quinta-feira, outubro 09, 2008

Os dias do Verão no Sul que era Norte


Se Maria Laura não fosse ainda viva e uma mulher tão surpreendente que poderia vir até aqui espreitar-se, contaria a sua história inteira, como ela o fez numa tarde de Verão dentro de um escritório de pedra entulhado em papel velho. Falaria de mim e do modo como ela me ignorava para se centrar no homem que estava comigo, falaria de como gostei dela e ao mesmo tempo a detestei.

Todas as suas marcas de nobreza comprada marcavam um território de elite, onde os pobres seriam sempre os outros e os empregados seriam sempre isso, como se não pudessem ser pessoas. E ao mesmo tempo quanta coragem, quanta luta, quanta ousadia. Uma mulher que deu nome a uma casta de vinho fintando burocracias e biologias várias, não é uma mulher qualquer. Falaria de Maria Laura, de como é nascer mulher abastada no Portugal interior, de como se trocam e invertem papéis colados a nós à nascença, falaria de como é ser forte e de uma fraqueza e tristeza imensa. Falaria da sua solidão entre a folhagem das vinhas, das peras, das amoras.

Falaria de uma capela pequena coberta de hera e sempre fechada, falaria dos bancos de jardim onde ninguém se senta, dos santos de pedra dispersos pelos jardins, da piscina onde os hóspedes tomam banho. Falaria da mulher que despede os arquitectos e atormenta as empregadas, da mulher que diz não conseguir andar, enfiada tempos sem fim na sua cama, e depois de como ela sobe as escadas, escrutina tudo e descobre num ápice o que foi mudado de lugar.

Se ela sabe que estas meninas não são irmãs e que este homem e esta mulher não são casados, não sei se poderemos voltar a cruzar com esta tranquilidade o portão da quinta. Se ela sabe que vamos ao Festival das danças, onde os cabeludos sem eira nem beira se divertem, não sei se nos poderemos sentar a esta mesa a saborear o seu maravilhoso vinho. E se calhar tudo ela sabe, mas finge acreditar que somos esta família bem comportada de senhores professores que fugiram da praia no sul para se recolher nas leituras silenciosas da tarde.
~CC~

10 comentários:

Gregório Salvaterra disse...

Delicioso. Ainda havemos de ler aqui essa história de uma casta de uva cujo nome não entrava no seu vocabulário.
Beijo
*jj*

sem-se-ver disse...

subscrevo o comentário anterior.

:-)

Mar Arável disse...

Sem palavras

Tão belo o seu texto

Tanta vida num bago de uva

Como provar o seu vinho

só para lhe dar um beijo?

E. disse...

Começo a ficar ardosio-dependente, tenho de confessar.

JOSÉ RIBEIRO MARTO disse...

Excelente texto_____________
a ti , a minha vénia!
Às vinhas !
Abraço!
JRMarto

João Torres disse...

Ficaremos à espera do dia em que nos fales mais de Maria Laura ou de outra mulher qualquer.

Um beijo
João

CCF disse...

JRMarto,uma vez, a única em que nos encontrámos, disseste que a minha escrita era tão íntima que não puxava pelos comentários. Percebi tão bem o que disseste, esqueço-me por vezes que há aí gente a ler e escrevo-me a mim, mais do que escrevo para alguém. Escrevo para não me esquecer, para me ver, como quem marca a areia da praia com os pés.

Mas(e isto é para todos vós que por aqui aparecem) é verdade que é um prazer sentir que há do outro lado gente, isto é, pessoas de carne e osso, que nos transmitem através dos seus comentários um calor muito especial(que até agora senti sempre como verdadeiro, não obstante tanta gente ter tão más experiências com as caixas de comentários).

Adiante...procurem Quinta da Comenda, branco ou tinto. Como é vinho biológico, é um pouco difícil de encontrar, mas é possível. Faço publicidade com gosto e nenhum proveito! :)

~CC~

Cristina Gomes da Silva disse...

Tem graça, quando li o nome da vossa anfitriã tive uma leve reminiscência de há uns anos atrás. Contactei-a para fazer uma reserva e mesmo ao telefone se me afigurou essa mulher que agora descreves. Não cheguei a provar o vinho, hei-de lá ir um destes outonos.

JPN disse...

deliciosa história que contarias. e não contaste, ficou este travo a vida, a uva. o prazer de te ler.

Rita lobo disse...

Por causa disso eu é que tive de ser adoptada ( da bósnia).