terça-feira, março 31, 2009

Sem palavras

Moçambique, Novembro de 2007


Estava sentada naquela pequena sala da faculdade em Lisboa a tentar explicar porque é que 2007-08 tinha sido um ano nulo do ponto de vista da evolução do meu trabalho académico mas tinha sido um dos mais ricos da minha vida. E dizia-lhe: é que fui a Angola, Moçambique e Cabo Verde. Mas ao dizer isto não dizia realmente nada. Devia ter-lhe explicado que por ter ido consegui compreender a notícia sobre a morte dos missionários no norte de Moçambique, aquela horrivel notícia sobre a população enfurecida ter encerrado três missionários numa palhota e lhe ter largado fogo. Explicaram que os missionários andavam a espalhar a cólera, embora eles distribuíssem cloro. Eu estive ainda mais, muito mais a norte.

Nesta família, que posa assim para nós em toda a sua integridade e à qual pedi autorização para a foto (procedimento obrigatório em África), apenas dois falam Português, o chede da aldeia e o rapaz mais jovem dos óculos escuros. Ele porque já não vive na aldeia mas na vila sede do distrito e foi à escola, apesar de a ter abandonado cedo para guiar o seu taxi. O chefe da família porque o intercâmbio com os portugueses no tempo colonial o obrigou a aprender, sabe o português coloquial, mas não sei se saberá escrever. A mulher só sorria e largou umas gargalhadas inesquecíveis quando lhe mostrei a foto no écran da máquina, nunca tinha visto nenhuma. Esta é a família mais abastada da aldeia e teve para connosco um acolhimento contido mas simpático.

Nesta aldeia como em tantas outras do norte de Moçambique as crianças não vão à escola e a economia local faz-se com meia dúzia de cabras colectivas, mangas e papaias que crescem abudantemente por todo o lado sem nenhum esforço e há às vezes uma horta colectiva ou pequenas hortas junto às palhotas. Aqui nesta aldeia também havia peixe, mas era quase todo comprado pelos comerciantes da vila que vinham esperar os barcos. Sim, é verdade, para quem percebe mal o Português é possível confundir cloro com cólera. Não é preciso por isso atear fogo às pessoas, pois não, não é. Mas quando nunca se saiu desta aldeia, nunca se foi à escola, nunca se conviveu com brancos (ou outras cores de pele), não se compreende o que nos procuram dizer, e se venera o feiticeiro local, as coisas podem extremar-se assim. É esta África que nos assusta e me assustou também, habituados que estamos à mediação pela linguagem e pela comunicação, sentimos por vezes que não temos modo de chegar às pessoas, de nos fazermos entender. Penso nos missionários que morreram com imenso pesar e penso igualmente com pesar naqueles que o fizeram, são mundos sem pontes os deles. E, no entanto, se nas aldeias havia junto às palhotas uma tenda, sabíamos que era uma ONG, fosse católica ou não. É louvável a persistência dos que vão, mas vão muitas vezes sem qualquer preparação que lhes permita uma abordagem intercultural do mundo.
~CC~

domingo, março 29, 2009

Entre azul e negro

Acontece-me andar com um pesadelo dentro de mim. E depois em vez de o sonhar, sonho outros igualmente maus. O homem que vinha roubar-te pela metade os legumes da horta, levava meia couve de bróculos, levava metade de uma alface, levava meia papaia. Deixava sempre as metades que não levava no parapeito da janela, mas como nem sempre as encontravas logo, elas ficavam cobertas de formigas. Eu a tentar dizer-te que só podia ser um ladrão bom, pois levava apenas metade do que roubava. E tu a dizer que não, que era uma forma de nos causar medo. E esperavas por ele escondido, sempre com uma tesoura de podar na mão.

