sábado, janeiro 31, 2009

Olhar mais para o céu

É já hoje na casa da música no Porto a abertura do AIA 2009. Máximo Ferreira, que esteve connosco na última Quarta Feira, disse de forma simples qual era o objectivo desta iniciativa: é pôr as pessoas a olhar mais para o céu. E nas última palavras: vocês ensinem os miúdos a ver, a observar e a pôr em causa estas nossas almas geocêntricas.

E falou duas horas sobre o Universo, convencendo todos que a Astronomia é a ciência que mais se aproxima da poesia. Eu saí de lá à procura das fases de Vénus, esse planeta que gira ao contrário tal e qual como quando estamos apaixonados. Vim pela noite fria a imaginar a gigantesca maternidade onde todos os dias nasce uma estrela, a lua arrastar para si a água do mar, os cometas tontos que caem nos planetas para os fazer estremecer, os lugares onde a vida se existe está tão longe de nós que caso nos vissem era na pré-história que nos situariam. Trazia comigo o sentimento de ser uma infinita particula do Universo e isso relativizava tudo, colocava as coisas numa outra dimensão e às vezes isso faz tanta falta, falta a tanta gente.

Parece que hoje também há no Porto a música das esferas. Se não a podem, como eu, ir ouvir, tentem espreitar a lua. Parece que por estes dias ela está à distância miníma a que pode estar da terra.
~CC~

quinta-feira, janeiro 29, 2009

O meu nome é Vanessa (IX)

E à terceira foi tudo ao contrário, disse a Vanessa mostrando um sorriso que achei tímido mas bonito.
Aproximei o gravador um pouco mais dela e preparei-me para o terceiro homem da Vanessa. Certo é que nessa altura já lhe tinha dito que ia ouvi-la quanto tempo quisesse porque o gravador digital, tal como as novas máquinas fotográficas, possibilitava apagar e gravar de novo sem qualquer limite. E também já tinha decidido que a vida dela não constaria em nenhuma revista sobre relações afectivas em que um dos membros do casal tinha assinalável diferença de idade em relação ao parceiro. O que faria eu com esta entrevista era coisa que não sabia ao certo.

O terceiro era um miúdo de 19 anos como eu, mas eu já era mulher e ele um miúdo que nada sabia do mundo. Eu estava no centro de formação a tirar um curso de auxiliar de educação e ele qualquer coisa de computadores. Os pais tratavam-no mais ao menos como uma planta ou um bicho, ausentavam-se os dois grandes temporadas em viagem e deixavam o frigorífico cheio. Uma vez por semana ligavam-lhe a saber se ainda não tinha morrido ou se faltava comida. Nunca percebi se tanta deslocação era por negócios lícitos ou ilícitos mas o certo é que dinheiro não lhe faltava, só mesmo tudo o resto. Agarrou-se a mim como uma lapa e eu não me esqueci mais como é ser a primeira mulher de um homem, era virgem quando me conheceu. Infelizmente o seu amor tornou-se doentio e o ciúme atormentava-o. Não sei como é que não sabemos logo quando uma pessoa é doente, mas não demorou mais que um ano a perceber. No dia em que me fechou à chave em casa percebi que não podia continuar, que tinha que o deixar. Não era, contudo, violento. Tal como tinha aparecido do nada para se apaixonar perdidamente por mim, também desapareceu sem que soubesse para onde. A partir daí a casa teve sempre as janelas fechadas. Ouvi falar em tentativa de suicídio. Depois consegui apurar que tomou uma dose enorme de comprimidos e que os pais o levaram.

