domingo, agosto 30, 2009

Fotograma (I)



Não tenho mais dúvidas, os melhores filmes que vi na vida, vi-os nos ciclos de cinema dos cineclubes, nos festivais de cinema (como o FESTRÓIA) ou nas salas esconsas de velhos cinemas onde as pipocas ainda não entram (como o CHARLOT em Setúbal ou o Auditório municipal do Pinhal Novo, infelizmente quase sempre deserto ). Tirando o King por ter ainda filmes que não é possível ver em mais lado nenhum (aterrador o belissímo Home, a valer a ida a Lisboa) e o Londres por ter para mim especial significado simbólico, já quase não vou a outros cinemas.


Nessa demanda pelas margens, tenho supresas absolutamente maravilhosas como o ciclo de cinema iraniano feito pelo Cineclube de Faro no Pátio das Letras. Cinema ao ar livre, no pátio amarelo das figueiras, em noites quentes de Agosto.

A beleza foi em crescendo, começou com o primeiro filme sobre os professores que levam quadros às costas à procura de crianças que possam ensinar pelos montes e vales tortuosos de um país, em troca de umas moedas ou simplesmente de um pouco de pão (O quadro negro). Seguiu para Persepólis, ao qual levei as adolescentes, as quais se confrontaram com o que é crescer do outro lado do mundo, de um mundo duplo, onde a opressão se vive fora de casa e a liberdade se procura lá dentro. E culminou no poema absoluto que é Gabbeh, o trilho de vidas fiadas em tapetes pelo passar das estações. Calo-me no final de um filme belo, sinto que fico sem respiração, ou então apetece-me chorar. Não são as lágrimas da emoção de uma cena comovente, é outra coisa, são as lágrimas associadas à beleza contida em cada fotograma.


"Um gabbeh é como um fotograma congelado de uma parte da vida, como a página de um livro, como o troço de um hieróglifo tecido, um fragmento de um velho código.No sudeste do Irão, as tribos nómadas especializadas em tecer o gabbeh estão em vias de extinção."


Sinopse do filme no catálogo Atlanta.


~CC~


sábado, agosto 29, 2009

Recados (I)

Bom, caso o senhor não saiba, não há na arquitectura moderna uma tendência acentuada para criar nas casas de banho portas dissimuladas que escondem mini escritórios, até agora inventavam-se apenas prateleiras para colocar jornais e livros, já que muitos não passam sem a sua leitura. A escrita de notas da vida empresarial não era propriamente um costume, mas sabemos que os costumes mudam e que a arquitectura e mesmo o design de interiores tornarão tendências alguns dos novos modos de vida no quotidiano.
~CC~

terça-feira, agosto 25, 2009

Modos de voltar

Tenho os meus modos de voltar, queria ter ainda mais livres os meus modos de voltar. Posso voltar sem estar. Trago o computador para o Pátio das Letras (Faro), uma livraria muito bonita com um pátio cheio de figueiras e nespereiras e paredes pintadas de amarelo ocre. Leio os documentos em Inglês Hungaro, qualquer coisa estranha é verdade. Não menos estranha que o trabalho que ando a fazer, uma tese que começou uma coisa, agora é outra e não sei como irá acabar. Mas sei que gosto disto, que agora poderia fazer só isto, andar pelo país todo a descobrir pátios onde me pudesse abrigar a ler e a escrever. O único intervalo desta liberdade deveria ser para o amor, para amar de pele e abraços os que tanto quero.
~CC~

sábado, agosto 22, 2009

Crónicas das águas termais

Nas partes mais escuras não se vê o fundo, cheira a terra, há alfaiates pousados nas partes mais calmas. Quase não há vozes. Fica por trilhar a rota dos Laranjais e a rota do Linho, não há turismo para estas propostas. Está tudo na praia. Também pensei muito nela quando aqui fez frio e choveu. Cheira a terra, às vezes a rosas silvestres.
~CC~

quarta-feira, agosto 19, 2009

Crónicas das águas balneares (II)



A família era grande, percebi vários casais, tios e sobrinhas e pelo menos uma avó. Parecia muito comum, situada numa classe média segura, sem ameças de desemprego ou grandes fantasmas. O homem parecia um garotinho, mas alguns cabelos brancos e uma barriguinha em franco crescimento denunciavam os quarenta. Informava os presentes do seu projecto de vida: reformar-se aos 65 e ir para um país subdesenvolvido e quente. Havia mais: encontrar uma rapariga com menos 20 ou 3o com quem viver, porque nessas paragens é melhor primar pelo sexo seguro. E depois ela poderia tomar conta da casa, deixando-o livre dessas preocupações. E estando certo que ela não o amaria, haveria de lhe estar agradecida por a ter roubado a um destino de miséria. Passaria os dias debaixo de sol e a banhos em água tépida. Estava cada dia mais certo que a vida no Ocidente não interessava a ninguém.