Acontece-me não sonhar com o pesadelo que trago dentro de mim. Os dias que tenho levado a pensar no homem que deixou o filho dentro do carro. Os dias a viajar no horror desse episódio sem outra explicação que não seja a sombra que habita cada um de nós. As pessoas a dizerem que deveria ser encerrado num carro também e morrer do mesmo modo que morreu a criança. Eu a dizer-te: eu não conseguia perdoar a morte de um filho, eu nunca mais quereria ver este homem. E assim que as palavras saíram da minha boca o horror que senti de mim própria por não ser capaz de perdão. Eu tinha dito, as palavras estavam ditas, eu tinha acabado de as dizer à minha filha e ela tinha ficado num silêncio estranho que piorou ainda mais a forma como me sentia. Penso muito neste homem, no que as pessoas disseram, no modo como anunciaram que só a sua própria morte lhe podia trazer paz. Penso no desejo de morte que pode existir quando fazemos o pior possível a alguém que amamos, mesmo que essa intenção não tenha existido. Penso que não haverá sofrimento maior. E justifico este homem quando disse eu própria que não o perdoaria. Parece que era bom pai, quem sabe a pressão no emprego era terrível, estava provavelmente muito atrasado, os quotidianos hoje são aterradores...procuro em mim o perdão que não tenho, como se por o dizer aos outros, ele se tornasse verdadeiro dentro de mim. E do mesmo modo que me arrepio com a justiça popular, não consigo encontrar o perdão necessário.

Procuro afastar de mim o pesadelo, procuro um sonho bom, daqueles que nos apetece encomendar para adormecer. E apareces tu, a dizer que não tarda haverá rosas vermelhas pequeninas no quintal. Aparece a minha filha montada num cavalo branco, a sorrir muito e a dizer "mãe, já sei andar tão bem"...e queria segurar-vos assim nesse instante feliz e dormir a sorrir.
~CC~

quinta-feira, março 26, 2009

Coisas escritas na cidade (I)


Não consigo perceber como aparece o que eu sinto assim escrito em anúncios pela cidade.
~CC~

quarta-feira, março 25, 2009

Exiba os seus fãs!

Pronto, pronto blogspot, não insistas mais...vou trocar-te as voltas e digo que gosto destes:

http://sem-se-ver.blogspot.com/
Onde a música combina com sentido de humor e atenção ao mundo...

http://segundalingua.blogspot.com/
Belos e densos textos que me tocam, comovem, interrogam...

http://conto-de-fuga.blogspot.com/
Porque gosto de "raparigas da direita... "

É bom descobrir outros mundos para além dos muito conhecidos. E dos muito conhecidos há alguns que também gosto e outros que nem por isso. Entre os que mais gosto, de facto a "Terceira noite"(http://aterceiranoite.wordpress.com/) pela atenção profunda e cuidada que põe em cada coisa escrita, em cada visita que lhe fazemos há sempre alguma coisa aprendida.
~CC~

terça-feira, março 24, 2009

Democracia

O braço caído e os outros levantados. Os outros braços caídos e o meu a levantar-se. Foi assim nas duas últimas vezes, uma a seguir à outra. Não é ser sequer minoria, é apenas ser um pouco mais que nada. A ambiguidade dos meus sentimentos: o orgulho de conseguir erguer o braço sozinha; o medo de quando ele baixar ter a certeza que arranjei mais e mais sombra.
~CC~

segunda-feira, março 23, 2009

O meu nome é Vanessa (XVI)



Sei que pensas que não sei o que é a solidão porque aos 30 anos já tive sete homens, mas posso dizer-te, falar-te daquele ano de aridez absoluta em que deixei o meu corpo repousar das mãos masculinas que não sabiam amar. E olha que são poucas, mesmo muito poucas as mãos de um homem que sabem afagar uma mulher, escolher os lugares em que ela reage, marcá-los como quem marca oásis no mapa. As mãos de um homem sabem só do seu próprio corpo, não conhecem a diferença. Posso dizer-te que dos sete apenas dois tinham mãos que sabiam ver, o que não deixa de ser bom, a maioria das mulheres não conheceu nenhum.


Aos 24 anos tinha tido o cunhado violador, o marialva da fábrica, o rapaz enloquecido de amor e o homem névoa. Percebes que só queria descansar? E durante os primeiros meses a solidão era o nome da minha mais profunda alegria. Mas num dia que não sei precisar, o silêncio da casa levantou-se desesperadamente contra mim e só queria falar com alguém, só queria um abraço, queria-o desesperadamente, queria-o para existir.


Liguei à minha mãe mas assim que a ouvi falar do outro lado da linha, não fui capaz de dizer nada. Liguei à minha irmã que me disse que não podia falar, que ligasse mais tarde. Liguei para o rapaz que me tinha amado mas disseram que o número não existia. Liguei para uma linha de ajuda e disseram que dentro de momentos atenderiam a minha chamada. Desliguei.


Hoje, talvez te ligasse a ti. Tu virias?