Registei apenas: que os pais o levaram. E senti-me feliz por ter feito o bem a alguém.
~CC~

quarta-feira, janeiro 28, 2009

Educar

Olhar o Universo nos Claustros
Viajar no tempo


Ninguém sabe, mas nós sabemos. Poderão até ver algumas imagens mas elas não irão traduzir o que se passou dentro de nós. E daqui a muito tempo, mesmo que não sobre mais nada do que me agarra aqui, mesmo que chegue a ordem de partida, sentirei sempre orgulho por ter conseguido este brinde tão honestamente feito...começado por " professora, queremos agradecer-lhe". Sinto que pela primeira vez acreditaram ser capazes e capazes em conjunto, sinto que alguma coisa mexeu lá dentro, são eles e já são outros e outros que são melhores. Há alturas em que acho que devia chorar. Há alturas em que acho que devia falar. Mas como não consigo dizer nada, espero que eles saibam ler o brilho dos meus olhos.

~CC~

segunda-feira, janeiro 26, 2009

Prémios

Tenho uma relação complicada com os prémios interblogues. Por um lado o gosto por os receber e a ligação que nos fica a quem os dá. Não lhes posso ficar indiferente, sabem bem e aquecem como um abraço. Além desse calor, alguns manifestam também gosto e admiração pelo que escrevemos e para quem gosta de escrever isso é obviamente estimulante. Sinto esse estímulo cada vez que há um link novo, um prémio, uma citação.


Por outro lado, acho que não estamos aqui para isto, ou seja não estamos aqui a escrever para dar e ganhar prémios, não é isso que deve alimentar o que nos traz aqui. E quando chega a altura de nomear outros, o desconforto é maior ainda. Quase nunca nomeio, mas pesa-me esta consciência de ter interrompido uma cadeia, de ter quebrado um elo que alguém me passou como uma coisa importante. Como é que vocês se sentem quando recebem estes prémios?
Vou fazer apenas aquilo que sinto desejo de fazer, ou seja, agradecer:

- Ao Alexandre e à Girafa cor de Rosa, por me terem indicado para o prémio Dardos (já o tinha recebido, mas fiquei feliz na mesma).
- À Maria N, por me ter dito que "deste gostava mesmo"
- À sem se ver por me ter dado um "blog de ouro", um prémio que distingue mulheres que têm blogues que consideremos uma fonte de inspiração.


Espero que vos chegue o meu agradecimento e, além dele, o gosto que também sinto por vos ler.
~CC~

sexta-feira, janeiro 23, 2009

O meu nome é Vanessa (VIII)

Chegou, chegou mais um envelope para si! Mas quem lhe escreve assim com selo de correio e tudo? Isto já não se usa.

Era verdade, tinha chegado mais um envelope da Vanessa. O segundo me chegou...só me lembrava da música do Chico Buarque. Abri sem conseguir designar os meus sentimentos pelo que estava a acontecer. E em perfeita indecisão sobre o rumo a tomar. Continuar a ouvi-la? Dar por encerrado o caso, retirando-a da reportagem? Na verdade tinha de a terminar daí a dois dias, não chegaria para que ela me contasse sobre os oito homens que faltavam para chegar a este último. E deste eu só sabia que tinha 60 anos e a Vanessa 30, era manifestamente insuficiente para traçar o perfil de uma relação afectiva baseada na diferença de idades e era isso que era suposto fazer na reportagem.

Você sabe que eu era uma miúda da periferia, de bairro social. Aos 18 já trabalhava como empregada na fábrica dos sumos, sem nenhum horizonte que não fosse gastar ali o meu futuro. O rapaz com quem eu comecei a andar, apenas 3 anos mais velho, já era chefe da secção. Tinha tirado um curso qualquer da escola profissional. Não me apaixonei propriamente, deixei-me ir. Ele ficava para vigiar o turno da noite e depois dizia que me levava a casa, embora eu não tivesse medo nenhum. Começou a apalpar-me no carro logo da primeira vez que me levou e nunca mais parou de o fazer, sempre cada vez mais. O nosso namoro era isto, nunca me fez um convite para sair ao fim de semana ou me convidou para ir a lado algum. Um dia disse-lhe que devia vir a minha casa, que o queria apresentar à minha irmã. Perguntou se ela era gira e se tinha namorado. Não veio e não explicou porquê. Um dia vio-o num centro comercial em Lisboa, de mão dada com uma rapariga. Confrontei-o na Segunda Feira com aquela mão na mão de uma miúda que não era eu. Respondeu com tranquildade que era a namorada dele e acrescentou ainda: Ou julgaste que ia casar contigo?

