Uma semente devia dar origem a uma bananeira, porque a banana é como o pão a saciar a fome. Uma semente devia ser uma faísca eterna, capaz de atear o lume em qualquer circunstância, mesmo quando a lenha respira chuva. Uma semente devia ser um isco que atraísse sempre os peixes, mas que ao mesmo tempo nunca se gastasse, permitindo trazer para casa apenas os suficientes para que no mar ainda pudessem sobrar muitos. Uma semente devia dar origem a uma árvore tão grande, tão forte e tão frondosa como um embondeiro, uma árvore como uma casa ou uma casa árvore. E a última semente, a última devia dar a flor de maracujá, uma flor capaz de durar sempre, uma flor sem morte. A mulher velha disse: cada criança Almar tem um sonho para estas cinco sementes e elas são, elas são exactamente todos esses sonhos.
sábado, abril 30, 2011
ALMAR V
Uma semente devia dar origem a uma bananeira, porque a banana é como o pão a saciar a fome. Uma semente devia ser uma faísca eterna, capaz de atear o lume em qualquer circunstância, mesmo quando a lenha respira chuva. Uma semente devia ser um isco que atraísse sempre os peixes, mas que ao mesmo tempo nunca se gastasse, permitindo trazer para casa apenas os suficientes para que no mar ainda pudessem sobrar muitos. Uma semente devia dar origem a uma árvore tão grande, tão forte e tão frondosa como um embondeiro, uma árvore como uma casa ou uma casa árvore. E a última semente, a última devia dar a flor de maracujá, uma flor capaz de durar sempre, uma flor sem morte. A mulher velha disse: cada criança Almar tem um sonho para estas cinco sementes e elas são, elas são exactamente todos esses sonhos.
terça-feira, abril 26, 2011
ALMAR IV
Ficámos sem terra embora a nossa terra fosse um lugar junto da água. Mas sobraram os panos, os panos das mulheres Almar. E, com eles, elas inventaram outra vez a vida. Levaram-nos para as feiras como sempre tinham feito, mas agora com mais flores, mais peixes, mais luas... eram cortinados, tapetes, colchas e vendiam-se como únicos que eram, cada um diferente do outro.
E nós, crianças Almar, começámos a usar os tecidos para bonecos grandes de espantar a passarada. Éramos nós que fazíamos nascer os espantalhos. Os donos das quintas chamavam-nos porque, por uns tostões, uma fruta, um caldo, um naco de pão com azeitonas, nós pintávamos a paisagem de cor e de poesia.
Cresci criança Almar, pobre como pensava que só nós éramos, mas rendida à mudança da cor da terra em cada estação. E ainda sonho com espantalhos que abrem os braços e dançam para espantar a passarada.
domingo, abril 24, 2011
ALMAR III
Depois disso uma doença foi tomando, um a um, os nossos homens. Só se salvaram os que eram meninos. E nós, as mulheres, embora nessa altura o meu tamanho e o meu coração fossem os de uma menina.
sábado, abril 23, 2011
ALMAR II
Eu fui uma criança Almar. Passava horas a ver as formigas desenharem os seus carreiros, tinha as minhas mãos sempre sujas das tintas com que as mulheres tingiam os tecidos e com os restos delas pintava os troncos das árvores.
Eu acreditava que todas as coisas tinham uma alma e podiam falar comigo e achava que o seu silêncio era apenas porque deveria saber esperar os seus sinais. E falava-lhes, eu falava-lhes sempre. Eu sabia que as bonecas de pano só se podiam casar uma vez por mês porque a festa delas era de folhas e flores e eu não devia arrancá-las com frequência. Fecho os olhos e tenho em mim todos os cheiros e sabores da minha infância e quando os abro pergunto pelo que sobrou.
~CC~
sexta-feira, abril 22, 2011
ALMAR I
Eu fiz parte dos Almar. Os Almar são uma tribo simples cuja função é cuidar que os rios cheguem sempre ao mar, velar para que se dê a união necessária das espécies e a fusão do doce com o salgado. No momento em que vos escrevo, o meu povo está em vias de extinção, como uma qualquer outra espécie animal ameaçada. Digo-vos como éramos, como nos perdemos, como somos agora.
Os Almar viviam todos nas proximidades dos estuários, em grandes tendas de lona azul. Os olhos, de cor indistinta, eram líquidos e os cabelos quase vermelhos, por causa das cores de tingir os panos. As mulheres ocupavam muito do seu tempo neste ofício de tirar o branco dos tecidos e depois vendiam-nos como tapetes de flores nas feiras mais próximas. Uma criança Almar procura sempre o curso das linhas azuis nos mapas do futuro e tem na pele um triângulo desenhado com a seiva das árvores.
quinta-feira, abril 14, 2011
terça-feira, abril 12, 2011
Do absurdo de algumas tardes
Não consegui ler uma linha por causa da avaliação que se passava na mesa ao lado. Não, não se tratava da avaliação dos professores, nem tão pouco da avaliação dos alunos. Era apenas uma escala nova de avaliação das universidades inventada por uns machos jovens. Tudo se resume afinal a uma fórmula bem simples: quem tem as mais boas, mais bonitas, e que se deixam "comer" (e acrescentavam "se deixam comer sem serem porcas", e confesso que esta não percebi). Assim, do ISCTE, à Lusofona, ao ISPA, ao ISLA...todas foram avaliadas, sem qualquer juizo de valor entre o ensino público e o privado. Um enorme destaque foi dado a umas veteranas boas que coleccionavam caloiros, o que aumentava a percentagem dos moços desejosos de frequentar a dita universidade.
sexta-feira, abril 08, 2011
Surpreendentes as manhãs
quinta-feira, abril 07, 2011
Breves os instantes
segunda-feira, abril 04, 2011
Da Lezíria
VALE (Teatro da Trindade, Domingo de há quinze dias)
Vi, sentada nas escadas do teatro a abarrotar, com os olhos abertos de espanto, que no fim estavam molhados, a lezíria inteira num palco.
Os bailarinos eram cavalos, bezerros, e bois, e estavam à solta no prado, em poses de zanga e namoro, mansos em dias de sol, e perturbados sempre que a tempestade lhes chegava ao sangue. Os corpos dos bailarinos eram a arte da transformação. E quando eles se vestiam, projectavam nas suas roupas, as imagens de uma terra toda ela um horizonte. Não estavam, porém, sós, os seus olhos que tinham ido ao vale, tinham deles trazido outras mãos, outros rostos, o verdadeiro povo da lezíria. Tinham dançado juntos, armando uma teia corpos perfeitos e corpos imperfeitos, num baile único pelo qual a banda puxava, como se de uma matiné de Domingo se tratasse.