~CC~

domingo, março 22, 2009

A despacho


Ordenei a legislação da matéria em estudo por períodos dos nossos 34 anos de Democracia. Não gosto particularmente deste material, e tardo sempre em pensar como o irei ler ou usar. Por isso, fechei o dossier, convencida de que podia dar os parabéns a mim própria só por o ter feito. Mas intimamente sabia que era quase nada o que tinha produzido. Deve ter sido esse o incómodo que me fez sonhar a noite inteira com Diários da República, abria dossier e dossier de modo frenético e lia e lia, assinalando as assinaturas finais de cada decreto e sublinhando isso no meu quadro de governos/legislaturas. Até que num deles era clara uma assinatura original; vinha assinado por Deus. O espanto ou o susto foi tanto que acordei.

~CC~

sábado, março 21, 2009

Poesia

- Mãe, o que é um poeta?
- É alguém que faz poesia.
- Mas porque é que ele a faz e os outros não?
- Porque tem os olhos maiores e mais abertos.
- Mas há pessoas com olhos grandes que não são poetas!
- Porque têm os ouvidos grandes, capazes de ouvir muito bem.
- Oh mãe, esses são os músicos...
- Pessoas com o coração transparente?! Achas que pode ser?
- Não, esses estão sempre a chorar.
- Pessoas que estão sempre a ver tudo por dentro?
- Esses são os Psicólogos! E tira-se um curso para aprender...
- Então não sei, a poesia não tem explicação!
- Isso sim, é uma boa explicação.
- Dizer que não sei é uma boa explicação?
- Sim, há pessoas que acham que sabem tudo, há coisas que não podemos saber.

~CC~

quinta-feira, março 19, 2009

Quem lá vem...



" Queríamos mão de obra e chegaram pessoas"

Fernando Alves (esta manhã nos seus sinais na TSF), referindo como autor da frase alguém cujo nome não fixei, talvez porque a frase é tão poderosa que fez eco cá dentro.

~CC~

segunda-feira, março 16, 2009

Dias


O pessegueiro mostrou as florinhas rosa que aconchegou durante o Inverno. O lírio branco veio à frente a chamar os outros para a luz. As papaias amadurecem como se estivessem na sua terra, mas a secura das folhas queimadas pelo frio mostra que a preferência é ainda o calor. As meninas, tontas pelo sol e pelo início da adolescência tomaram frenéticas o primeiro banho e estenderam-se ao sol para dourar as suas peles ainda meninas. As ondas mansinhas foram e vieram para trazer som às conversas de fim de tarde na praia. Os pés nus a enterrarem-se na areia ainda fria e húmida, desmentiam a gravidade do momento que atravessamos, o da vida colectiva e o da nossa. O sol torna leve o que é pesado e as flores e as andorinhas quando chegam trazem a tudo esperança. Na manhã seguinte há um passeio de bicicleta entre salinas, inúmeras passagens de nível sem guarda, casas arruínadas e um verde ainda orvalhado, há pequenas paragens para beijos.

A pasta dos livros fica quieta e os trabalhos arrumados, percebo a gravidade do meu acto ao mesmo tempo que sinto que para alguma coisa nasci com asas. E se às vezes elas me pesam e queria arrancá-las, de outras uso-as realmente para voar.


~CC~




sexta-feira, março 13, 2009

O meu nome é Vanessa (XV)

Três anos, foram três anos apenas que vivi com aquele estranho. Entre ele e mim a necessidade de fazer o jantar, lavar e passar a roupa, ir ao supermercado comprar a comida, ligar a televisão de vez em quando. Entre ele e eu um acordo de sombras chamado casamento. A minha saída autorizada do inferno que era a minha família, ele foi pelo menos um passo em direcção ao nada. E deserto é melhor que inferno, é um lugar onde o fogo não nos devora.

Oiço esta mulher falar com a frontalidade que nunca tive. Ela fala do amor como um lugar que nunca existiu, eu, pelo contrário, fui rodeado de um afecto que nunca soube corresponder. Lembro a minha mãe a entrar no quarto todas as noites para dizer: boa noite filho. E eu, por último já nem conseguia responder, fingia que estava a dormir. Gostava de saber porque é que me tornei assim, que medo é este que aprisiona a minha fala e que sempre me impediu de dizer amo-te, mesmo quando a miúda mais morena e mais bonita da minha rua passou a ocupar parte dos meus dias e das minhas noites. No dia em que ela olhou para mim no café fiquei aterrado e naquele em que se sentou à minha mesa, pensei mudar de morada. Timidez, poderiam pensar. E no entanto, escolhi esta profissão onde estou sempre a contactar pessoas. A minha solidão não se percebe, eu próprio não a percebo. A minha vida amorosa é o oposto da vida da Vanessa. E respondi-lhe sem pensar.

