não mostrar grandes marcas do seu sofrimento em cativeiro, o que até torna possível pensar que terá sido beneficiada entre os prisioneiros. Mesmo a esquerda que aplaudiu a sua libertação começou a bater palmas mais silenciosamente quando a viu junto do presidente francês, não só porque ele é considerado de direita como porque uma mulher como ela não deveria mostrar-se junto a políticos, junto ao poder (mesmo que eles tenham sido importantes na sua libertação). O poder é, nesta visão do mundo, uma coisa contaminada em si mesma.

Para a direita Ingrid não é confiável, mal agradeceu a sua libertação ao presidente da Colombia foi logo dizendo que isso não a tornava refém da sua estratégia política. Para a direita, ela pode bem ter cooperado com as FARC em algum momento, para além disso é uma mulher que se casou duas vezes e que não parece presa neste seu último casamento, anda por todo o lado sem o marido. É uma católica da linha dos movimentos de libertação da América Latina e estes são tudo menos bem vistos no Ocidente Católico de hoje.

Acresce que para os colombianos que não gostam dela, ela é francesa. Já para os franceses que não gostam dela, ela é colombiana. Dizem que fala e se mostra demais, que conta histórias, que dorme em hoteis caros. Tudo serve para a denegrir e o modo como as notícias são fabricadas é demonstrativo, veja-se como os títulos são sugestivos: Ingrid Betancourt está de férias com os filhos nas Seychelles. Há gente que nunca vai ler o resto desta notícia, ficará sem saber que ela viveu lá durante um período e que foi aí que filha nasceu, que foi a convite do presidente das Seychelles, a maior parte das pessoas pensará que Ingrid já foi para umas férias milionárias.

Ela é inclassificável e disso eu gosto, não sei dizer se ela é uma mulher livre, mas que parece, isso parece. E isto é o que eu penso hoje, não a tenho obviamente sob vigilância, até porque vigiada ela já foi demais, mas estarei aberta a ver outros lados desta mulher, se eles me parecerem passíveis de crítica, mas até agora não vi.
~CC~

sexta-feira, julho 18, 2008

Agenda(s)

Em agenda ficam as memórias com e sem voz (II) e as mulheres livres (II) e outras notas soltas que trarei da viagem que inicio hoje. Daqui a nada já estarei no aeroporto de Roma e daí até à pequena vila a 100km de Florença que acolherá educadores de vários países que querem formar uma rede internacional para educar para uma Cidadania Global. Segundo sei, virá gente de Malta e da Palestina e de países outros que não apenas os dos circuitos dos países do poder. Não vos sei explicar porque é que nos acolhemos em Itália, agora que os seus rumos parecem tão arredios do acolhimento da multiculturalidade. Mas há muito aprendi que os povos não se espelham completamente nos seus governos, que há muitas verdades dentro de uma só.

Em agenda também a arrumação das ligações virtuais a outros amigos, desde o JR Marto à Clorinda que mudaram de casa e a alguns outros que têm chegado recentemente. Que me perdoem esta desarrumação permanente, é o tempo sempre a escassear.

Cidadania Global o que é? Como a definir? Servirá para alguma coisa lançar conceitos novos num mundo tão saturado deles? E redes, valerá a pena mais uma? Vou escutar, uma das minhas tarefas permanentes na agenda.
~CC~

quarta-feira, julho 16, 2008

Mulheres livres (I)

Elas segredavam uma para a outra: já deve ter outro namorado. Questionei-as directamente: de quem falam vocês, é de mim? Que não, que não era. Resolvi brincar, sabendo a indignação que ia suscitar: então é de uma de vós?! Se tivesse pensado duas vezes não diria nada para não ter de ouvir o que se seguiu.

Elas eram duas mulheres bem casadas, que amavam os maridos e que esperavam ficar com eles para sempre. Tinham filhos lindos, encomendados a Deus menino e menina e Deus ouviu-as e brindou-as com um casal. Estas mulheres nem sequer eram afectadas ou especialmente religiosas, mulheres normais de classe média e profissão liberal, mas com o mundo do tamanho do seu quintal. A felicidade em família e a profissão conquistada, os trunfos apresentados, as grandes conquistas.