Quando acabei de ler o que a Vanessa tinha escrito soube duas coisas: que não a podia incluir na minha reportagem; que não queria parar de a ouvir. Falta acrescentar que senti falta de ar e tive de me sentar durante um bocado.
~CC~

quinta-feira, janeiro 22, 2009

Uma luz

Imagem retirada de http://diario.iol.pt/noticia.html?id=879832&div_id=4071

As cerimónias passaram-me ao lado, é um ritual, por certo simbólico e como tal importante, mas não me emocionou. Os discursos geralmente não me comovem, sei que são escritos por muitas mãos mesmo que sejam ditos com o coração ao pé da boca.

Hoje sim, posso dizer que ouvi o que quis, justificou a lagriminha que teimou em aparecer no dia da sua eleição. Obama disse que iria encerrar a prisão de Guantánamo.

Adoro palavras, palavras por si mesmas. Mas algumas quando passam a actos é que se tornam verdadeiramente importantes.

~CC~

terça-feira, janeiro 20, 2009

O meu nome é Vanessa (VII)

Perguntei-lhe pelo tio, se tinha feito queixa dele, se tinha dito alguma coisa à família. E imaginei-a como uma miúda, uma adolescente ruiva com olhos ainda transparentes e muitas sardas. E ela disse que não tinha dito nada a ninguém, com medo de acharem que mentia. Disse, como todas as vítimas, que de certa forma se sentia culpada, como se alguma coisa nela atraísse a maldade, o desejo dele. Retorqui que o caso dela era igual ao de tantas outras meninas abusadas por alguém da família, ao que ela respondeu que era diferente, que ela era diferente.

Chegou a acontecer a segunda vez, um dia que ele bateu-me à porta por saber que mais ninguém estava em casa e atirou-me para o sofá, mas não aconteceu a terceira. Arranjei um canivete enorme e passei a andar sempre com ele. E no dia de Natal, lembro-me como se fosse hoje, ele veio encostar-se a mim na cozinha e eu saquei do canivete e disse que se ele me voltasse a tocar, ia usá-lo. Disse-lhe: na próxima vez matas-me primeiro antes de conseguires o que queres ou então sou eu que o faço contigo. Não sei onde fui buscar aquela coragem. Acho que aquilo teve um efeito de choque nele, de repente eu era uma leoa, era já uma mulher e não a miúda de que ele abusava. E como cobarde que era, só procurava as miúdas. Além de me defender a mim, passei a proteger todas as miúdas da família, afastando-as dele o mais que podia.

E enquanto a ouvia, olhei os olhos dela e pareciam transparentes como já deviam ter sido outrora, eram afinal gotas de água que estavam ali fixas sem sair, eram lágrimas verdadeiras mas que estavam secas, congeladas.
~CC~

segunda-feira, janeiro 19, 2009

Partida-chegada-largada

Eu fiz ainda agora uma mala e parti num vapor até ao outro lado do Equador, o que era importante era cruzá-lo como quem risca para si uma outra vida. Eu trouxe na mala só duas mudas de roupa e dois ou três objectos: o papel, a caneta, um livro de poemas. O mais importante deixei lá: esta infinita tristeza tecida no desespero da maldade das pessoas próximas. A maldade distante não nos dói assim, apenas a que se enreda junto à nossa pele. Agora tenho por cima de mim esta noite tão quente, tenho só o céu azul sorrindo estrelas.

Não fora o teu rosto de menina cheio dos teus olhos de mel, não fora esse teu abraço que se me entra corpo adentro, e essas vozes que estão no meu sangue a ligar-me a vós, e já tinha ido. São todos esses nós que aumentam o medo e me atam os pés com as suas luzes sombrias, eu poderia partir já hoje sem pena nenhuma do país que deixo para trás. É um país de lamúrias onde os fracos se protegem e os fortes de atacam, é uma aldeia onde os estranhos se abatem e os próprios se defendem, é um país que apenas em algumas madrugadas deixou de ser cinzento, não obstante ser bafejado pelo sol.

