sexta-feira, outubro 31, 2008

Ausências e errâncias (VII)

Várzea, Verão 2007


Quantas vezes precisamos para saber de vez que alguém não nos quer? É verdade que assisti ao seu abraço com a religião católica e que nunca me pareceu que pudesse haver retorno, mas precisei de todo este tempo, quase dez anos. Mantive o meu abraço quente à espera dele. Todos os meus envolvimentos neste anos foram pontuados pela ausência de esperança e de calor que neles depositei. Em sonhos eu era a Senhora da Candosa, montada no burro, capaz de abrir e fechar desfiladeiros com um olhar, dona de um encanto, de uma luz tão grande que Deus ao pé de mim era só uma sombra. Imaginava-o a acordar comigo em cada manhã, com aqueles seus olhos castanhos tão claros como mel e aquela paz que o habitava desde sempre a entornar-se também para dentro de mim. Imaginava que a fusão dos nossos dois corpos doces e macios traria à terra dos nossos pais pelo menos uma menina traquina, com duas tranças loiras e um rapazito de ar grave, a fazer perguntas sobre as razões da nossa existência.


Nada foi assim, eu perguntei pelo seu amor uma vez e duas e três e só na terceira chorei. Quando as lágrimas finalmente tomaram forma, eu pude perceber que a vida que eu tinha pensado um dia ter, não existiria nunca.


E quando parti para Londres era já uma outra pessoa, um outro destino de mim.


~CC~

terça-feira, outubro 28, 2008

Beleza (II)

Uma cor na camisola que rima em excelência com o olhar. Um sorriso aberto e limpo de quem procura dias claros. Uma pequena saliência na pele que parece ser saborosa. O modo como as palavras se pronunciam. O recorte largo dos gestos na companhia da fala. O andar de navio vagoroso, mar manso. O sal, em dose quase igual ao açucar. O saber sem arrogância de quem olhou o mundo em múltiplos espelhos. Uma lágrima agarrada nas pregas do tempo. Os livros lidos sem alarde, tornados vida interior. Um abraço pronto a sair a qualquer momento, quente ainda. Um desejo de viagem preso nos sonhos. O mundo todo para aprender.

É assim para mim a beleza, feita de coisas tão pequenas e tão imensas.
~CC~

segunda-feira, outubro 27, 2008

Ausências e errâncias (VI)

Beira interior, 2007


-Diz-me, alguma vez desejaste uma mulher?
- Talvez sim, mas já não me lembro.
- Como pudeste esquecer? Como se anula essa parte do nosso ser?
- Não anulas, simplesmente não lhe dás espaço. Repara, é um prazer que não conheço, por isso não posso sentir saudade, só há saudade do que conhecemos e amamos.
-Não desconheces que o celibato não é uma regra de todas as religiões, mesmo das monoteístas.
- Claro que sei isso.
- Então porque aceitas? Porque não te mexes para acabar com isso.
- Porque não acho uma coisa errada, não acho que seja o nosso maior problema.
- Qual é o sentido disso, não consigo encontrar.
- O sentido de uma missão que ocupa muito espaço, toda a nossa disponibilidade. Quantos cientistas não fizeram o mesmo com a sua vida? E muitos que não o fizeram, se calhar deviam.
- Como?! Nós conseguimos equilibrar as coisas, os cientistas já não são ratos de laboratório.
- Alguns são, e outros tentam ter família mas não lhe dão atenção, acho pior esse engano.
- Não é saudável, todas as partes no nosso ser são importantes, devem estar em equilíbrio.
- Pois eu acho essa tua visão muito higiénica e normativa, o equilíbrio é uma coisa muito pessoal.
- Rejeito a tua renúncia.
- Porque não percebes que é uma escolha, não uma renúncia.
- Não é uma escolha tua, é a escolha que a tua religião fez por ti.
- Mas se eu escolhi essa religião, tornou-se uma escolha minha.
- E os casos, todos os casos de padres que não cumprem essa regra? Que o fazem às escondidas?
O que dizes a isso?