Está tudo certo mas há qualquer coisa que lhes falta em chama, em viagem, em experiência. São mulheres lisas, direitas, feitas à medida. E custa-lhes compreender as outras, mesmo não querendo, escapa-lhes aqui e ali um comentário de gozo, um olhar de soslaio, o traçar de uma fronteira entre elas e as outras. Elas são as mulheres casadas uma só vez, as da escolha certa, as do ideal do amor companheiro, elas não falharam. Elas não são as namoradas nem as amantes, elas são as mulheres, as esposas, as companheiras.

Por um momento oiço outra vez a minha filha a dizer "eu disse à professora que quem me tinha arranjado aqueles folhetos tinha sido o namorado da minha mãe, e a professora muito atrapalhada corrigiu: pois, um familiar".

É este ainda o mundo em que vivemos, um mundo em que as mães ainda não podem ou não devem ter namorados.
~CC~

terça-feira, julho 15, 2008

Memórias com voz (I)

Há certos naufrágios que o Verão nos traz à memória, lembro os teus olhos como navios perdidos, como bandeiras de aceno cujo código não sabia interpretar, como um adeus que eu ainda não sabia ser para sempre. Nunca compreendi os teus olhos nem as tuas palavras, e não tenho a fotografia deles, por isso pinto-os feitos um céu de fim de tarde de Junho, um céu limpo cruzado pelo voo das andorinhas. E arrumo esses teus olhos belos na gaveta dos amores perdidos.
~CC~

Memórias sem voz (I)



A senhora branca e loira, de olhos claros, deixou à guarda do rapaz africano o seu bebé pequenino para ir tirar o curso de datilografia, uma possível futura ocupação que não deixaria envergonhado o seu marido, já um graduado e aspirante a comissário de polícia. A menina, igualmente branca e loira, tomou os seus biberons da tarde nos braços negros e no colo do rapaz, um par improvável para uma Angola dos anos 60, mesmo no limiar da eclosão dos movimentos de libertação. O que bebeu com esse leite e com esse colo não está na sua memória, nos seus sonhos ela bebeu aí o gosto imenso pela vastidão das paisagens ou pelo que também poderia chamar liberdade.


~CC~

segunda-feira, julho 14, 2008

Ficar ao pé do mar

Parece uma ideia mórbida esta de pensar na nossa morte. Há pessoas que durante toda a vida nunca pensam nela. Já a imaginei como a liberdade mais plena, mas agora só a associo a escuridão e portanto à prisão imensa do nada. Outros pensam insistentemente na sua morte, deixando recomendações claras, e entre esses, estão sobretudo aqueles que querem as suas cinzas no rio ou no mar. É como se eles fossem uma tribo, um conjunto de gente que só se irá encontrar entre a água sal ou entre a água doce, quando deles restar apenas a pequena partícula do eu que foram. Não me conto entre eles.

Até ontem não conhecia ninguém que tivesse para a sua última morada o mesmo desejo que eu. Mas se ela apareceu tão diferente de mim dentro do filme*, quando pediu agonizante ao seu amor que levasse o seu corpo para o pequeno cemitério com vista para o mar, não quis acreditar que aquelas suas palavras eram iguais às que eu própria já tinha pronunciado. Quero morrer muito velha, mas quero uma vista linda para um mar azul. E não é por engano que lhe acrescento azul, mas sim porque há mar de muitas outras cores, eu própria já estive dias e dias junto a um pedaço de tom castanho.

É claro que também serei infinita pequena partícula de nada, mas ainda assim perto do mar.
~CC~

* Paciente Inglês, comprado para revêr após todos estes anos e a preços tão módicos no supermercado que não queria acreditar que a fita fosse mesmo feita de imagens-movimento.

quinta-feira, julho 10, 2008

Nascer

A minha rua em Luanda, o ano passado, afinal tantos anos depois.