Resta-me apenas alguma indignação, não quero que de todo se vá. É esse resto que aguenta todas estas manhãs de nevoeiro, é esse resto que ainda caminha, que ainda procura, que ainda chora, que ainda acredita.
~CC~

domingo, janeiro 18, 2009

O meu nome é Vanessa (VI)

Ela veio à entrevista como combinado. Confrontei-a com o papel que me tinha enviado, alegando não lhe encontrar qualquer sentido. Os olhos da Vanessa não tinham cor, eram pardos, na verdade quase da cor do cabelo mas sem luz. Por isso quando ela nos fitava, não conseguiamos ler nada no seu olhar, apenas a expressão das sobrancelhas denunciava alguma coisa. E ela franziu-as, o que lhe deu um aspecto zangado. Repetiu o que já me tinha dito, que eu tinha que conhecer as suas outras relações amorosas para compreender esta actual e sublinhou que amorosas era ainda assim um termo incorrecto para referir a maior parte das relações entre um homem e uma mulher. Como eu não a queria ouvir, escreveu. Perguntei se também ia escrever sobre os outros 8, descontando este primeiro e o actual. E ela respondeu que preferia falar para o gravador, se eu quisesse ouvir. Tentei explicar-lhe a diferença entre querer e poder dentro da profissão que era a minha e no contexto em que trabalhava. Escutou tudo com muita atenção. E respondeu apenas com uma voz espantoamente firme: querer é poder!


A Vanessa confrontava-me com o que era frágil em mim, eu vivia imerso nas dúvidas sobre a qualidade do trabalho que fazia e sentia ano após ano afastar-me da minha juventude e de todos os sonhos que a havitavam. Eu não sabia inteiramente justificar a mim próprio a opção por este quadro de alguma estabilidade e bem estar económico, pois na minha vida não havia a desculpa da família ou sequer a necessidade de descolar de uma classe social, eu era filho da classe média e era um homem só e sem dor. Eu podia ter ido para qualquer lugar do mundo com uma mochila às costas que apenas dois ou três amigos sentiriam as noites mais vazias. E estava aqui, a dizer a uma mulher que precisava de falar de si, que tinha apenas meia hora para ela. Eu via-me ao espelhos nos olhos pardos da Vanessa e só via sombra.
~CC~

sexta-feira, janeiro 16, 2009

O céu na minha casa


Ver como brilham os olhos das pessoas é fundamental no acto de criação. As pessoas que moram nos alunos. E aumentar infinitamente o nosso universo. Às vezes sou feliz.

~CC~

quinta-feira, janeiro 15, 2009

Mais... para os autocarros, estações e bandeirolas...(II)



Pela paz (com e sem ajuda dos deuses, das deusas e transgenders divinos)

*JJS*


Mais frases...para cibelefster@gmail.com

Mais... para os autocarros, estações e bandeirolas...(I)




DEUS PROVAVELMENTE NÃO EXISTE, PODERÃO ASSIM DEIXAR DE SE MATAR UNS AOS OUTROS POR CAUSA DELE.

~CC~

quarta-feira, janeiro 14, 2009

O meu nome é Vanessa (V)

O envelope chegou em meu nome com selo de correio azul. Lá dentro meia folha de papel A4.

Ainda hoje me sinto suja quando penso nisso. Ele era meu tio e violou-me. Sabe que idade tinha? Acabado de fazer 16. Pense em tudo o que é escuro, feio, desolador. Era de noite e convidou-me para passear na praia e eu fui. Quando gritei naquele lugar onde ninguém me podia ouvir, ele disse que eu sabia muito bem ao que vinha. Mas juro que não sabia. Depois lembrei-me de tudo o que ele me tinha dito naqueles dias, nas "minhas maminhas já crescidas, no corpo de mulher que eu já tinha, nas belas pernas que sobravam dos calções". Era isto o que o meu tio dizia de mim. Depois disso tudo importa muito pouco, todos os homens importam muito pouco.
Vanessa