E se a família não parecia entusiamada com o projecto também não lhe teciam qualquer crítica, sorriam meio divertidos, indecisos quanto à seriedade de tal projecto de vida. Já eu estava certa de que o seu cinismo deveria levá-lo até qualquer lugar bem gelado, de preferência antes da reforma.
~CC~

terça-feira, agosto 18, 2009

Crónicas das águas balneares

A mulher perguntou um a um aos maridos das amigas presentes debaixo dos dois chapéus de marcas de cerveja se eles já tinham olhado para outras mulheres na praia, outras para além das esposas. Um a um, uns indecisos e medrosos, outros seguros e assertivos, todos responderam afirmativamente. E então ela lamentou-se baixinho: só o meu diz que não, só o meu mente.
~CC~

segunda-feira, agosto 17, 2009

Lugar

Perdi-me duas vezes hoje na cidade onde moro, perdi duas vezes o caminho de casa. Não sei se fiquei tempo demais longe daqui ou se sou mesmo assim, se perder-me é a minha natureza.

Não sei se afinal já moro numa outra casa. Não sei se o que mais gosto na palavra morar é afinal poder ir e vir, como se a errância fosse afinal o meu lugar. Ou talvez procure saber se ficar é afinal o lugar, talvez precise saber. Ainda são verdadeiras as palavras que te disse numa noite quente: desde que perdi abruptamente a casa da minha infância, nunca mais morei em nenhuma, ou nunca mais fui de nenhuma. Ainda quero ter uma.
~CC~

quinta-feira, agosto 13, 2009

Breves (IV)

Ontem vi uma estrela cadente, riscou o ceú nocturno no espanto do meu olhar. Há cinco anos que não via uma, a última caiu-me nos olhos no Agosto quente alentejano, um tempo imenso de solidão.
~CC~

sexta-feira, agosto 07, 2009

Breves com destinatário (III)

Em Agosto, em 1972 em Luanda, parte dos nossos dias eram gastos a olhar peça a peça o enxoval maravilhoso que tinhas ganho. Nunca nenhum de nós tinha tido aquelas roupas tão alvas e rendadas, coisas de uma pequena princesa. Diziam-me muitas vezes que por tu nasceres eu deixaria de ser alvo de atenção: deixas de ser a pequenina. Não sentia nenhum ciúme, e por isso aquelas palavras eram estranhas ao meu coração, sempre foram. No meio da tempestade, da penúria, da desagregação, tu eras a pequena princesa que chegava, uma pequena luz. E é assim, que mesmo no escuro dos dias, te deves sempre sentir, tal e qual como chegaste aos nossos corações.
~CC~

segunda-feira, agosto 03, 2009

Breves (II)

Procuramos o laranja para a parede. O Verão está cheio de trabalhos outros, tão intensos que o corpo moído adormece rápido no lençol quente. Era suposto descansar, era suposto. Mas espreita a tinta desbotada da parede e a sala parece triste, incombinável com a alegria dos dias de sol. Ela é de repente um passado que me aprisona.

Havia um laranja no crepúsculo em África que era único no seu pastel escuro e intenso, é isso que procuro, como quem procura toda a sua infância para a trazer para uma parede. E ele procura um laranja luminoso, tom ocre do Mediterrâneo, talvez uma vida outra que viveu. Ou um futuro, talvez procure a luz de um futuro, o que está ainda por acontecer.


Custa quase tanto encontrar o laranja certo para a parede branca como custa construir o amor. Está uma pincelada na parede branca e gosto daquela cor ocre. Talvez exista um laranja Mediterrâneo dentro de mim e eu o desconheça.
~CC~

domingo, agosto 02, 2009

Breves (I)

Poucas vezes tenho a certeza que estou feliz, que estou mesmo feliz. Essa memória, mesmo que seja a de ontem, está quase invariavelmente ligada ao mar, à entrada na água salgada. E é preciso que seja Verão, no Inverno o mar é belo, mas não costuma invadir-me a pele.
~CC~