Dona Matilde não quis viver mais desde o mês em que a figura já magra e curvada dele não apareceu à sexta feira, hora marcada pelas 9h30m, ainda os correios não se tinham animado com gente a vir buscar encomendas e pensões, já que cartas eram raras. Eram poucos os seus motivos de vida, uma solidão inteira espraiada no balcão, a tentar habituar-se com dificuldade a todos os botões electrónicos que tinham passado a substituir os bons dias. As senhas mudavam de cor com os dias da semana, já a sua dificuldade em avistar com clareza o visor, essa não mudava.
Tinha atendido o senhor Jacinto durante aqueles 20 anos em que ali estivera e ele também. Tinha sido logo no primeiro ano de atendimento que intrigada com o misterioso senhor das sextas feiras tinha guardado delicadamente a carta por baixo do balcão e depois no bolso da bata. O coração saltava-lhe do peito mal se sentou no sofá da sua sala e a abriu. Um bilhete com apenas uma frase e uma nota. A frase nunca mudou - querida, nunca me esqueci de ti. A nota, primeiro de escudos e depois de euros combinava mal com o romance que D. Matilde tinha decidido partilhar. Não se envia uma nota de baixo valor com uma frase para uma amada distante. O registo da carta chegou a aproximar-se do valor da nota, coisa que D. Matilde não podia dizer ao senhor Jacinto. Um dia atreveu-se: senhor, um registo por semana é muito caro, porque não envia o senhor assim mesmo, com certeza chegará ao seu destino. E ele que não, que não podia ser, que a carta era valiosa.
No primeiro ano ela enviou regularmente a carta com o dinheiro. Entre o segundo e o décimo ano levou-as para casa e guardou-as juntamente com o dinheiro numa caixinha que etiquetou como: senhor Jacinto. No décimo primeiro ano ficou com medo por causa de umas notícias de corrupção de funcionários dos correios e voltou a enviá-las e assim o fez até ao fim. De notar que era cada vez mais complexo roubar cartas com os registos electrónicos. O pequeno delito que cometeu entre o segundo e o décimo ano totalizou um valor que nunca chegou sequer a contar. Nesse dia em que o senhor Jacinto não apareceu mais, essa sexta feira de chuva intensa, ela chegou a casa mortificada com o seu roubo. Fez um pacote com as cartas que sabia serem todas iguais e com um valor em dinheiro idêntico e escreveu o nome e morada que tinha visto todos esses anos: Amélinha Dias, Rua de Baixo, nº 1 Rio Vermelho, 7655- 002 Portugal. Acrescentou um papel com a sua letra: minha querida, desculpa por todos estes anos em que guardei para mim o que era teu, também gosto muito de ti.
Depois pensou no rio e em quanto tempo o seu corpo, uma vez deitado à agua, levaria a chegar ao mar.
~CC~