terça-feira, dezembro 29, 2009

Desejo(s)

Leio a lista de desejos do ano passado e percebo claramente que a maior parte não foram cumpridos. Lamento um ou dois, mas não me importo quanto aos outros. Sei que os acalento em mim por muito tempo, deixo-os a madurar, concebo-os em planos secretos, dou-lhes lume. Provavelmente alguns morrerão comigo como sempre foram, como lugares onde depositei os meus sonhos, integrados nas minhas células, misturados no meu sangue. Outros tomarão a forma do meu envelhecimento, mudando as suas nuances como se fossem as cores do cabelo ou dos olhos. E um ao outro virão ao rosto como um riso inteiro e grande na hora em que se cumprirem.

Certo é que toda a vida desejei, e isso é mesmo o mais importante, a forma como o desejo foi sempre em mim luz, a própria arquitectura da vontade da vida. E é apenas isso que não quero perder.
~CC~

(E um 2010 bem bom a todos os amigos e conhecidos que passam pela Ardósia)

quarta-feira, dezembro 23, 2009

Cheiro a laranja (II)


Umas semanas antes tinha andado a fotografá-las nas ruas de Vila Viçosa. À procura do sol no Inverno.
~CC~

terça-feira, dezembro 22, 2009

Cheiro a laranja

Trazemos amarrados a nós cheiros e sabores que fazem tão parte de nós como a cor dos cabelos ou dos olhos. Por isso neste lugar chamado família não há Natal sem cheiro a laranja açucarada. Senti-o hoje ao chegar a casa vinda de um dia adverso, em que por um momento me senti tão perdida que não tive certeza se conseguiria achar o caminho de casa. E depois entrei aqui, na meu apartamento pequenino, nesta cidade que me alojou, e cheirava ao pudim de laranja que me lembro fazer parte de todos, todos os Natais. Era a minha mãe que o tinha acabado de tirar do forno, 82 anos inteiros e faladores, a dizer-nos que ainda está ali, que haverá sobremesa para o dia 24, a mesma, a que todos adoramos. Ajudei-a no segundo doce eterno na nossa mesa: a torta de cenoura. E tive a certeza que é nestes gestos pequenos que nos fazemos gente.
~CC~

segunda-feira, dezembro 21, 2009

Inquietude

Também senti medo, há muito que tenho medo dos sismos. Todas as noites quando me apetece dormir nua, e é quase sempre apesar do frio, penso neles. Penso que se tiver que sair a correr, não quero mostrar a minha nudez ao mundo, e assim visto pelo menos uma camisola, uma camisa de dormir, um pano qualquer. Mas quando penso no medo, nunca penso nos sismos, penso mesmo na violência de que os homens são capazes, isso sim é mais assustador do que o rugir da natureza.

Vi Ágora presa na dor desse confronto com a violência dos homens, fechando os olhos perante a barbaridade que é capaz de habitar um olhar, atónita perante o contágio da raiva, a nódoa a alastrar impossível de conter. Chamar religião a qualquer coisa que tem tanto ódio dentro só pode ser a verdadeira blasfémia. Vemos como esse mal é capaz de viver em todos as religiões e como é paradoxal fazer tanto mal em nome do bem.

E também abri os olhos extasiada para ver as estrelas brilhar intensamente dentro do coração de uma mulher, fui com ela nessa viagem pelo universo cheia de perguntas, ainda e sempre cheia de perguntas. Senti-me reconciliada com a Ciência, não obstante duvidar tantas vezes dela. Mas a busca do saber é um infinito bem, sobretudo se ela se faz na humildade de entender cada resposta como apenas um momento de apaziguar a inquietude antes de partir de novo.

~CC~

sexta-feira, dezembro 18, 2009

Outro Natal


Os meninos da Ilha do Ibo (Quirimbas, Moçambique), todo o tempo a comer mangas acabadas de cair ao chão. Mesmo assim de olhos negros e abertos a olhar para nós, nada sabemos realmente sobre a forma de bater do seu coração. Fazem-me saudades da minha infância, da mangueira do meu quintal, das lâmpadas vermelhas e amarelas (sim, não eram luzinhas, eram mesmo lâmpadas) com que cobríamos as árvores no Natal, do frango de churrasco com muito piri piri. Saudades dos corpos descobertos no calor imenso de Dezembro.
~CC~

quarta-feira, dezembro 16, 2009

Chocolates (II)

Entro pouco naquele supermercado porque detesto o seu aspecto sujo e desleixado e não consigo ser indiferente às velhotas que se arrastam por lá de robe e pantufas, como quase nunca trazem os óculos que aliás de pouco já lhes podem valer, querem saber o preço de cada coisa, e abrem as carteiras para ver se trazem o dinheiro suficiente. Sei o que é contar o dinheiro para comprar qualquer coisa no supermercado e por isso elas provocam-me muita dor. Há também muitas mulheres e homens alimentados pelo rendimento minímo ou pelo subsídio de desemprego que por lá se demoram estudando bem cada coisa a trazer. E ontem, o rapaz.