Estava atordoado com aquela confissão feita em papel e enviada pelo correio, porque teria a Vanessa feito aquilo? Tinha encontro marcado para entrevista com ela daí a dois dias, porque me mandaria aquela carta e só para dizer aquilo? Teria ela desistido e isto seria uma maneira de me dizer? Tentei ver uma rapariga de dezasseis anos no seu rosto de mulher de trinta, no seu rosto de ruiva precocemente envelhecida. E depois senti-me mal, porque a dor que a carta continha só me chegou no fim do dia, já muito depois de a ter aberto. Eu estava devagar a tornar-me num monstro, ouvia as pessoas mas na verdade já não sentia nada por elas.
~CC~

segunda-feira, janeiro 12, 2009

O meu nome é Vanessa (IV)

V- Meia hora?! Mas como quer que lhe conte a minha vida em meia hora?
E - Mas Vanessa, não é a sua vida, é esta sua relação afectiva actual...
V- Mas como quer perceber esta se não perceber as outras, as outras foram o caminho até esta.
E - E quantas foram Vanessa, quantos homens teve antes deste?
V- Cerca de dez!
E- Dez Vanessa?! Mas você disse-me claramente que não era prostituta, essa era uma das minhas regras...
V- Oiça, acha que dez homens dos 15 aos 30 é assim tanto?! Caramba, você está a fazer-me sentir mal, acho melhor desistir disto.
E - Não, não...eu não acho nada, não tenho que achar nada, só queria assegurar-me de que não me enganou!
V- Não enganei, nunca nenhum homem me pagou um tostão por sexo.
E- Mas há quanto tempo está com este homem?
V- Ainda não fez um ano, mas está quase.
E- E quanto tempo acha que vai durar?
V- Para sempre, desta vez é para sempre!

(e na última frase sorriu, um sorriso de miúda que fez brilhar o seu rosto duro)

~CC~

Resistência


Concentro-me nas garrafas que navegam oceanos inteiros até às mãos de alguém.

Concentro-me nos rostos dos meninos prisioneiros da violência do mundo, a tentarem ainda sorrir.

Concentro-me nas gotas de água que no deserto chegam para alguém sobreviver.

Concentro-me no homem que não quer deixar o seu telemóvel pessoal mesmo sendo presidente da maior nação do mundo.

Concentro-me na vida do escritor que descobri recentemente e que em tudo me ilumina: é nómada, tem dupla nacionalidade, diz não gostar de dinheiro. Concentro-me no seu bloqueio de escrita anos e anos, mudo pelo silêncio dos índios com os quais viveu.

Concentro-me na alegria das histórias que nascem tecidas entre mim e os alunos e dos cenários de alegria que montamos em lugares desolados. E pergunto o que levarão destes dias, destes tempos, o que está para além no número na pauta.

Concentro-me nos pequenos almoços de Domingo, quando fazemos panquecas e as comemos ensonados de pijama e me sinto em paz.

Quando as notícias são más, tenho os meus truques de não entristecer, de não adoecer de tristeza.
~CC~

sábado, janeiro 10, 2009

O meu nome é Vanessa (III)


Amor, para além da idade.
Foi assim que a equipa baptizou esta reportagem, fiquei hesitante em concordar. Primeiro temia chamar amor ao que podia não ser, há tantas razões para as pessoas estarem juntas, temia a classificação categórica. E depois se calhar não era para além da idade, se calhar a idade podia ser justamente o importante, elas podiam estar juntas por terem aquela(s) idade(s). Mas há muito sabia que perdia sempre a guerra dos títulos, essa e muitas outras. Depois aquilo não me apetecia, tinha pouca apetência para reportagens sobre afectos, preferia coisas mais desapaixonadas: gostava de projectos profissionais interessantes, de lugares especiais por alguma coisa particular, e de tudo o que se assemelhava a uma batalha de alguém por alguma coisa. Por isso as palavras: "está na altura de fazeres coisas deste tipo", vindas da chefia, soaram-me como um aviso claro de que não seria tolerada a escusa.