~CC~

domingo, outubro 26, 2008

Varanda ao sul

Faro, 2008

Onde o olhar encontra o branco que resta intacto e se aquece no azul da ria.

~CC~


quinta-feira, outubro 23, 2008

Beleza (I)

Aos catorze sabia o que era a beleza masculina, apaixonei-me pelo rapaz mais bonito e desejado da escola e consegui namorar com ele uns três meses. Um êxito acompanhado pela angústia dos olhares permanentes sobre o objecto amado. Não sei se todas as pessoas deslumbrantemente belas precisam de público, mas aquele vivia disso. Depois a vida deu uma volta tão grande e depois outra e mais outra e perdi todos os padrões, nunca mais foi contemplada com a inveja das amigas nem com os olhares de admiração das mulheres pelo homem que me dava a mão. Só pelo silêncio das mulheres é que consigo saber que os meus homens não devem ter sido, não devem ser homens muito bonitos.

Recentemente terminei uma acção de formação, quase só mulheres, mas havia um homem. Achei-o efectivamente bonito quando o vi na primeira sessão de trabalho, mas depressa me esqueci dele. Estive aliás convencida que ele tinha faltado muitas vezes e por isso fui confirmar a folha de presenças, para meu espanto tinha estado em todas as sessões. Por me parecer quase impossível fui confirmar com alguém de confiança, que me sublinhou a palavra todas, ele tinha estado sempre presente. O homem, sem chama nenhuma, tinha uma beleza que morria no quotidiando, apagava-se no vazio.
Agora a publicidade televisiva de uma marca de automóveis, vejo uma e outra vez e não percebo a publicidade, é a minha filha que me ajuda, que explica. O homem que a mulher do anúncio escolhe é o mais feio, mas tem o tal automóvel, o tal que é barato mas muito charmoso. Ora eu acho que ela fez a melhor escolha em tudo, no autómovel e no homem, acho-o o mais bonito dos três que ela podia escolher. A minha filha ri muito, diz que não, que ele não é efectivamente o mais bonito, que é até feio. E rimos as duas quando lhe digo: e além de ser bonito, diz que não lava a loiça, mas aspira...não está mal, até porque as máquinas já vão lavando a loiça mas máquinas de aspirar ainda não sei se há.

Já é tempo de dizer que para se ser bonito é mesmo preciso o que está dentro, até porque mais de meio mundo anda a dizer o contrário.
~CC~

Ausências e errâncias (V)

É verdade, apaixonei-me irremediavelmente por este rapaz naquela noite de chuva, ou melhor talvez antes, talvez muito antes. Sei que agora é padre, sei que pensam que os jovens já não escolhem esse futuro para eles e que o meu drama só poderia localizar-se no passado e habitar um romance de um Camilo ou de um Eça.

São poucos, é verdade, mas se repararem bem, há jovens padres. E o meu não foi para o seminário aos 10 anos, no final da escola primária, por ser muito inteligente e os pais não terem como dar continuidade aos seus estudos. O meu padre teve todas as hipóteses para escolher outro futuro, era bonito, comunicativo, tinha bons resultados em praticamente todas as matérias escolares. No entanto sempre morou nele alguma tristeza, por vezes um silêncio, outras mesmo ausência. Foi ainda jovem que começou as suas missões inserido numa organização católica e na altura ainda não afirmava esta sua vocação, era apenas a vontade de estar nos lugares do mundo onde, dizia ele, a miséria é tão grande que é difícil preservar a condição humana. Foi depois da sua missão no Libano que ele tomou a decisão de ser padre católico, veio de lá transformado, uma sombra de si próprio. Raramente fala do que viu ou viveu nestas suas missões e continua a fazê-las com regularidade, mesmo agora depois de ter assumido de vez a paróquia da Várzea. Não compreendo também porque não escolheu outro lugar, ele que tanto gosta de errância.