O rapaz devia ter a idade da minha filha ou pouco mais, e vestia-se como ela, de forma escorreita e simples, mas não parecia pobre. Mas o que podemos realmente inferir da aparência de alguém? Estava parado sozinho em frente à prateleira dos chocolates e colocou um dentro de cada bolso do casaco. Viu-me e eu vi-o e ele viu que eu tinha visto o que ele fazia. Baixei os olhos e passei por ele sem uma palavra. Podia ter-lhe dito que sei como é, também sei como é não poder pedir dinheiro nem o ter para chocolates. Há muito que não via ninguém a roubar no supermercado, pensei que já nem era possível com os códigos de barras.

A verdade é que nem me passou pela cabeça denunciar o rapaz, era como se eu estivesse inequivocamente do lado dele, por mais que roubar não seja coisa a aprovar no meu código de valores.
~CC~

Chocolates

Dezembro também é mês de chocolates, pelo menos deste lado do Equador, já que do outro há demasiado calor para tanto doce.

Nunca fui das adictas do chocolate, mas há muito que me deixo perder pela magia das caixas grandes, daquelas enormes com vários andares e muitos feitios diferentes, mais presa pelo mistério de não saber o que lá vai dentro do que pela antevisão dos sabores reais. O que me fascina são os desenhos, as cores, os papéis que os embrulham, as hipóteses que se colocam para os recheios. Uma caixa de chocolates é um mistério a descobrir lentamente, onde cada bombom pode ser inteiramente diferente do outro, é uma espécie de viagem à sensibilidade do nosso paladar, é um jogo.

Ando com vontade de comprar uma para oferecer, e penso que uma parte dos nossos presentes tem tanto disto, do que também um dia sonhámos receber. E às vezes nem o queremos realmente, gostamos de acalentar aquele desejo, mais do que de o concretizar. É como se o desejo de alguma coisa fosse connosco a acompanhar-nos pela vida, fazendo desse modo parte dela.
~CC~

segunda-feira, dezembro 14, 2009

Dezembro

Na semana passada, demos a volta de carro com os mais velhos à cidade de provincia que o presidente diz querer tornar a capital do sul, embora há muito o seja. Este ano são notícia as luzes de baixo consumo, mas para quem as pensaria menos brilhantes, não são. Está bonita a baixa da cidade, quase toda em luz azul, acho-a mesmo com mais encanto do que em anos anteriores e muito mais luminosa, excepção aos tapetes vermelhos pirosos que cobrem o chão das ruas principais. Sinto-me que uma parte de mim está ali, sei onde ficam as coisas e quais são os melhores lugares para tomar café e comprar o jornal.
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No sábado quis mostrar à adolescente as luzes da baixa lisboeta, agora que ela começa a achar a cidade bonita e que desfeita a vida que lá vivi entre filas intermináveis, também gosto mais dela. Mas ou os meus olhos se tornaram mais exigentes, ou não vi nas meia dúzia de ruas iluminadas grande fulgor ou beleza, pareceu-me tudo muito inferior a outros anos e até ao brilho da pequena cidade do sul. Desde que venderam as árvores de Natal às operadoras de telemóvel e afins, olho para elas com uma suspeita que dantes não tinha. A noite já tinha sido salva pela orquestra juvenil da cidade de Lisboa e pelos três coros que se lhe juntaram para fazer da aula magna uma festa linda inspirada em Verdi. Lá no meio, sentada entre os jovens, a nossa amiga mais velha, tinha um sorriso grande e generoso, por mais que se mantivesse séria e concentrada na sua função.

Cheirei quase vinte perfumes na perfumaria para escolher os adequados, e deixei na mala os papelinhos perfumados numa mistura de odores perfeita para os sentimentos ambiguos que o mês de Dezembro me desperta. Tudo isto nos pode parecer um gigantesco circo comercial que importaria recusar, ainda para mais quando a religião não faz efectivamente parte das nossas vidas e quando sabemos hoje que Cristo nasceu em meados de Abril, quando sabemos que tudo não passa de uma construção mais ou menos artificial, montada com propósitos vários.

Mas há uma parte de mim efectivamente rendida ao brilho destas luzes que iluminam as noites frias de Dezembro, e tiro um a um os papelinhos perfumados tentando reconhecer o cheiro dos que efectivamente comprei. Pensei em determinadas pessoas ao comprá-los, de como gostam de andar perfumadas e de como as gosto de sentir assim, logo eu que praticamente não uso perfumes. Talvez seja isto, talvez nos faça pensar nas pessoas a quem damos presentes.
~CC~

sexta-feira, dezembro 11, 2009

Fazer a diferença (II)

Na escola pobre, no bairro onde viveram os meus avós, as gaivotas dipustam entre elas as migalhas no pátio onde os meninos brincaram. Vou com o director conhecer todas as salas, todas as professoras. Mas só me lembro dela. Esteve desde o início do ano a trabalhar numa salinha improvisada num vão se escada, mas nunca deixou de lado o seu sorriso e energia. Agora alugaram um contentor branco, com quatro janelas e uma promessa de ar condicionado quando vier o calor. É bom, muito bom, diz ela sem nunca perder o brilho dos olhos. Para muitos outros aquilo é uma desgraça, os meninos, os pais, tudo é uma desgraça. Para ela é matéria prima, é desafio, é saber a constuir devagarinho, sem desistência.

