segunda-feira, abril 23, 2012

Bichos e homens


Das coisas mais belas que há é ver um elefante a passear pela Savana. Eles andam devagar, baloiçando a tromba, brincam com pequenas coisas e raramente se zangam, têm tempo.

Das coisas mais belas que há é ver um golfinho assumar num estuário azul, as suas voltas e saltos são um hino ao próprio azul água.

Das coisas mais feias que há é ver um rei a caçar elefantes, por ser um acto inútil que não enobrece.

Das coisas mais feias que há é ver um golfinho arrastado por uma rede matreira, é uma morte que não matará a fome a ninguém.

Não acho os homens mais importantes que os animais, mas há sem dúvida animais mais importantes que certos homens.
~CC~


 

domingo, abril 22, 2012

Ricos tão pobres


Sábado de manhã na esplanada de um dos bairros melhores da cidade. A mesa está repleta de casais entre os cinquenta e sessenta, bem vestidos, eles e elas, como se fossem à missa. Se calhar até foram. Trocam jornais e revistas entre eles. Aproxima-se o casal de ciganos, muito jovens, vendem camisolas. Elas viram e reviram as camisolas levantando a voz como não era suposto na sua condição. Tratam o cigano jovem por tu e com enorme arrongância: Vai lá à carrinha e traz-me outra cor! Não te tinha dito que para a minha neta era um S?!
O cigano não é apenas bonito, bem arranjado, é também bem educado. Responde-lhes com suavidade, quase doçura, fazendo-lhe todas as vontades. O modo como elas lhe passam as notas para a mão sem sequer olhar para ele é ultrajante. A rapariga cigana, também muito bonita, não abre a boca, tem uns olhos grandes e doces e vai ajudando o rapaz.
Os homens não dizem nada, indiferentes à mercadoria e ao frenesim das mulheres.
São todos tão pobres.
A nobreza, essa está com o casal de ciganos.
~CC~



sexta-feira, abril 20, 2012

A metade de mim


A metade de mim que ama as cidades deixou-se tocar pelo entardecer doce de Lisboa. Essa metade pensou mesmo começar uma nova vida e perdeu tempo com alguns anúncios de aluguer de casas para arrendar. Alguns andares nas zonas mais antigas estão a preços acessiveis. As árvores do Princípe Real e as limonadas do quiosque prendem-me mais e mais e deixo-me ficar. Nem me importo de estar sozinha enquanto praticamente todos à minha volta estão em grupo, alguns são pares. Sou só eu e os meus olhos tontos a beber cada andorinha que volteia.

A outra metade só pensa numa casa branca no Alentejo, uma casa para envelhecer à lareira, absurdamente cheia de livros e com espaço para ampliar a colecção de caixas.

Serei apenas eu a única a ser feita de metades contraditórias em aparente harmonia?

~CC~

domingo, abril 15, 2012

Agenda de cheiros (1)

As laranjeiras em flor nas ruas de Sevilha. No fim da tarde, o odor tornava-se mais inebriante e intenso e sentia como boas as tonturas ligeiras que me aconteciam.
~CC~

sábado, abril 14, 2012

Coração parado.

Nada me intriga mais do que os corações que param de repente. É talvez uma morte rápida, sem tempo de lágrimas, sem medo, mas é brutal para todos os que ficam.


Nunca pensei que pudesse acontecer-me, sinto o meu coração incansável, quase nunca me salta do peito ou faz qualquer ameaça, bate apenas um pouco mais depressa quando sinto medo. Mas no outro dia o meu coração parou dentro de um pesadelo. Acordei nesse momento e estava viva mas o coração queria fugir-me do peito, ainda o sentia palpitante. No meu pesadelo morria quem eu amava e o meu coração parava. Soube então porque podia ele parar de repente.


~CC~

sábado, abril 07, 2012

900

Novencentas vezes aqui com os dedos.

E uma dor nas asas. Nasci com elas, que fazer? Quando não as uso tanto quanto devia, cresce a ansiedade, os olhos gastos pelas mesmas paisagens, o coração apertado, a cabeça cheia.

Novecentas vezes, muitas felizes e outras não tanto. Cabiando...

Livre sempre, não obstante não usar ainda o suficiente estas asas.

~CC~

sexta-feira, abril 06, 2012

Saudad(inha)



É aquela saudade sem dor.

~CC~

Primavera

O desafio dos dias escuros.




~CC~

quarta-feira, abril 04, 2012

Os mais velhos

O mundo tem abandonado mais e mais aqueles que envelhecem. Esses sem acesso à Internet, sem dedos para as máquinas que cospem bilhetes no metro, nos comboios e até nas portagens, sem olhos para ver nos écrans os horários das partidas e das chegadas, para consultar os mapas e avisos em letra pequenina que inundam as cidades. Só a publicidade usa letra grande. Ninguém se lembra que as capacidades mais correntes vão diminuindo com a idade. Os serviços do Estado são os primeiros a abandoná-los.


Ontem um senhor, na casa dos 65, queria obter uma declaração da caixa geral de aposentações na loja do cidadão de Faro. Mas só há duas lojas que têm delegações da CGA: Lisboa e Porto. A funcionária dizia que era simples obter a declaração via Internet, coisa que obviamente o senhor não tinha. Solução: ir a Lisboa, isto para obter uma simples declaração. Igual para a minha mãe, cuja pensão não chega há três meses. Tirando a Internet, existe a solução dos anos 1980 - ir a Lisboa. Parece simples, excepto quando a pensão é diminuta e se tem 83 anos. Para que lhes prolongámos a vida se a vida que lhes damos nada mais é do que um simulacro?

Não acabaria aqui esta história, tenho muito mais. No outro dia organizei com os meus estudantes um lanche com idosos. Disse-me o responsável pelo grupo que não poderia deixá-los chegar à mesa e tirar o que queriam. Teria que organizar mais ou menos uma merenda para cada um, como se faz com os miúdos muito pequenos. E disse-me em voz baixa e quase envergonhada que tiveram que aprender a fazer assim no Centro de Dia. Os problemas eram vários, entre eles, os idosos que levavam a mala/saco para colocar lá dentro a comida que tiravam da mesa e lhes servia depois de jantar. A contenda em torno do que cada um comia a mais do que o outro. A dureza da vida miserável a incentivar os sentimentos mais mesquinhos.

~

As pessoas vivem, contudo, em média, mais vinte anos do que antes viviam. Mas que vinte anos são esses?

~CC~