quarta-feira, setembro 30, 2009

O Senhor...

Cada um analisa e interpreta com os olhos que tem. E os meus, têm, inevitavelmente uma lente profissional. Na vida quotidiana até não sou muito assim, de andar a puxar pelo canudo para olhar para dentro das pessoas que me rodeiam. Mas com os políticos sim. Por isso há muito que o homem a que chamamos presidente me parece uma pessoa frágil. Nada de mais, muitos somos assim e cá nos aguentamos. Não temos é cargos com este peso, que exigem uma saúde mental de ferro, ou se quiserem, bons alicerces.

Há entre nós consenso quanto a esta mania de que se está a ser perseguido, quanto a esta desconfiança permanente face aos outros, quanto a este modo de se colocar no centro do mundo, quanto a este modo de agredir quando somos postos em causa. Eu bem disse que o divã do psicanalista é uma coisa que faz falta. E aí a escuta é bem vinda. Tenho, por isso um conselho, diminua o número de assessores das suas duas casas e aproveite a verba para arranjar quem o realmente o possa ajudar. A Democracia agradece.
~CC~

terça-feira, setembro 29, 2009

Três mulheres

Joana depositava no modo como arranjava cada bocadinho de si o segredo das mulheres que, não o sendo, se tornam bonitas. Mariana era mais selvagem e solta mas, no tempo em que a situo, tinha aprendido a pintar os lábios de vermelho cereja. Maria era voltada para dentro como uma concha e meio alheada do mundo, mais próxima dos bichos do que das pessoas. Aquela amizade tinha nascido sem que se lembrassem como nem porquê. Lembram-se só de que aos 30 eram intímas. Duas delas tinham casamentos falhados, por motivos diferentes. A primeira porque o marido não sabia nunca identificar o cheiro novo que ela trazia na pele. A segunda porque o marido não deixava de saber todos os cheiros de pele de todas as mulheres que com ele se cruzavam. A terceira tinha um companheiro de longa data com quem não vivia, e a sua vida fazia-se das longas viagens que programavam juntos e onde eram absurdamente felizes.


Havia muitos homens por ali naquele círculo, e muitos disponíveis. No entanto as três enamoraram-se de um rapaz silencioso, ligeiramente mais novo, cujo talento maior era a navegação solitária pelo mar. E claro, como ele não se apaixonava a não ser por sereias, mostrava-se disponível, ainda que pouco, para as três. Mas a primeira não conseguia colocar termo ao seu casamento, pois via no seu marido o melhor dos amigos. E a última não via razão nenhuma para deixar um companheiro que lhe dava os melhores intervalos da sua vida. Só a última deixou o marido infiel para se juntar ao rapaz do barco, e resistindo a todos os enjoos, viveu com ele uma vida de sal e silêncio. Teve-o sim, e as outras não. Mas depressa descobriu que o silêncio se pode tornar dor e que o sal do mar seca demasiado a pele. Já as outras mantiveram no seu coração o rapaz com os mesmos olhos claros e iluminados, aquela doçura que imaginavam um dia a desfazer-se dentro delas.

Só a amizade entre elas se foi deslaçando como uma rede impossível de coser com o afecto que tinha restado. Hoje dizem apenas um bom dia de meio sorriso quando se encontram na rua.
~CC~

segunda-feira, setembro 28, 2009

Então pós...

Gostei especialmente da ideia veiculada por um dos ministros do Governo Sombra na TSF, não sei qual, nem se era exactamente assim. Dizia um deles, talvez o Ricardo, que há na alegria da vitória apresentada por cada partido uma tristeza velada, escondida porque não pode ser pública. É nessa tristeza que reside a possibilidade, embora ténue, de cada um se poder tornar melhor. De facto, deviam mexer nessas suas feridas, como no divã do psicanalista nós mexemos com as nossas até sairmos de lá uma outra coisa.
~CC~

domingo, setembro 27, 2009

Mesmo que o amor não pague as contas


...Mesmo que o amor não pague as contas...

Gosto de palavras de ordem verdadeiramente importantes, como estas que agora se podem ler nas paredes do metro em Varsóvia.