Quando lhe perguntei porque voltou aqui, respondeu com aquele sorriso terno: foi aqui que me encontrei com a Senhora da Candosa, foi aqui que aprendi a respeitar tudo o que não compreendo inteiramente, é aqui que volto a ter paz. E então eu perguntei-lhe se queria que lhe explicasse outra vez que "pelo desfiladeiro da Candosa atravessa uma "linha" de "quartzito", uma das mais duras pedras existentes – mais dura que o granito..." e que todo o mistério tem uma tradução clara na geologia, na física e na química. E ele sorriu novamente e disse: não, não preciso que me expliques novamente.
~CC~



terça-feira, outubro 21, 2008

Ausências e errâncias (IV)



São minhas as conversas com o jovem padre e com a amiga Isabel. O meu nome é Josefa e estou prestes a fazer 27 anos. Nasci numa várzea no interior deste país, lugar fértil onde tudo nasce e o rio corre. Cresci a furar os campos de milho alto, sabendo que a vitória era chegar ao outro lado sem me perder. Tinha uma enorme paixão pelo interior da matéria, sonhava com células como as minhas colegas sonhavam com os grupos da moda. Recebi da minha aldeia todo o incentivo que possam imaginar para uma carreira bem sucedida. Fui primeiro a melhor aluna da escola de pedra da primeira infância e repeti esta dose de êxito na vila e na cidade. Toda a aldeia foi comigo quando me mudei para a faculdade na capital e me escreveu cartas quando fui para Londres.

Como é que vos posso explicar este sentimento de ser maior do que eu, de ser o orgulho da terra, dos meus pais explicarem demoradamente no café da aldeia qual a natureza dos prémios que aqui e ali eu ganhava e de se fazerem brindes depois da missa "à menina Zéfinha que é de todas a melhor das nossas meninas". Eu não sou eu, sou a vingança de toda este gente que nunca saiu daqui a quase parte nenhuma, sou todas as meninas que casaram cedo e não puderam continuar os estudos, sou todos os rapazes que começaram cedo a lidar com o tractor e a podar as vinhas e não fizeram mais nada a não ser seguir o destino traçado, sou todas as velhotas que nunca aprenderam a ler. Carrego nos meus ombros toda a alegria de ter sido o seu orgulho e a imensa tristeza de não poder ter sido tudo o que eles foram e são. Não sei fazer marmelada, não sei calcular a olho nu a profundidade a que a semente deve ficar, não sei pegar numa agulha, não sei ter um bebé no colo e embalá-lo, não sei rezar.

E quando eles me abraçam e me chamam menina Zéfinha, eu não sei retribuir o afecto com o mesmo calor e creio que é isso o que me traz maior dor. Eu perdi-me deles mas eles não se perderam de mim, é como se tivessem ficado aqui à espera de todos nós que partimos, mesmo os que eram tão jovens como eu ficaram à espera.


E eu volto sempre à procura de mim, volto sempre que me perco e não me encontro, volto quando o meu coração parece que vai parar de bater tão devagar.


~CC~


domingo, outubro 19, 2008

O grande lago

Alqueva, Outubro de 2008


Acrescentei uma estrela à constelação de momentos felizes. Acrescentei uma estrela à constelação de momentos tristes. Acrescentei várias estrelas nos meus olhos tristes-felizes, coração viajando por todos estes sentimentos na vertigem vagorosa do barco deslizando em tanta água nova, água cheia de histórias por criar. As aldeias e as pessoas sempre estiveram ali, o grande lago não. O novo e o antigo parecem não se encontrar por ora, mas vi muito pouco para além das águas.

Estrelas felizes as meninas tomando banho no grande lago. Estrelas tristes no homem do acordeão tão desfasado no restaurante neo-moderno dentro da aldeia triste, estrela de seu nome. Estrelas zangadas no teu olhar, por vezes fechado num mundo só teu, sem pontes para nós. Estrelas a brilhar no aconchego do teu abraço, em dose dupla de ternura para vencer a crónica falta de ar, desta vez derrotada em toda a linha. Faz-me feliz derrotá-la.

Um estrela feita rosa vermelha do campo riu-se para mim quando abri a mala, já meio desfeita mas com cheiro intacto. Esperança cheiro em momentos felizes.