Nascemos muitas vezes ao longo da vida, também nos sentimos morrer por vezes, no tormento de uma solidão que nessa altura é maior que todas as outras. E nascemos a cada encontro, como hoje, na mesa do ninguém lê*, em que se sentou connosco um poeta, todo ele construido da simplicidade com que me parece amar as palavras. É bom nascer mais um bocadinho, porque cada outro com que o encontro se tece, é sempre também mais um lado qualquer de nós a descobrir o mundo.

Mas há há um lugar agarrado a nós em que nascer foi a primeira inscrição da geografia sobre o nosso corpo, marcas que os nossos dedos não conseguem tactear e que moram entre a derme e a epiderme. Penso às vezes nesse nascimento das pessoas com as quais me cruzei já adultas, penso na infância delas e nas crianças que foram e espreito-as dentro dos olhos, como se pudesse voltar com elas ao lugar onde nasceram. E às vezes volto.
~CC~

* Girafa cor de rosa e Deep, senhoras da Geografia do Norte, ficaram presas nos seus afazeres. Sabemos que não era grande dia para a Sardinhada, mas foi assim. Um dia poderemos talvez sentar-nos convosco num outro lugar, certas que nesse encontro, nascer será também a palavra adequada para referir este modo como nos movimentamos uns com os outros, uns para os outros.

quarta-feira, julho 09, 2008

Verão que (me) tardas



Entre tantos dias de ritmo intenso este chega hoje com um certo sabor a festa, como se de repente entre todos os sabores ganhasse o vermelho adocicado das cerejas. Chegaram ao fim os dias de viagem de estágio em estágio, vividos entre momentos de grande alegria e preocupação intensa. Pequenos pedaços foram quase tudo: a peça representada pelos jovens com défices cognitivos profundos da APPACDM; os três idosos vestidos a rigor e brilho que vieram cantar letras da sua autoria, a poesia popular a sair decorada sem custo dos lábios das idosas a quem a vida (quase só) chega através do serviço de apoio domiciliário; as despedidas que muitos fizeram na sinceridade de uma saudade que já começa.


Este Verão não me parece ser, nunca a escola esteve assim frenética em Julho, nem o meu coração fervente de emoções e desafios balançou e bateu tão manso de cansaço que quase não o consigo ouvir. Nunca as letras pararam tão devagar nos dedos e os romances do ano esperaram tanto para ser lidos. Nunca, como este ano, deixei de renovar o guarda roupa com uma nova cor ou feitio da estação, nem de cortar o cabelo um pouco mais curto.


Este Verão não parece ser, o mundo estremece entre a libertação de Ingrid e o preço do barril de petróleo, enviam-se mandatos de captura internacional, encerram-se processos judiciais de grande aparato, os deputados parecem não querer largar o debate sobre o estado da nação, as pessoas correm ainda pelas cidades.


Só o chapéu de sol laranja que abriste para dar sombra ao quintal parece ser um sinal de que é Verão. E é por ele que me vou guiando, na esperança de ainda conseguir apanhar as noites de calor e lua deslumbrante.

~CC~

segunda-feira, julho 07, 2008

Reservas de céu estrelado

Às vezes agrada-me aquela voz ciciada com que o Eduardo fala no programa da Antena 1: "Os dias do avesso". Desta vez o assunto pareceu-me da máxima importância. Dizia ele que o céu foi recentemente considerado património da humanidade, não um céu qualquer, mas o céu estrelado. A poluição luminosa aumentou tantos nos últimos anos que as grandes cidades são focos que emanam luz e tapam as estrelas. Como esta tendência de iluminar a electricidade todo e qualquer canto não irá diminuir tão cedo, há já propostas em cima da mesa da UNESCO de guardar pedaços de terra iluminados só a luz de estrelas. O primeiro lugar é um monte escuro algures na Nova Zelandia, é aí que querem construir a primeira reserva de céu estrelado. Dizia ele, com a sua doçura e o pensamento sempre nas crianças, que assim podíamos levar os nossos filhos a ver o céu que nas cidades já não conseguem ver.