Gruas no cais descarregam mercadorias e eu amo-te
Homens isolados caminham nas avenidas e eu amo-te
Silêncios electricos faíscam dentro das máquinas e eu amo-te
Destruição contra o caos, destruição contra o caos, e eu amo-te
Reflexos de corpos desfiguram-se nas montras e eu amo-te
Envelhecem anos no esquecimento dos armazéns e eu amo-te
Toda a cidade se destina à noite e eu amo-te.

José Luís Peixoto

Desde "Nenhum olhar" que lhe sigo atentamente as palavras.

~CC~





sexta-feira, setembro 25, 2009

Intenção

A campanha, já todos a descreveram, foi enjoativa. Nem esmiuçar os sufrágios lhe trouxe grande graça, foi apenas uma breve aragem de frescura. António Barreto descreve hoje no jornal Público os meus receios, subscrevo muito do que escreve, partilho nomeadamente o receio pela ingovernabilidade pós eleições, num tempo especialmente difícil para todos nós. E isto não é apelo a maiorias absolutas ou coisa que seja, absoluto só mesmo o amor.

Mas isto não é uma brincadeira, um país não é propriamente um tabuleiro de monopólio e a imaturidade dos partidos parece indiciá-lo.

Mas ainda assim, brincar é apenas o que me salva às vezes do desalento. Por isso me detive na recomendação do Ipsilon " Votar Pedro Costa". Sim, é o que me apetece. Votar por um país assim, de cineastas incoformistas, verdadeiros, inovadores. Votar por um país em que as pessoas não se vendam nem se comprem, em situação alguma, por coisa alguma, mesmo que esteja em risco a sua própria sobrevivência. Votar pela coragem de enfrentar barões e baronesas, desafiar os instalados, confrontar os corruptos.
~CC~

Nota: Este ano voto na cidade onde moro há cinco anos, pelo menos isso tem a frescura de uma primeira vez.

quinta-feira, setembro 24, 2009

Mais um ano lectivo

O que eu queria no início do ano lectivo? Que os olhos deles brilhassem um pouco mais. Parecem cansados de um mundo que ainda não viveram, mal sorriem. Coloco bastante luz em cada palavra, em cada desafio. Pode ser que alguma coisa se acenda dentro de alguém.
~CC~


Nota: Como tenho uma cadeira sobre Redes Sociais, embora muito mais vocacionada para as redes de solidariedade e coesão social do que para as redes sociais virtuais, perguntei-lhes se já tinham ouvido falar de "redes". Disseram que não, não faziam a menor ideia do que fosse. E eu...e então e o twiter, o facebook, o...??? Sorriram envergonhados...creio que o mundo privado não vem à escola, é território secreto...e muito menos se discute...pois ainda abriram ainda mais os olhos quando lhes disse que devíamos debater abertamente esse modo de relação com os outros.

Viagem


Que saudades de umas asas, de umas asas grandes e volumosas, de um vento enorme e doce capaz de ser uma viagem. Que saudades de um bater de coração forte, capaz de se abater sobre o quotidiano e de o abanar com a sua vertigem. Que saudades dos campos amarelos e vermelhos deslubrantes em certos Outonos, capazes de fazer da vida a essência do poema. Que saudades de mim com olhos lavados pela beleza das paisagens e das casas e a pele raspada pelas ervas aromáticas. De todas as coisas, apenas as que chegam inteiras por todos os cinco sentidos são o voo pelo laranja azul palpitante. Podia fazer da viagem a minha rotina, e das pausas esse saber que há um poiso para retornar e corações para os quais voltar. Não vi quase nada do mundo ainda, e tudo ainda queria ver. Não vi quase nada do mundo, e há tantos lugares aos quais desejo voltar. Não me vi ainda quase nada no mundo, e de tudo de mim ainda queria saber.