~CC~


Ausências e errâncias(III)

- Mas diz-me, antes de ele ser padre, foram namorados?
- Nunca fomos namorados, acho que ele nunca teve uma namorada. Mas aconteceu qualquer coisa sim.
-Qualquer coisa que nunca esqueceste...
- Chovia muito nesse crepúsculo de Outono e sem queremos afastámo-nos muito da aldeia, movidos por uma estranha energia que nos levava a querer andar mais e mais. Perto do Cabriz, já encharcados, procurámos o moinho velho. Quando somos novos nunca temos frio e raramente temos medo, de modo que tudo aquilo nos divertia. Sei que pensas que se seguiu o que não se seguiu.
- Confesso que o cenário me parece muito propício...e quantos anos tinham?
- Ele tinha dezasseis e eu quinze.
- Se tivesse acontecido eu poderia esquecer, mas não aconteceu.
- Não aconteceu nada?
- Aconteceu sim. Ele pegou na minha mão esquerda e limpou com um beijo cada gota de água que escorria dos meus dedos. Depois fez o mesmo à mão direita. E quando eu ia retribuir-lhe com uma festa no rosto, parou o meu movimento em pleno voo e disse que tinhamos que voltar imediatamente porque a tempestade ia piorar. Diz-me, há muitos homens que nos tocam, mas achas que se consegue esquecer um que nos beija cada um dos dedos com tamanha devoção?
~CC~

sexta-feira, outubro 17, 2008

Sobre a história "ausências e errâncias"...

Gosto de histórias, de lendas, de mistérios. O que me interessa na religião é essa sua enorme relação com o mistério da vida, coisa que a ciência explicou sem revelar. Revelar é esse lançamento de luz, é a chegada da paz com a resposta.

Não esperava, que no dia em que comecei a escrever esta história sobre este lugar com o qual a minha vida em tempos se cruzou, esta capela tivesse sido notícia. Enquanto eu pensava no monte da Senhora da Candosa, nesta história de uma amizade entre uma jovem brilhante da aldeia com o padre que foi seu colega de escola, inspirada em dados tão reais quanto fruto da minha imaginação, a capela era assaltada e foi notícia no telejornal das oito. Acontece que não sou grande espectadora de televisão e nem sequer das notícias de qualquer um dos canais, mas na Quarta estava a ver. Nem queria acreditar no que ouvia, acreditem que durante anos e anos nunca ouvi falar dela e muito pouco daquela região. Mesmo sendo objecto de um assalto estranho (levaram os santos) não pensei que a pudesse ver na televisão, nem às pessoas da aldeia a chorar o ultraje à sua santa.

Era a minha Candosa, no mesmo dia escrita pelos meus dedos e objecto público de notícia. Há coincidências, tentei concentrar-me nisso, nas enormes coincidências, afinal só se podia mesmo tratar disso. Ou então, a senhora da Candosa, sempre pronta a pregar partidas, como em tempos fazia com os mouros que queriam inundar a aldeia.

~CC~

Ausências e errâncias (II)

-Lembras-te quando vieram cá aqueles miúdos da colónia e a monitora lhes contou a lenda da Candosa? O que eles se riram...acharam idiota a ideia de que esta passagem por onde o rio corre foi repetidamente aberta por uma santa.
- Vim para aqui muitas vezes, crente de que ela me apareceria.
- A senhora da Candosa?
- Sim, achava-me merecedor dessa aparição, era um miúdo arrogante.
- Pois eu toda a vida pensei que conseguiria explicar cientificamente o fenómeno destas pedras grandes que a seguir a esta passagem se encontram pelo rio, que conseguiria saber a data precisa em que a várzea foi um lago e a razão da cintiliação que todos diziam ver nas pedras ao cair da noite.
- Estão as nossas vidas explicadas, eu segui a profissão religiosa e tu és uma brilhante cientista.
- É verdade, o que uma lenda a atravessar as nossas infâncias e adolescências pode fazer-nos.
- O que temos nós em comum então?
- Vou dizer-te: "O desfiladeiro passa de leste para oeste, e pode ver-se o pôr do sol através dele(...) antigamente acreditava-se que as almas dos mortos viajavam sempre para oeste em direcção ao pôr do sol"(1). Talvez seja isto que une as nossas vidas.