E assim comecei à procura de pessoas juntas numa relação amorosa que entre elas teriam pelo menos vinte anos de diferença. Comecei pelos homens por me ser mais fácil. E não foi difícil encontrar o que os movia. Registei com enfado as palavras: são mais frescas, mais doces, mais enérgicas, renovam a vida de um homem, dão-nos uma sensação de confiança em nós, são mais alegres... e embora eu não lhes tivesse pedido comparação alguma, era como se tivessem sempre a comparar as mais novas com as mulheres da idade deles.

Antes da Vanessa entrevistei uma mulher que vivia com um homem mais novo, muito mais novo. Falava dele como se fosse filho dela e fiquei com muitas dúvidas sobre o amor, sobre o que era aquele amor.

Depois a Vanessa. Eu tinha-a avisado que só teria meia hora para ela.

~CC~

quinta-feira, janeiro 08, 2009

o meu nome é Vanessa (II)


As instruções eram claras: meia hora gravada em registo digital para cada entrevistado. Mais: entre seis a dez por tema e a reportagem traçada no cruzamento destas vidas. Se uma delas se revelasse muito interessante, era-lhe dado destaque ou a reportagem fazia-se unicamente com ela.


Quando entrevistei os mineiros do Monte da lua andei perto de pisar o risco. Primeiro porque eram vidas trágicas e sem esperança. Segundo porque não consegui entrevistar apenas dez, todos queriam falar: homens, mulheres e até crianças. Com a Vanessa as coisas foram piores, mas de uma maneira diferente.

~CC~

terça-feira, janeiro 06, 2009

O meu nome é Vanessa (I)


- O meu nome é Vanessa.


Esta história começa há alguns meses atrás na redaccão da revista Vidas, onde eu trabalhava como jornalista há cerca de 4 anos, depois de ter estado cinco num jornal diário de renome. Curiosamente ganho bem melhor aqui e, se a princípio desconfiei que isto não passava de uma revistinha cor de rosa, hoje até acho alguma piada a este formato tipo National Geographic do ser humano. A ideia é dar destaque às vidas humanas, mas a verdade é que no centro temos que colocar a vida de uma vedeta qualquer, ainda que possa ser uma vedeta intelectual. O resto pode ser ocupado por vidas de gente como nós.

- O meu nome é Vanessa, tenho quase trinta anos.

As vidas que destacamos aparecem a coberto de um tema qualquer, que vai desde os jovens agricultores aos médicos das urgências de hospital ou às mulheres pastoras. As pessoas gostam de histórias, nós contamos histórias, histórias com rosto humano, num formato curto e coloquial. Desde o início que o chefe de redacção nos recomendou evitar as histórias muito pesadas, assim como as "cor de rosa às bolinhas", aindo oiço a voz dele "a ideia é a de aproximar isto do cidadão normal, se é que isso existe". Pelo menos ele ainda duvidava, já não era mau.

- O meu nome é Vanessa, tenho quase trinta anos, está a olhar para o meu cabelo como se ele fosse pintado, mas é um ruivo natural.

~CC~

Gaza: sem dúvida.

STOP. STOP. STOP. STOP. STOP. STOP. STOP. STOP. STOP NOW!

~CC~

segunda-feira, janeiro 05, 2009

Prendas alheias

Tenho uma certa tendência para trocar involuntáriamente de prendas com as pessoas próximas ou apaixonar-me por algumas que não são minhas, faço-as minhas suavemente, numa espécie de roubo consentido. Há dois anos entre uma máquina caseira de fazer pão e uma máquina fotográfica digital, perdi o sentido do que era meu e do que tinha oferecido, neste caso acho que fiquei sem e com as duas coisas, ou seja partilhamos estas prendas no eixo Setúbal Algarve, fazendo-as variar de mãos e de casas.


