domingo, julho 27, 2008

Memórias com voz (II)

O mar da minha infância morava ao meu lado e podia sentir-lhe o cheiro mas era feito de distância, um tapete líquido chamado baía de Luanda, bilhete postal que toda a vida ficou dentro dos olhos da miúda que eu fui.

Raramente se ia à praia, tenho três ou quatro idas dentro da minha memória. Além delas, um acampamento num lugar mágico, nele corria um rio pequenino para o mar e os caniços que cresciam lá eram tão grandes e altos que os caranguejos, também enormes, se passeavam vagorosamente por eles, como equilibristas de circo. Ir à praia e mergulhar no mar não era coisa que o meu pai pudesse acarinhar para os filhos e muito menos gastar nisso o seu tempo, preferia o sol na sombra de livros nas esplanadas e disso a infância está cheia, de longos tempos de observação do mundo nas esplanadas e no interior dos cafés, onde as ventoinhas de tecto giravam incansavelmente a tentar afastar o calor imenso das tardes.

Ontem com as minhas crianças, embora chamar-lhes assim já me custe (de tão crescidas que estão), fui elogiada por ser a única adulta da família que entra na água com elas, isto é, bem depois delas que entram mal poisam o pé na areia. Não pude deixar de pensar nessas infâncias de sequeiro que todos tivemos, mais estranhas ainda pela proximidade do mar que tínhamos, mas era difícil explicar-lhes isso, como as infâncias líquidas delas são tão diferentes das nossas.

Investi depois nesse prazer que a infância não me deu e um banho de mar desperta na minha pele um efeito de contentamento só igual ao de um grande e apertado abraço.
~CC~

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