~CC~

(1) in http://www.goisproperty.com/portugues/regiao%20de%20Gois/A_lenda_da_Candosa.html

quarta-feira, outubro 15, 2008

Ausências e errâncias(I)

- Olha bem lá para baixo, vê como é estreita a passagem e como o rio pode inundar todo o vale se impedirem a sua passagem. A senhora aparecia sempre montada num burro e apenas com o seu olhar impedia a tragédia de acontecer.
- Há quanto tempo foi?
- No tempo da ocupação, quando os mouros viviam por todo este Portugal.
- Acreditas que aconteceu mesmo?
- Podes ver nas pedras, estão lá as marcas, atravessaram os séculos.
- Podem ser marcas de qualquer coisa, como sabes que são do burro da senhora?
- Porque só as marcas do milagre resistem assim ao tempo, as outras desaparecem.
- Sinto o mistério, mas não acredito nele, não era suposto ser assim, pois não?
- Tens o principal para chegar à fé, o coração aberto a um outro entendimento do mundo.
- Sim, mas nunca chegarei lá.
- Há também qualquer coisa em ti que não quer.

Descemos devagar o monte da Candosa, respirando o vento doce que vinha dos pinheiros, sempre que a tarde chegava ao fim. Não fora ter olhado para o seu andar, teria uma vez mais esquecido que ele usava agora batina. Teria esquecido todo o campo da impossibilidade que essas vestes colocavam entre nós. O lugar teria sido propício a um corpo num abraço junto do meu corpo. E o vento dos pinheiros, como era doce e quente.
~CC~

terça-feira, outubro 14, 2008

Saudade


"...trate-a com carinho"
Só numa certa África as coisas se poderiam dizer desta forma. Saudade, tenho saudades.
~CC~

segunda-feira, outubro 13, 2008

Desnorte

Há locais onde destesto ir, o banco é um deles. Mas a verdade é que em todos os lugares onde há gente, a vida se mostra inteira no registo do tempo que vivemos. Pude assim perceber que não tinha sido a única destinatária de cartões multibanco novos sem nenhum pedido a justificá-lo. O senhor à minha frente acusava: eu nunca pedi nada, isto é um abuso de confiança!

O bancário tinha voz baixa e doce, e assumia um tom de culpa, não obstante explicar que eram apenas manobras publicitárias do banco, pelas quais ele não era responsável. Eram as chamadas campanhas de publicidade activa, um modo de contacto directo com o cliente, incentivando-o a comprar um produto, tudo oriundo da central e não daquela pequena agência de cidade periférica. Talvez numa outra altura essa agressividade do banco pudesse passar incólume, afinal tão legítima como outra publicidade qualquer. Mas não agora, há nas pessoas desconfiança e medo. De repente somos nós que parecemos tontos quando aconselhámos os mais velhos a não guardar o dinheiro debaixo do colchão. Os bancos provavelmente sempre foram instituições sem noção do bem comum, mas agora quase se nos afiguram mais próximos dos ladrões do que dos polícias. O homem que protestava nem tinha razão, nunca pagaria anuidade de um cartão se não o aceitasse e isso implicaria assinar um papel a declará-lo, mas compreendi muito bem a sua revolta. Era um "deixem-nos em paz!"

Eu cá achei imensa piada aos cartões cheios de flores que me enviaram, pensei mesmo que me eram exclusivos, dada a minha paixão pela flora, em estudos de mercado mais apurados devem mesmo vir com os cheiros que gostamos. Perguntei pelos outros cartões que já tinha e é claro que ela respondeu que só os anulava se quisesse, podia manter todos. Imaginei-me então com uns às bolas ou mesmo de várias cores para combinar com as roupas e é claro todos a pagar anuidade, que essa é a parte interessante para o banco. E pensar que há quem nem saiba que aqueles plasticozinhos se pagam. O senhor tem razão, talvez seja preciso gritar-lhes para parar. Ou talvez nos caiba a nós pará-los de vez.
~CC~

domingo, outubro 12, 2008

Aniversários

Escrevo-os no plural porque desde Agosto até Outubro não fazemos em família outra coisa que não apagar velas ao velho estilo tradicional, por vezes com umas pinceladas de alguma inovação e uma pitada da loucura, essa coisa boa que mora no nosso sangue. E há muitos amigos também nesta linha que cruza as duas estações do ano mais belas em cheiros, em cores, em chama e em melancolia, esta linha Verão-Outono.

