Lembro-me de a ver curvada sobre a máquina de costura recuperando os panos com que ia fazer luzir os vestidos que eu ia vestir. Lembro-me de como a sua tristeza ao misturar-se nas flores de tecido brilhava e se transformava em luz. Tantos anos e tantos passaram e ela já não a usa mais. A máquina, tão antiga que poderia ser exemplar de feira de antiguidades, cruzou os mares e está hoje a dormir na dispensa dela.
Por sua causa e das mãos de dedos finos que tinha, nunca aprendi a fazer quase nada com as minhas. Das minhas mãos nunca saiu qualquer costura e tudo o que transformei em qualquer coisa para vestir (temporariamente) foi por arte de usar agrafos. Mais, se não fosse tão lunar, choraria sobre estas unhas roídas anos e anos a fio, pela sua falta de beleza e ainda mais pela incapacidade que com elas veio de abrir e fechar quase tudo.
Procurei assim por muito tempo alguém que acolhesse e transformasse a roupa de loja em qualquer coisa de meu. Às vezes coisa simples, como impedir que as calças, de tão compridas, se enrolassem nas pedras da rua.
Agora já não ia lá há algum tempo, mas sei que é sempre certo que além da roupa arranjada, é da sua simpatia que vou beber. Desta última vez, ela apareceu à porta toda salpicada de tinta branca. É meio metro de gente, mais pequena que os 11 anos da minha filha, e há muito que entrou naquela idade a que se vulgarizou chamar terceira. Nunca foi à escola e portanto não sabe ler nem escrever mas nunca se atrapalha nas contas e toma conta de um ou outro miúdo da vizinhança, a quem várias vezes vi incentivar ao estudo. E ontem, andava simplesmente a pintar a sua cozinha no cimo de um escadote, em actividade radicalmente livre. Quando ela, na porta da entrada, sem me ter conhecido de parte alguma e sem nunca me ter perguntado o que eu faço na vida, me sorriu salpicada de tinta branca, apeteceu-me deixar-lhe logo um beijo nas faces brancas-rosadas.
~CC~