- Deserto, Vanessa, não uses essa palavra, essa palavra é minha, é a melhor que encontro para definir a minha vida.

E foi nesse dia, o da 9º entrevista, que deixei totalmente de a entrevistar, os nossos encontros passaram a ser um diálogo. À mesa do café, um homem chamado deserto e uma mulher chamada desespero.
~CC~

quarta-feira, março 11, 2009

Mulheres da minha vida (II)


Faz-se silêncio nos dias em que não está, o sofá da sala não se abre como cama para nos estendermos, não há elogios sobre a salada que só eu sei fazer e protestos sempre que é peixe. Nas noites em que não está não há perguntas para as quais tenho que pensar duas vezes antes da resposta, nem comentários sobre a minha roupa nem conselhos sobre a escolha da dela para o dia seguinte. A noite termina sempre mais sombria, não obstante ser torturante mandá-la para a cama e ela lembre o chá que faz parte do ritual nocturno, na tentativa óbvia de prolongar mais um pouco o dia. Esta noite custou mais deixá-la ir, tive um assombro de egoísmo de a querer ver acordar amanhã, mas deixei-a ir, porque não podemos aprisionar o que amamos e os filhos têm que ser partilhados porque feitos a dois. E percebi que o almoçar amanhã na escola era importante, mesmo quando pede tantas vezes para não o fazer e me apetecia imenso poder vê-la ainda de dia, é a parte que cabe ao riso das amigas quando se faz 13 anos.


São tantas as coisas que mudaram este ano. O primeiro não assumido que tive que dizer às unhas pintadas, a primeira mensagem de comemoração do dia da mulher que ela me reenviou por sms, o interesse pela primeira vez genuíno pelas mudanças sexuadas do corpo, do seu e das outras raparigas, o desejo claro de sair do país e conhecer outras coisas, o gosto pela prática do Judo. Há crescimento diário em cada diálogo sobre o mundo, sobre o quotidiano e maravilho-me pelo seu gosto de discutir e de pensar. E se é em muitas coisas original e diferente das outras miúdas (Oh meu Deus, os dias que levámos a explicar-lhe o conflito entre Israel e a Palestina!) e é crítica (eles nem sabem o que é a Casa Branca…nem querem saber!), é também parecida com todas elas em muitas outras (um telemóvel novo é que era uma boa prenda!) e isso faz dela uma rapariga integrada, mas capaz de pensamento próprio. Parece-nos a maior parte das vezes uma pessoa feliz, mais feliz do que alguma vez eu me lembro de ter sido na idade dela, quero contribuir para que assim seja.


É mesmo a menina, a mulher da minha vida.

Parabéns ~A~.

terça-feira, março 10, 2009

Abraço

Sabes, também cresci mergulhada nessa inspiração de justiça divina de que a vida nos dá o que merecemos, que nos retribuí o que lhe damos, cresci nessa ilusão de que há recompensa para as coisas boas que fazemos. Mas não há, não há. Por causa disso, deixei crescer a zanga e a fúria e elas tornaram-me por vezes tão amarga que não me apetecia dar mais nada. E ao nosso lado, mesmo ao nosso lado, podem estar aqueles que nos atam as pernas quando deles era um abraço que esperavámos. Se me colocar no lado oposto, deixarei de pensar sequer que há justiça, e isso eu também não quero. Se me colocar no lado oposto, deixarei de acreditar nos abraços e isso eu também não quero.

Perguntarás o que resta então. Resta sabermos, nós e mais alguns, mesmo que poucos, que o que fizémos foi bom, que temos valor. Resta a dignidade de dizer sim e de dizer não. Restam-nos os abraços quentes e verdadeiros dos que realmente nos sabem ver por dentro e há sempre quem sabe.

