O homem devia ter perto de 60 anos, cedi-lhe a passagem na porta de entrada da tesouraria das finanças. Os funcionários estão numa espécie de caixas de vidro, cada um na sua, como se fossem aves raras. Têm apenas uma janelinha por onde falam connosco, de preferência que esses diálogos se resumam a passar-lhes as notas certas ou o cartão multibanco. Um deles é mais zeloso, costuma avisar-me de todas as coimas que terei se não pagar a tempo, salientando os prazos e escrevendo num papelinho, por acaso gosto dele. Mas o que se passou com o homem de 60 anos que não sabia ler, isso não abalou nem por um minuto a ordem do dia nas caixas de vidro.
Primeiro as senhas de atendimento, divididas em sectores. O homem que não sabia ler, não podia escolher. Estava à minha frente atordoado, mas não pedia ajuda. Nestes momentos sabemos o quanto as pessoas têm vergonha de não saber ler. Li o que queria dizer cada uma das secções possíveis como se o fizesse para mim própria e ele então tirou a que queria. Não me disse obrigado, avançou directo ao balcão. A funcionária mandou-o para trás, não era a sua vez, só quando chamassem o número da sua senha. O homem não disse nada, ficou ali a aguardar. Como ele não sabia ler o número, também não daria por nada quando o chamassem. Assim aconteceu. Fui até perto dele e disse baixinho: é o seu número. Ele avançou para ser atendido, mais uma vez não me agradeceu.
O seu desconforto era tanto que ele não podia agradecer-me. Percebi também que cada vez mais o mundo não atende pessoas que não sabem ler.
O seu desconforto era tanto que ele não podia agradecer-me. Percebi também que cada vez mais o mundo não atende pessoas que não sabem ler.
~CC~