Este ano perdi completamente o sentido dos CD´s que eram meus e não eram, e só registei o da Cibele porque entre mim e ela há alguma coincidência. Há ainda as prendas que não o são e são as melhores, como foi o caso do programa de espectáculo do dia de Natal, feito por cinco das meninas da família. O programa foi expressivo das competências de cada uma e das suas diferentes apostas, mas conseguiram juntar essas diferenças num curioso número de dança-ginástica-judo-música. Mas não foi tudo, fizeram ainda convites com o respectivo programa, misturando a impressão a computador com a capa dura reciclada dos pacotes de cereais. E houve ainda as prendas japonesas, a merecerem por si só uma prosa.


E agora a paixão, ou seja J.M.G.Clezio, no seu "Caçador de Tesouros". Devo vir atrasada, eu sei. Se calhar já todos descobriram como é deslumbrante esta prosa intensamente poética. Há muito que não tinha vontade de chorar ao ler um livro e, acreditem, não é só a história e as personagens. O que me fascinam são as palavras que trazem paisagens inteiras agarradas e nos levam com elas numa viagem de alma maior do que as que fazemos realmente. Vejo escritas belas e das quais gosto muito, mas eu não queria escrever assim, é por exemplo, o caso do Zafon e do Zimler. Com o Clezio é verdadeiramente um sentimento estranho, é como se eu quisesse dizer assim também, como se este livro fosse o livro que sonhei um dia escrever. Não gosto de transcrever pedaços de livros aqui, mas por ele abrirei uma pequenina excepção.


" É assim que partimos, nesta quarta feira, 31 de Agosto, é assim que deixamos o nosso mundo, o único que possuíamos e agora perdemos, a grande casa da Baixada onde nascemos, a varanda onde Mam nos lia a Sagrada Escritura, a história de Jacob e o anjo, Moisés salvo das águas, e este jardim tão frondoso como o Paraíso, com as árvores da Independência, as goiabeiras e as mangueiras, a ravina do Tamarindeiro inclinado, a grande árvore do bem e do mal, a estrada de estrelas que vai dar ao sítio do céu onde há mais luzes. Partimos, deixamos tudo, e sabemos que nada disto jamais voltará a existir. A nossa viagem é sem regresso, como a morte."


Eu também parti um dia assim de um lugar. E quando lá voltei, já não existia mais. Por isso a vida de quem perdeu os lugares da sua infância parece às vezes feita de metades, ou parece ser mais do que uma.
~CC~

sábado, janeiro 03, 2009

Gaza: a dúvida sistemática



Aos catorze li o Exodus em extase. Para mim o sonho de uma pátria chamada Israel era o mínimo que o mundo poderia dar aos judeus depois do holocausto. O seu sofrimento, o seu desejo, a sua coragem, eram motivos para uma admiração que não tinha limites. Do Exodus segui para a literatura seguinte e aos dezasseis imaginava construir em Portugal um kibutz semelhante aos que existiam em Israel. O sonho comunitário impregnava a minha alma adolescente em confusa comunhão com os ideais ecológicos que ganharam força nos anos oitenta. Não via, na altura, nenhum conflito em pertencer a um movimento ecológico e ser pró-Israel.

Justamente aos dezasseis conheci uma tribo que usava lenços palestinianos quase todos os dias e que denominava os Israelitas como usurpadores de terra alheia, inimigos da esquerda, em tudo apoiados pelo aliado americano. Explicaram-me passo por passo que a Palestina não era um deserto de pedras que os Israelitas tinham transformado em terra de leite e de mel. Fiquei a saber que a Palestina já tinha gente que chamava aquela terra como sua. Mudei de lado com a mesma convicção com que antes tinha pertencido ao outro, coisa que só na juventude podemos fazer com absoluta sinceridade porque o mundo é ainda um lugar inexplorado que estamos a conhecer.

Hoje sou adulta, habita-me uma dúvida sistemática quanto à razão que mora em cada lado do conflito. Só a certeza de que a guerra é uma coisa estúpida e que nada resolve, me anima a estar contra o que está a acontecer em Gaza.
~CC~