E o povo diz sabiamente: há mais marés que marinheiros. E numa dessas marés há os aplausos das gaivotas.
~CC~

domingo, março 08, 2009

Mulheres da minha vida (I)


Nasceu num lugar pequenino perto do mar e filha de maritímo, uma casa onde os irmãos eram tantos que se queixa de nunca ter tido o carinho e a atenção suficiente, mas perdoa porque a vida era assim mesmo e as crianças não se podiam evitar. Também não aprendeu a fazê-lo vida fora, e por isso o sexo sempre foi emsobrado por esse receio de através dele chegar mais uma criança. Nesse tempo, o prazer das mulheres era condicionado não só porque não era suposto o terem, como também pelo medo da casa se encher de bocas que não se conseguiam sustentar. Muitas vidas, como a dela, teceram-se nesta fatalidade. No mais foi audaz e competente, partiu atrás do seu amor por vários continentes, cheia de bravura mas também da inconsciência de quem sabia do mundo apenas o que os três anos de escola primária lhe tinham ensinado. Fez maravilhas com tão pouca instrução, a melhor delas a de nunca ter desistido de criar as filhas, mesmo quando para o jantar só tinha pão e chá.

Não soube encontrar outro amor depois do seu a ter deixado porque era assim a vida dessas mulheres, elas eram só de um homem, e depois dele só mesmo os filhos eram capazes de alimentar os sonhos. Nunca foi farta nas palavras e nos gestos carinhosos e foram muitas as vezes que disso nos queixámos, mas essa aprendizagem também não a tinha feito, e não sei se se pode dar aquilo que nunca se teve. Com as netas é hoje diferente e é possível ver manifestações de carinho, a maior parte das vezes sob a forma de histórias contadas, ou de uma história única, a sua própria.

É ainda bonita aos 80 anos, talvez mais bonita do que alguma vez foi, embora lamente muitas vezes a sua beleza perdida, bem clara nas muitas fotografias que adornam a casa. É uma mulher fruto do seu tempo, de um tempo que aprisionava ainda as mulheres, mas é já uma mulher deste tempo, capaz de autonomia, de opinião, de decisão.

Tecer-lhe homenagem é a melhor forma que encontro de comemorar este dia.
~CC~

sábado, março 07, 2009

Corda bamba

A nossa vida parece às vezes poder mudar num indivizível minuto, estar num lugar errado à hora errada ou no lugar certo à hora certa. O amor e a morte podem surgir assim de repente ao virar da esquina. Leio no jornal Sol de hoje que na Mealhada uma pessoa que levantava pacificamente dinheiro no multibanco da área de serviço foi colhida brutalmente por um automóvel desgovernado e teve morte imediata. Choca-me esta morte assim sem razão, sem aviso de doença ou motivo imputável. Choca-me ainda mais que as recentes mortes de governantes e chefias militares na Guiné, essas explicáveis pelo ódio.

Lembro como no filme o leitor, o rapaz se senta para vomitar na entrada de um prédio degradado e assim encontra Hanna, mulher bem mais velha, que na sua contida generosidade o ajuda a voltar a casa. Maravilha-me aquele encontro que nada fazia prever, sustido pela impossibilidade que seria o cruzamento daquelas vidas noutro horizonte qualquer. O amor, pode surgir assim também, sem qualquer sinal. E maravilha-me essa possibilidade, mais ainda do que quando ele surge em consequência de um conhecimento ou relação longa entre duas pessoas.


E lembro-me da forma como também escapei milagrosamente com vida num despiste na autoestrada do sul e da felicidade que senti por ir sozinha. Parece que ganhamos uma segunda vida e com ela novos sentidos.

Há cerca de um mês atrás mais um episódio. Ia conduzido devagar pela cidade e vi com clareza a mãe, a jovem e a criança no fim da passadeira. Já tinham atravessado e por isso eu não necessitava de parar. Mas a criança levava uma bola e a bola soltou-se das suas mãos, pelo que a criança voltou atrás de repente e vi a bola a correr pela trajectória inversa à que eles tinha feito. O meu carro já estava em cima da passadeira quando a criança volta atrás e foi apenas por um reflexo rapidissímo de curvar o carro para a faixa mais à direita que não lhe bati, mas parei claramente já em cima da passadeira. O miúdo devia ter uns 4 anos, saiu fora do ângulo de visão do vidro da frente e nem sequer vi logo se tinha conseguido desviar ou se o carro o tinha atingido. Sai em pânico e deve ter sido por apenas meio metro que não ficou debaixo do carro. A mãe, muito assustada, deu-lhe imediatamente duas palmadas. Mas o que teria acontecido se lhe tivesse batido, a mãe culparia na mesma a criança? A verdade é que eu parei em cima da passadeira, para quem não tivesse visto, seria para todos os efeitos um atropelamento na passadeira, dificilmente poderia provar que a criança já tinha atravessado e tinha voltado para trás em busca da bola. As nossas vidas ficariam tragicamente marcadas por uma bola que se tinha soltado das mãos. Ainda hoje respiro de alívio.

