(Para a ~AF~...
Para o JVT, por causa das histórias tristes com um final feliz...
Para a Depp que se comove com as histórias dos outros, para que possa sempre ser assim...)
É preciso que diga que antes da casa ocupada, já tinha havido a casa velha do avô, e dentro dela o quarto escuro sem janelas. E depois, certas de que a vida nos ia correr melhor, tínhamos alugado o apartamento novo das duas assoalhadas de alcatifa (nunca tinha visto antes chão forrado assim), do qual tínhamos tido ordem de despejo, ditada pelo Tribunal, um espanto de eficácia no Portugal de 1975.
Por isso a subida do Sul para Lisboa, no limiar do início do ano lectivo de 1976, era outra aventura desta errância, desta procura de vida, depois de termos perdido a que tínhamos chamado nossa.
A casa das portas fechadas ficava num dormitório fino de Lisboa, só mais tarde vim a saber que tinha ganho um prémio de arquitectura. E a nossa rua, a dos lotes 90, era a única das casas ocupadas, o resto era um bairro normal e abastado, onde moravam muitos nomes sonantes da política e da televisão. Via-se um pouquinho do Tejo da rua dos 90´s, e de outras via-se muito Tejo. Nunca deixámos de ser os dos 90, mesmo depois do final feliz.
Um dia a primeira familia de ocupantes tirou as mobílias e levou-as para outra casa que tinham em Cascais, não faço ideia se ocupada. Mas não abriram as portas, deixaram-nas na mesma fechadas. Soube bastante depois que a sua ideia era negociar a saída, ter uma contrapartida nossa pelas chaves, ou obter alguma vantagem no dia em que os legitímos proprietários viessem tirar-nos dali. E eles chegaram de facto: os legitímos proprietários. Não tinham porém nome nem rosto, tratava-se de uma companhia de seguros. E o homem do frauque travestido de advogado bateu uma a uma cada porta do prédio ocupado, dizendo que tinham que sair. Mas as pessoas tinham decidido que a tragédia era coisa para arrumar no passado. E juntaram-se, e uniram-se, e perceberam que também elas podiam ter advogados. E a nossa esperança pela abertura das portas aumentava de dia para dia. E quando chegou a indicação da verba a dispender para o aluguer, a desistência bateu à nossa porta, era um montade impossível para nós.
Mas a casa tinha muitas assoalhadas e nós sabíamos viver em poucas, em quase nenhumas. Por isso a solução estava em cima da mesa: primeiro abrir as portas, depois enchê-las de gente. Foi assim que se abriram as portas, e passei a viver numa espécie de pensão familiar, mas essa é já uma outra história que agora não importa.
O que importa é saberes o que aconteceu naquele dia. Primeiro o som das chaves a abrir cada porta, o homem do fraque a deixar uma chave em cada fechadura. Depois dele sair, abrimos as portas e dançámos nas seis assoalhadas vazias, ou melhor, cheias de sol.
Os muros podem derrubar-se, as portas podem abrir-se.
~CC~