Lembro-me então do teu monte no Alentejo e do Petromax à luz do qual jantavámos tantas vezes para poupar a energia do gerador. Invariavelmente se seguia o passeio pela noite que só parecia escura até vermos o imenso céu estrelado por cima de nós. Elas eram tão grandes, tão brilhantes que ocupavam os nossos olhos por inteiro em desenhos que procuravámos compreender. E as palavras tornavam-se mais redondas e mais doces e o sono chegava muito mais cedo. Curei tantas feridas entre os dias nos campos de estevas e as noites de estrelas.

Não sei se me agrada esta ideia das reservas de céu estrelado. Penso que qualquer dia todas as coisas de que realmente gostamos estarão em reservas e o resto do mundo será um lugar inabitável.
~CC~

PS- Inicialmente troquei os "Dias do Avesso" com O "amor é" este último é da responsabilidade do Júlio Machado Vaz, um homem a quem os anos não gastam a voz e o interesse. Que fique a correcção, não obstante o cansaço destes dias.

sexta-feira, julho 04, 2008

quinta-feira, julho 03, 2008

A construção do amor e outros edifícios(III)


Jaime era um homem bem parecido, com uma voz bonita, e muita confiança em si mesmo. Mal acabou a faculdade conseguiu o emprego que queria, nele a sua voz brilhava como uma peróla. A carreira correu quase tão bem como o amor. Hoje pensa que encontrou cedo demais a mulher que procurava, era ela, mas chegou muito cedo. Casou com ela mal se estreou no primeiro emprego e os filhos chegaram pouco depois, duas meninas lindas, com quatro anos de diferença. Ela era uma mulher alta e um pouco redondinha, mas os cinco quilos a mais davam-lhe graça, enchiam-lhe as covinhas do sorriso mais bonito que alguma vez tinha visto. Era activa e bem disposta, quente e lunar. Uma pessoa pode ter tudo isto e perder? Sim, diz Jaime, foi exactamente o que ele fez. Olha para mim e nem o reconheço, é sombra dele próprio. E porquê, porque é que perdeste o que tanto amavas? E ele diz o que já antes ouvi da boca de tantos homens: por estupidez, por mera estupidez. É este o nome que alguns homens dão à traição, não conseguem sequer pronunciar a palavra, é como se dentro dela estivesse uma ofensa virada contra si próprios.

Óscar tinha sido sempre o patinho feio, o tipo de homem com que nenhuma de nós sonhava estar, desde que nos tinhamos cruzado no pátio da escola até os anos todos em que ele nos aparecia sempre em algum lugar, soprado pelo vento leste. Quando pensavámos em beijos impossiveis, pensavámos nele: e o Óscar, já pensaste beijar o Óscar? Cruzes, canhoto! Casou com uma rapariga muito pequenina e magrinha, tão envergonhada, que nunca lhe ouvimos palavra. Nunca lhes conhecemos crianças. Com a maturidade passámos dos comentários parvos de miúdas aos preocupados. Imaginava o Óscar e a mulher nas mesmas operações dificeís que alguns dos meus grandes amigos: os corpos são escortinados a pente fino, despidos de toda a intimidade e o sexo é reduzido a um mero exercício de reprodução. Ontem o Óscar escreveu-nos um e-mail, nele diz que chegaram os dois filhos dele, um com quatro e outro com seis e que será ele a pedir licença de maternidade pois a sua menina mãe está a acabar o seu projecto de investigação e ele não vai deixar que ela o abandone. O Óscar, quantos beijos não valia afinal o Óscar!

Estes dois homens talvez existam ou não, talvez tu os conheças também.
~CC~

terça-feira, julho 01, 2008

Sobre o medo...

Foto do JVT, no Ninguém lê

Respondendo a desafios, vencendo o medo em http://ninguemle.blogspot.com/search/label/desafio3


E vale a pena o desafio, parece que o prémio é universal e do tipo "Sardinhas junto ao Sado".
~CC~