É assustador e trágico que a vida não possa ser inteiramente dominada pela nossa razão e pelos nossos actos, que a todo o momento nos aconteçam coisas como estas que mencionei, coisas que o povo atribui ao azar e que não sabemos classificar inteiramente de outro modo. Mas ao mesmo tempo quando os acasos são felizes ou quando escapamos milagrosamente aos infelizes, tudo nos parece mais belo. Para quem acredita em Deus, é fácil encontrar explicação, atribuindo-lhe a responsabilidade. Mas para quem, como eu, não tem nenhuma certeza quanto à sua existência, tudo isto nos surpreeende e interroga.
~CC~

quinta-feira, março 05, 2009

Nascer

Nascer do sol na Arrábida. Nov. 2008

- Correu tudo bem com o seu menino, nasceu bem?
- O meu menino, o meu menino nasceu de olhos abertos e não chorou.
- Deixe lá comadre, é porque ele queria ver tudo.
- E já viu se ele vai ser sempre assim, a querer ver e saber tudo?
- Pois, comadre, os miúdos quando são espertos querem ir para longe e fogem-nos da mão.
- Eu não me importo que corra mundo, desde que venha sempre ver-me. E depois comadre, não sei se tenho dinheiro que chegue para todas essas viagens que ele vai querer fazer.

O meu menino nasceu de olhos abertos e não sei se viajou muito, certo é que chegou até mim. Nasceu numa praia frente ao mar, chegou numa onda chamada beijo que soube a sal doce.

Parabéns.

~CC~



quarta-feira, março 04, 2009

A vida é na TV

A TV permanentemente ligada, como se no cabo que a liga residisse a verdadeira vida, em vez de ser no sangue que corre nas veias.

O cabeleireiro é pindérico e periférico, todo ele esteticamente duvidoso. Elas cortam o cabelo em cortes sem graça e apesar das brasileiras viverem paredes meias, não aprenderam com elas a dizer queridinhas nem a acenar-nos com sonhos de beleza miraculosa. A televisão permanentemente ligada, substituídas as novelas por outros programas mais cultos, quase todos resumidos a mudar qualquer coisa na vida das pessoas. Pessoas que se oferecem para que lhes mudem a roupa, a casa, o jardim e a varanda.

Os olhos delas vidrados na maravilha do papel de parede, na oliveira de jardim, no corte do fato, na mudança de cor do cabelo. Os comentários são fluentes, indiferentes à minha presença, presos naqueles anjos televisivos que agem como engenheiros de moda e de design de interior. No fim, arranjado o quarto e a varanda, elas dão gritinhos de contentamento como se a vida delas também tivesse mudado por completo. O preço é módico, mas não sei se cobre a tortura.

Ainda por cima a franja ficou torta.
~CC~

segunda-feira, março 02, 2009

O meu nome é Vanessa (XIV)

Combinámos uma sexta ao fim da tarde, libertos do gravador, podia ser mesmo na esplanada da Fonte Fria. E percebi que conseguia registar as palavras dela sem qualquer auxílio, elas ficavam guardadas na minha memória, como se a Vanessa estivesse a escrever dentro de mim, como se eu fosse a sua folha de papel branco.


Dias e dias sempre iguais em que o amor é só uma sombra que se arrasta pelo imaginário. Eu até aguentava querer sexo e não ser com aquele homem que se deitava comigo. O que eu não aguentei, percebes, foi a minha criança deitada fora. No dia em que ele disse: Vanessa, pensava que estava claro que eu não quero ter filhos...a partir desse dia a chave a rodar na fechadura para assinalar a entrada dele era igual a uma lamina a cortar-me a carne por dentro. Era a repetição vezes sem conta da criança que eu não tive, que eu não pude ter. E soube que era apenas uma questão de tempo para que um dia por trás daquela porta ele só encontrasse a casa vazia. A liberdade, meu amigo, é linda como o mar.


Vanessa, os teus olhos são amarelos e não têm aves azuis lá dentro, por isso não percebo porque me parecem ganhar asas.


~CC~