Começa com a mais nova das manas, uma centelha de persistência, sempre a puxar pelo riso e a lutar contra os desesperos vários que teimam em cruzar-lhe a vida. E depois a mãe, já pelo final de Agosto. Este ano os seus oitenta mostraram-na em toda a sua juventude e beleza. Há também amigas pelo final de Agosto, algumas a que enviamos flores.

Depois em Setembro chegam os homens, estes sem dúvida mais distantes, mas há entre nós mapas traçados com estradas menos óbvias. E depois, já no final de Setembro, três de nós, são raparigas que gostam de palavras, têm lágrima fácil, são motivadas para convívios com as fadas e acreditam que as estrelas são todas gente boa que já morreu. Estão na transição entre o realismo que as sustenta e a magia branca que lhes dá asas. As amigas de final de Setembro são também assim.

Em Outubro chega o aniversário da mana mais velha e com ela inauguramos um planeta do cosmos onde o Outono já mora, por isso apesar desta estação trazer lá dentro o frio, são as cores quentes que ela procura sempre. Com ela aprendemos que as festas nunca nos devem envergonhar, muito pelo contrário. E há duas pessoas que me puxam pela ternura até o coração derreter, uma menina Celeste e um menino Ruca, tal qual duas personagens de banda desenhada que desceram dos quadradinhos para me trazer sorrisos.

E apesar de há uns anos atrás ter aberto muito os olhos para entender o que um amigo me dizia quando referia que depois dos trinta já não se fazem amigos, lembro hoje as palavras de um dos meus amigos mais recentes, em resposta ao abraço carinhoso que lhe enviei.
"O bom dos aniversários, para além do acréscimo de tempo nos ajudar a ter mais «sabedoria» para ver o que é mais importante, é o ar que respiramos ficar mais denso de amizade e isso é uma sensação muito forte, tão forte como a do homem do leme, de Fernando Pessoa, que mesmo nas situações mais difíceis nos faz sempre avançar e renascer."

Nem mais, JH!
~CC~

quinta-feira, outubro 09, 2008

Os dias do Verão no Sul que era Norte


Se Maria Laura não fosse ainda viva e uma mulher tão surpreendente que poderia vir até aqui espreitar-se, contaria a sua história inteira, como ela o fez numa tarde de Verão dentro de um escritório de pedra entulhado em papel velho. Falaria de mim e do modo como ela me ignorava para se centrar no homem que estava comigo, falaria de como gostei dela e ao mesmo tempo a detestei.

Todas as suas marcas de nobreza comprada marcavam um território de elite, onde os pobres seriam sempre os outros e os empregados seriam sempre isso, como se não pudessem ser pessoas. E ao mesmo tempo quanta coragem, quanta luta, quanta ousadia. Uma mulher que deu nome a uma casta de vinho fintando burocracias e biologias várias, não é uma mulher qualquer. Falaria de Maria Laura, de como é nascer mulher abastada no Portugal interior, de como se trocam e invertem papéis colados a nós à nascença, falaria de como é ser forte e de uma fraqueza e tristeza imensa. Falaria da sua solidão entre a folhagem das vinhas, das peras, das amoras.

Falaria de uma capela pequena coberta de hera e sempre fechada, falaria dos bancos de jardim onde ninguém se senta, dos santos de pedra dispersos pelos jardins, da piscina onde os hóspedes tomam banho. Falaria da mulher que despede os arquitectos e atormenta as empregadas, da mulher que diz não conseguir andar, enfiada tempos sem fim na sua cama, e depois de como ela sobe as escadas, escrutina tudo e descobre num ápice o que foi mudado de lugar.