~CC~

terça-feira, setembro 22, 2009

Quatrocinco

Já hoje estive na praia e contei quatro e cinco ondas e mergulhei nelas os meus pés. Encontrei um seixo preto em forma de coração na areia molhada, se calhar era o meu. Estou viva e é bom.
~CC~

sábado, setembro 19, 2009

Outono

Não me apetece agora ir assim para fora de mim, ocupar o centro e as luzes, mesmo que me digas que posso sentar-me na coxia, assim sem quase ninguém dar por mim. Eles podem não dar por mim, mas eu darei por mim própria. Eu darei pela minha crónica falta de jeito para certos lugares da academia, pelo enrolar da minha língua ao falar qualquer outra que não seja a minha, pela minha inabilidade total para o fingimento, eu não poderei afirmar com certeza o lugar da ciência em mim, nem dar importância ao que faço. O que me sobrou foi apenas o gosto pelo observar do mundo, pela escuta das palavras, pelo que transparece nos olhares. O gosto por construir as narrativas cruzadas em que o saber mora apenas nas esquinas das palavras. É impossível a escrita fria, é impossível ser o que me pedem. Vou esquivando-me, morando num corredor, andando de cá para lá. E só quando sou puxada para um dos lados, é que percebo o quanto me custa.


E além do mais o Verão está a acabar e bem sabes que no Outono ainda menos me apetece sair de mim. E nesta altura, voltam inteiros os sonhos com as estações de comboio abandonadas transformadas em estações de prova de chás e estufas inglesas. Volta um eu metido em si como um búzio.
~CC~

sexta-feira, setembro 18, 2009

Abraços

É um clássico, a mulher e o homem abraçados, aninhados numa praia deserta, onde as ondas batem forte. Lá a areia é escura, o vento forte, o mar agreste. As figuras parecem muito pequenas na imensidão da natureza e como tal agarram-se mais uma à outra. Não é apenas a natureza que os assusta, também a maldade do homem que os persegue. Nada desperta mais ódio alheio do que o amor, especialmente daqueles que não o podem ou não conseguem ter.

É verdade que Abraços desfeitos corresponde ao que se espera do realizador, repete fotograma por fotograma tudo o que sabemos dele. E é previsível sim, esperamos que aconteça quase tudo o que vem a acontecer. Mas não me importei, gosto de saber com o que conto. E ele é um amor consolidado, um abraço que não me parece que algum filme possa vir a desfazer. Bonito, este filme. Ainda assim, não me parece que possa roubar do meu coração o primeiro lugar do "Fala com ela", porque a vida a vencer a morte é coisa que mais esperança me traz.
~CC~

terça-feira, setembro 15, 2009

Azul


Eu tive um sonho, desses de se ter acordado, que viveu comigo quase a vida toda. Um dia, sem dar conta, já não o tinha. Tinha-se perdido devagarinho enrolado no pó dos dias. Crescer para mim foi também arrumar alguns dos muitos sonhos que trazia.

Ontem eles falaram-me dele enquanto caminhavámos junto do estuário do rio Sado, falaram dele como se fosse possível, e sonharam-no para mim. Era de mim que falavam e das minhas histórias, das histórias que fui deixando para trás, sempre depois de qualquer coisa, quase todas inacabadas. Será que os outros sabem mais de nós do que nós próprios, ou será que com certas nuances de luz os nossos olhos se tornam transparentes até à adolescência?
~CC~

segunda-feira, setembro 14, 2009

Branco (II)

Branco deveria ser o nome do livro de Siri Hustvedt, que na verdade se intitula "Elegia para um americano". A escritora, apesar de ter identidade que sobre, figura sempre, mesmo que disfarçadamente, como mulher de Paul Auster. É um romance psicanalítico, categoria literária inexistente mas a que melhor serve a esta obra. Não é portanto fácil de ler, é preciso gostar de sombras, de sonhos, de memórias e sobretudo de ler sinais, coisas pequenas que deixam trilhos da maior importância.