Diz-me que não pode vir hoje à reunião porque tem que ir finalizar o processo de adopção que iniciou há uns meses. Pergunto pela criança, e ela diz-me que não é uma criança, é uma rapariga de 16 anos. Espantou-me com a coragem de alguém que adopta uma rapariga de 16 anos quando a maioria dos casais sinaliza até aos três anos. Penso que não terá filhos, por isso tal bondade. Ela ri, tem dois rapazes já crescidos.

Sinto-me feliz com a diferença delas, aí reside a esperança.
~CC~

terça-feira, dezembro 08, 2009

Bairro

É verdade que o prédio é novo e bonito e que tem vista para a baía, para essa língua luminosa de azul de diversos cambientes pintados através da luz do céu. Vive, no entanto, entre dois bairros sociais, na parte escondida da cidade. É por isso que vejo a família cigana carregada de preto subindo a rua até ao cemitério, que me cruzo pela manhã com as velhotas de pantufas e robe que me sorriem em silêncio, e que logo cedo há gente a beber neste misto de cafés-tabernas que há em cada esquina. Os pijamas estão sempre em saldo no pronto a vestir, a loja indiana vende várias pós que juntos dão o verdadeiro caril, do mini mercado chega um cheiro a pão, e a igreja tem um cordão de luzes assim que cai a noite. Na esplanada do café, um rapaz brasileiro na casa dos vinte diz a uma portuguesa da mesma idade:

- É Natal e quero dar-te uma coisa.
- A mim? Eu não quero nada...

(a amiga que também está na mesa sorri matreiramente)

- Não tenho cá ninguém, quero dar-te uma coisa a ti.
- E a tua mãe, quando vem?
- Estou a juntar o dinheiro para ela vir, são seis meses, já fiz as contas...
(que pena não conseguir juntar a pronúncia dele nesta escrita, era doce, cantante, cheia de esperança).

Gosto tanto daqui.

(talvez nunca pare de procurar a minha casa).

~CC~

quinta-feira, dezembro 03, 2009

Nas mãos da Sophia


Se a palavra começar tem sentido quando há muito devia ter começado as 300 páginas da escrita académica conducente ao grau que tornará a palavra emprego mais possível, é ali que quero começar. Tenho um ano apenas diante de mim, por isso escolho a companhia da Sophia, da inspiração das suas mãos, ali onde o mar me parece tão azul como os olhos dela.

Numa casa que há muito está à venda não há Internet nem canais variados, nem rádio, nem música. Tenho apenas os ciprestes do pequeno e velho cemitério, alguns ruídos de crianças a brincar na rua e a vista para Meia Praia, onde vejo ainda a sombra dos Indios do Zeca na espuma do mar. E imagino o som das ondas como a música que ficará registada na minha escrita, mesmo que o júri nunca a possa ouvir.

Não sei quantas vezes irei, nem quanto tempo lá passarei, desta vez será provavelmente pouco tempo mas gostava de o aumentar mais e mais. Dos ecos desse tempo poucas notas haverá aqui, escreverei, por força das circunstâncias, menos nesta ardósia. Mas virei por certo algumas vezes alimentar o caderno público dos meus tempos e modos interiores, porque quero uma clasura com janelas. E ler, e saber de vós.
~CC~

Calipolenses


Contemplava como qualquer turista tonto a beleza das laranjeiras que inundam a vila branca, pensando como é possível termos estes frutos sumarentos em pleno Inverno. Foi então que eles passaram, dois homens com cerca de cinquenta anos, um deles caminhava atrás do outro tentando seguir o seu passo apressado. E não pude evitar escutar, num tempo em que este verbo só tem conotações negativas, ainda acredito que é uma arte.

- Então homem como é que isso vai?
- Vai mal!
- Mas o que é que vai mal?
- Tudo, tudo redondamente mal
- Bebe um copo que isso passa...
- Isso já eu faço...

E depois fez-se silêncio entre eles.
~CC~

terça-feira, dezembro 01, 2009

Companhia



Ter companhia é muito mais que não estar sozinho. Na paisagem branca deste Alentejo toldado pelo frio e pela chuva é o calor que acontece quando se partilha o silêncio, a palavra e o riso. E é certo que é isso que corta a tristeza ao meio e a desmancha como uma manta de trapos.
~CC~