Se ela sabe que estas meninas não são irmãs e que este homem e esta mulher não são casados, não sei se poderemos voltar a cruzar com esta tranquilidade o portão da quinta. Se ela sabe que vamos ao Festival das danças, onde os cabeludos sem eira nem beira se divertem, não sei se nos poderemos sentar a esta mesa a saborear o seu maravilhoso vinho. E se calhar tudo ela sabe, mas finge acreditar que somos esta família bem comportada de senhores professores que fugiram da praia no sul para se recolher nas leituras silenciosas da tarde.
~CC~

terça-feira, outubro 07, 2008

Dia(s) II

Na minha ausência aconteceu qualquer coisa estranha na minha casa. Está ali uma alfarrobeira pequenina que insiste em dirigir-me a palavra. Perguntei-lhe porque veio para aqui e respondeu que foi para me fazer companhia. Expliquei-lhe que estava bem sozinha, que não temo a solidão e que para calor, por ora, me bastava o do sol. E disse-lhe que desde a história do principezinho que já foi há muito, muito tempo atrás...que não há plantas a falar com pessoas, que aliás isso está completamente fora de moda, até nas histórias infantis. Não tive êxito com o reparo nem com a minha arrogância, ela respondeu que eu achava que me conhecia muito bem a mim própria mas se calhar não me conhecia assim tão bem.
Fiquei a pensar.

~CC~

Dia(s)

Hoje é dia mundial do beijo, dia mundial é um pouco menos do que universal, mas está muito perto de viajar pelo universo e é certo que pelo menos à lua chega. Mas é um dia mundial diferente dos outros porque varia na proporção exacta dos dias do calendário em que, para cada um de nós, um beijo alterou as nossas vidas. Eu tenho este que não esqueço e espero que perdure na memória dos tempos, assim riscado dentro de um Outono, antes e depois de um passeio de bicicleta. É pelos beijos que começamos a nascer.
~CC~

segunda-feira, outubro 06, 2008

Homens e bichos (XIII)

Durante muitos dias eu pensei que o meu vazio ia chegar ao fim, mas ele só se tornava maior a cada madrugada, a cada crespúsculo. E se a princípio achei que era uma loucura poder tornar-me numa ave, essa ideia passou a ser para mim uma obssessão. Imaginem que podem voar, que podem tornar-se num pássaro, mas que mantêm um olhar humano sobre o mundo, imaginem que são um ser de fronteira, capaz de falar duas linguagens: a dos homens e a dos animais.

Além dessa curiosidade imensa sobre a minha possibilidade de transformação num outro ser, havia ainda a possibilidade do amor. Eu já a achava linda e era ainda um homem, imaginava como a poderia ver com olhos de pássaro. Foi, no entanto, preciso que o Outono chegasse e com ele a tristeza das árvores nuas, o frio a entrar-me nos ossos, o dia a descer cada vez mais depressa para a noite. Foi preciso a tristeza habitar o meu corpo como se fosse a minha própria pele. Senti então o que ela me tinha dito como a condição da minha transformação: a dor intensa, o profundo desejo.

O azul do céu é agora riscado pelas minhas asas negras brilhantes. Ela muito branca, eu muito preto, somos um maravilhoso casal de aves a dançar entre as nuvens.

FIM
~CC~

quinta-feira, outubro 02, 2008

Homens e bichos (XII)

P- Não chores meu amor!
R- Não me chames meu amor
P - A tua namorada não te chamava assim?
R- Não, nunca...isso é um bocadinho piroso.
P - Piroso, o quer dizer piroso?
R- Sei lá eu explicar-te...é uma coisa sentimental de mais.
P - E queres ser o meu amor?
R- Mas como é que isso pode ser se eu sou um homem e tu uma pomba.
P - Tu podes transformar-te, eu não.
R- Queres dizer que me posso tornar numa ave?!
P - Sim, podes. Se quiseres podemos voar por todo este azul, é tao bom...se soubesses como é bom!
R - E como é que eu posso me posso transformar?
P - Por uma dor intensa ou um profundo desejo.
R - Estou cansado da minha vida, profundamente cansado.
P - Anda, transforma-te!
~CC~