Mas há muito que não lia alguma coisa que me deixasse tão inquieta e tão desperta, que tão bem falasse da ténue separação entre estar de saúde e estar louco, do bocadinho de amor e de ódio que cada um guarda, da cabeça a pensar uma coisa enquanto as palavras têm forçosamente que dizer outra. A mentira e a dúvida são como um spray corrosivo capazes de minar qualquer relação, mesmo que elas se localizem num passado distante mas, ao mesmo tempo e lado a lado, há elos, como a mão que une o irmão à irmã, que são como poeira de luz.
~CC~

domingo, setembro 13, 2009

Branco

Tenho sonhado muito por causa da trovoada. Ou melhor, ela interrompe-me o sono e por isso acordo várias vezes e lembro-me dos sonhos. A noite passada estava numa sala cheia de alunos recém entrados no Ensino Superior. Quem os recebia era uma colega minha, simpática e afável, igual ao que na realidade é. Eu estava sentada na sala como se fosse uma sombra, era o que desejava ser, ver sem que ninguém me visse. Mas a colega deu por mim e resolveu-me apresentar-me aos alunos. E eu interrompi-a histérica, dizendo que não era professora, mas sim uma aluna, eu era eternamente e sempre uma aluna. Os miúdos abafavam o riso.

Tenho que acabar rapidamente esta tese.
~CC~

sexta-feira, setembro 11, 2009

Salvações

É certo que não evitam a depressão pós férias que começa logo de manhã por ter que vestir roupa minimamente decente, mas a sua existência ajuda a gostar mais do mundo. Nem preciso de correntes para os indicar.

http://janela48.blogspot.com/
http://arspoetica-lp.blogspot.com/
http://elefante-branco.blogspot.com/

~CC~

quinta-feira, setembro 10, 2009

Crónicas das águas balneares (III) (de memória)


Não diria todos, mas muitos homens têm o estranho hábito de ficar em pé na praia. Ficam lado a lado, mais longe ou mais perto do mar, conversando com os olhos fixos nas ondas, também raramente olham uns para os outros nesses diálogos em surdina. Estes dois tinham uns vinte anos de diferença mas uma pose tão idêntica que os julguei pai e filho. O mais velho cobrava uma divída ao mais novo, tratava-se de uma renda de uma casa ou de um espaço comercial, qualquer coisa que já ia para três meses. Não alteravam a voz nem se angustiavam, havia uma frieza assustadora na entoação, claramente dissonante do conteúdo da conversa. O mais velho queria saber quando e como ia receber. O mais novo dizia que não podia prometer. O mais velho dizia que assim não podia ser, que precisava de um compromisso. O mais novo pedia mais tempo, o mais velho dizia que não podia lhe dar mais tempo. O dia não podia estar mais quente, o mar mais azul, o cenário não poderia ser menos apropriado para a guerra sem armas que ali se travava. Ao lado as mulheres pareciam as melhores amigas do mundo, riam e trocavam comentários sobre a miúda que enchia de areia o balde.

Levei o mês de Agosto a ter pesadelos com estas personagens, evidentemente com rostos conhecidos, às vezes eu própria o homem mais novo, nunca o mais velho.
~CC~

terça-feira, setembro 08, 2009

Velhos nossos

Eles adoecem-nos os nossos velhos, adoecem os nossos dias com a sua fraqueza, os seus olhos baços, as suas histórias repetidas e sempre por contar. Eles adoecem-nos com a sua memória a falhar, o seu corpo mole, o seu egocentrismo repentino. Não sabemos o que fazer deles, agora que interrompem com as suas maleitas os afazeres múltiplos da nossa idade adulta, que nos atrapalham os dias com a sua solidão, com o seu abandono. Eles querem o tempo que não temos, a atenção que já não conseguimos dar-lhes. Temos filhos ainda crianças e ainda adolescentes, e é para eles que canalizamos atenção e energias, o nosso afecto. Mas os nossos, velhos estão dentro do nosso sangue e da nossa pele, e por isso paramos para os olhar por momentos breves. Nesses momentos, nesses curtos momentos, pelos meus velhos e pelos velhos pais dos meus amigos, há lágrimas que não rolam. A tristeza seca é a pior das tristezas.
~CC~

segunda-feira, setembro 07, 2009

Vermelho (I)

Os quintais na minha vida foram-se reduzindo e agora só me sobra uma varanda. Habituei o sonho à medida do meu espaço, sem nunca deixar de sonhar com a Savana. Já não tenho a Mangueira enorme à sombra da qual cresci. Não sobra nada do quintal algarvio do meu avô, onde cada vaso tinha uma cor diferente de sardinheira, todas regadas com água da cisterna. Já não tenho os pátios enormes onde, na adolescência, as vizinhas se uniam para fazer com que as borracheiras crescessem mais do que eu. Há agora ali uns vasos com plantas ortodoxas, improváveis nos apartamentos. Tenho esperado pelo vermelho com a mesma ansiedade que espero pela Primavera que as papoilas me trazem. Os morangos silvestres deram apenas flor. Já os piri-piri cobriram-se de flores em Maio. E agora, no regresso, há duas bagas vermelhas e luzídias. É verdade que as flores eram muito mais. Mas duas bagas chegam para tornar picante o caril. Vermelho é o que preciso. Vermelho picante e vivo.
~CC~

Vermelho


~CC~

domingo, setembro 06, 2009

Grão de areia

Foi um grão de areia, parecia pequeno, inodoro e quase incolor, absolutamente incapaz de se alojar na minha pele. Mas ficou, colou-se a mim, entrou nos olhos a fazer-me lacrimejar. Parecia um nada arrumado, um tempo arquivado, uma palavra vazia. E, no entanto, desarrumou o passado, perturbou o presente, infiltrou-se no futuro.
~CC~

quarta-feira, setembro 02, 2009

Dias mais curtos

Não são só os pequeninos problemas a chegar, um a um, invandindo a luz dos dias. Não são só os primeiros telefonemas de trabalho. Não é só a campanha para as legislativas ter começado e ter de me confrontar com os políticos em passeios pela rua principal da cidade, de repende arredada da sua tranquilidade morna e doce. É, além disso, ter de me confrontar com o fim das melancias, com as bolas de berlim a aparecer na praia apenas ao fim de semana, com os dias cada vez mais curtos. É isto de ter frio mal se chega às 19h e pensar em ter de levar o casaco para sair à noite. Resta-me dizer que apesar disso o mar tem estado maravilhosamente quente e que a luz de fim de tarde sobre a Ria Formosa é ainda bela de cortar a respiração. É ainda o regresso a adiar-se nesta infinita preguiça.
~CC~

Fotograma (II)

Creio que terá sido na edicão de Sexta do Público da última semana ou talvez na de Domingo, ou talvez na semana anterior. Nas férias que já não são, mas em que as rotinas ainda não voltaram inteiramente, é difícil acertar com os dias. O que importa é que o jornalista Paulo Moura conta que uma mulher num país distante e dilacerado por conflitos vários o chamou, em plena rua, para contar a sua história. E ele que tanto desejava saber como viviam as mulheres naquele país, ligou maravilhado e expectante o seu gravador. E a mulher contava e contava e a entrevista durou dias e dias e cada vez ela contava coisas mais fascinantes mas também mais privadas. E ele mudou o rumo a todo o seu trabalho, centrando-o na história fascinante daquela mulher. E perguntou-lhe várias vezes se ela autorizava que se publicasse aquele material e ela disse sempre que sim. Dois ou três dias antes, num momento em que a reportagem já estava feita e pronta a publicar, ela ligou-lhe para anular tudo. E apesar dele lhe ter tido que era impossível anular a edição naquela fase, acabou mesmo por o fazer, dilacerado pelo medo do mal que tais revelações poderiam causar à mulher.

São também feitos dessa mesma angústia os meus dias a transcrever entrevistas ou a fazer a sua revisão. Espanto-me com o que as pessoas foram capazes de revelar e dizer, com a sua vida profissional inteira ali dita...e longos silêncios, por vezes emocionados, complicados. E quando as leio, penso logo no que virá cortado a vermelho por elas próprias no momento em que as devolver, no momento em que elas se confrontarem com o que disseram. É dramático que o que me parece mais rico e interessante é também o que é mais susceptível de auto-censura. E sinto o conflito ético, não me apetece que me roubem deste material o que nele é explosão, ruído, onda. E, no entanto, sei que tenho que o fazer. Resta-me a esperança que fiquem algumas ondinhas, não pela perturbação, pela conflitualidade, mas porque na praia há maré cheia e maré vaza e um milhar de nuances entre elas.
~CC~